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29.4.06

Zulmira, Murilo, Caio e talvez um epílogo

Erly Vieira Jr
(Publicado em 26.04.2006)

Bom, esta é a sétima e última coluna da nem um pouco enciclopédica série sobre a prosa brasileira entre o lançamento de Grande sertão: Veredas (1956) e o comecinho dos anos 90. Obviamente, minha intenção não foi a de traçar um panorama completo sobre essa produção, mas sim destacar alguns de seus momentos. Semana passada eu deixei três ótimos contistas pra trás, então começo a coluna destacando esse pessoal.

O primeiro nome que vou citar é uma ilustre desconhecida para a maioria dos leitores: Zulmira Ribeiro Tavares. Autora de contos cujo apuro na linguagem permite que antes do final de cada frase a gente seja surpreendido, ela tem uma produção bastante fértil e aclamada por parte da crítica especializada, mas segue desconhecida pelo grande público. Nem preciso dizer o que esse povo perde, né? Um volume em especial mereceria ser destacado: Cortejo em abril, lançado pela Companhia das Letras em 1998, que reúne vários contos curtos, precisos e vertiginosos, e um mais extenso, que dá nome ao livro e recria o cortejo funerário de Tancredo Neves em 1985, episódio que se constitui numa das maiores fabulações de nossa história recente. O "Consertador de Tudo", protagonista do conto, interrompe mais um dia de sua vidinha quase irrelevante para assistir à passagem do corpo pelo Ibirapuera e é uma experiência inesquecível para o leitor acompanhar o episódio sob a ótica do personagem. Quer ler Zulmira? Vai no Sebo Florestan Fernandes, tem vários títulos dela perdidos na estante de literatura brasileira. Foi lá que eu a descobri.

Sobre Murilo Rubião eu não tenho quase nada a dizer. É muito melhor mergulhar em seus livros num passeio deslimitado pelo território da literatura fantástica. Seus contos trazem uma melancolia frente ao absurdo, como se o fantástico fosse até aceito como instância irremediável do real, como algo com que o personagem mais cedo ou mais tarde teria que se confrontar, mas nunca baixar a cabeça e engolir a seco. Seu conto que mais me impressionou até hoje, "Teleco, o coelhinho", trazendo um animal falante metamorfo e dotado de comportamentos humanos, tem muito disso. Não à toa, o Bráulio Tavares escolheu este conto pra compor sua antologia Páginas de sombra: Contos fantásticos brasileiros. Eu, se fosse você, encomendaria sem medo O pirotécnico Zacarias imediatamente, na loja virtual mais próxima (ou você jura que vai encontrar o livro nessas livrarias da cidade? Mais fácil arriscar num sebo, sinceramente!).

O gaúcho Caio Fernando é o terceiro da lista. Só a biografia dele já seria motivo de culto: foi perseguido pelo DOPS, refugiou-se no sítio de Hilda Hilst, foi lavar pratos na Europa, foi squatter por muito tempo em Londres, usava batas, brincos nas duas orelhas e cabelos vermelhos em plena ditadura, foi mega-cultuado nos anos 80, em especial com os contos de Morangos mofados (livro de cabeceira até hoje de todo mundo que acaba por descobrir-se gay), tinha uma coluna semanal no Estadão e foi através dela que revelou ser portador do HIV, através de três enigmáticas "Cartas para além dos muros" (você pode ler a terceira, na qual ele revela o mistério das duas primeiras, neste link, aliás, existe um site só com as obras do escritor). Eu li isso na época (1994, época em que devorava diariamente os jornais na Hemeroteca da Biblioteca da Ufes, afinal eu tinha todo tempo do mundo em meu primeiro ano de faculdade), tinha acabado de descobrir Morangos mofados e senti todos os arrepios possíveis ao ler tão pertubadora confissão.

Caio era ídolo, pelo menos para a minha geração e para as duas imediatamente anteriores. Não dá pra ler contos e novelas como "Dama da Noite", "Terça-feira gorda", "Linda, uma estória horrível", "Sargento Garcia", "Aqueles dois", "Pela noite", "Dodecaedro" e não ter alguma reação. Ou pelo menos cair na gargalhada com crônicas desprentensiosas como "A lenda das Jaciras".

Confesso que hoje em dia não sei dizer se ele realmente ocupa seu devido lugar no cânone literário dos anos 80, ou se tudo que se publica e escreve sobre ele é fruto do esforço conjunto de seus cultuadores para abrirem os olhos da crítica para sua obra. A questão é que, exatamente por conta dessa biografia tão apaixonante, a obra de Caio quase sempre ficava em segundo plano e, na década de 90, foi jogada, pelos então dominantes Estudos Culturais, no rol da "literatura gay" (sabe-se lá o que vem a ser isso...). Vamos lembrar que o universo "politicamente correto" da corrente teórica dos Estudos Culturais deu espaço para as "minorias" (entre aspas, para ironizar a postura da corrente acerca dos grupos não-hegemônicos) serem reconhecidas... como "minorias" ? ou seja, colocou todo mundo que era "diferente" em guetos, a serem estudados por seus membros: e dá-lhe autoras lésbicas estudadas por pesquisadoras lésbicas, gays estudados por gays militantes, autores negros estudados por negros engajados, e todos considerados importantes não por sua produção literária, mas por seu ativismo na construção de supostas "identidades". Nessa histeria toda, que espero hoje em dia ter se esvaído, importantes autores brasileiros foram relegados a segundo plano, lembrados apenas por seu pertencimento a uma "minoria" específica (o célebre exemplo da poesia de Waldo Motta, revolucionária na forma e no cruzamento entre erotismo e tradição bíblica, mas que causou muito mais bas-fond nos meios por seu conteúdo homoerótico), citados apenas pelo bom-tom dos cadernos culturais de não deixar de incluir nas listas de final de ano pelo menos um autor gay, um afro-descendente, um indígena, um ex-retirante, um "portador de necessidades especiais", um fiel da Deus é Amor ...

Com isso, cabe atualmente à crítica e à academia resgatar a obra de autores que são importantes não apenas por questões identitárias, mas pela excelência de sua produção. O caso do Caio é gritante. Ele, ao lado de Ana C., conseguiram cumprir com maestria e honestidade a difícil tarefa de captar o espírito de época do final dos 70 e início dos oitenta sem deixar de lado o trabalho com a linguagem. Seus textos traduzem a urgência de sua geração, com a capacidade de jogar com a língua (e trapaceá-la sempre que possível) que só os grandes escritores possuem. E a literatura de Caio Fernando, "dói vezenquando", ainda hoje. Quantos autores do mesmo período conseguem deixar o leitor tão perplexo quanto? Eu nem pensaria duas vezes em colocar seus contos como leitura obrigatória no Ensino Médio e no programa do vestibular.

Bom, depois do Caio eu até fico quietinho e volto só semana que vem. Confesso que deixei de lado muita coisa importante desse período: não falei sequer de um cronista, acho que inclusive os gênero da crônica mereceria uma série de colunas mais aprofundadas (fica como uma promessa futura). Autores importantes que eu ainda não li, como Antônio Torres, Ana de Miranda, Milton Hatoum, Affonso Romano de Sant'Anna, Luiz Vilela, Autran Dourado, Antônio Callado também foram deixados de lado: afinal, não posso ficar falando do que ainda não conheço. Prometo que vou me tornar um leitor mais disciplinado e correr atrás de todos eles e, à medida em que for lendo seus livros, dedicar-lhes fartas colunas. Semana que vem volta nossa programação normal. Até lá.

E os contistas?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 19.04.2006)

Pra continuar o passeio pela prosa brasileira dos últimos cinqüenta anos, não dá pra ficar sem falar dos contistas. Até porque os contos são a porta de entrada de muitos leitores no universo deste ou daquele autor. Sempre tem um "A primeira margem do rio" pra iniciar alguém no Rosa, ou um conto cheio de violência e sexo do Rubem Fonseca nos anos 70 pra arrebanhar novos e ardorosos fãs do escritor. E sempre tem um conto tipo aquele do Vitor Giudice, "O arquivo", pra gente ficar se perguntando: e esse autor, escreveu mais coisas assim? Onde ele foi parar?

O caso de Vitor Giudice é bem peculiar no universo do conto brasileiro nos anos 70 (a década de ouro do conto, segundo dizem). "O arquivo", inacreditável narrativa Kafkiana sobre um trabalhador que tem seu salário gradativamente cortado até que ele mesmo se transforme num arquivo de metal, foi publicado em 1972, e deve ser o conto brasileiro mais publicado no exterior naquela década. Giudice publicou quatro volumes de contos e dois romances, antes de falecer em 1997, mas seus livros são peça rara de se encontrar por aí. Exceto esse conto, que até na rede está facinho, facinho de achar. Giudice injustamente entrou pra história da literatura brasileira como autor de um conto só, talvez o mais emblemático conto dos nossos anos de chumbo. De tão intenso, o texto se destaca fácil entre Os cem melhores contos do século, aquela antologia do Ítalo Moriconi que todo mundo leu. Rival à altura, só mesmo a "Terceira margem" rosiana, que os herdeiros (sempre eles!) não concordaram em incluir na antologia.

Aliás, a antologia do Ítalo cobre todo o primeiro escalão da nossa literatura neste último meio século: Nélida, Lygia, Clarice, Scliar, Hilda, Trevisan, Raduan, Noll, tá todo mundo lá (menos o Rosa). Tem até o Sérgio Sant'anna, festejadíssimo, embora o único conto dele que realmente me seduza seja aquele do professor e do ovo, que até faz um contraponto interessante com o genial "O ovo e a galinha", da Clarice. Mas como eu não vou ficar aqui falando do primeiro escalão, porque todo mundo já conhece a literatura desse pessoal muito bem, vou falar dos menos badalados, porque utilidade pública tornou-se a vocação desta coluna! (Hehehehe...)

Então, começo com o João Antônio. Um dos mais importantes contistas do país, ícone nos seventies, hoje reeditado em fartas doses (até nas prateleiras das livrarias blockbusters você encontra, entre a Danuza e a Bruna!). Os contos dele cheiram a lingüiça de boteco, cerveja quente e fumaça de cigarro esquecido sobre a sinuca, e isso, em se tratando de João Antônio, não é insulto algum. Experimente ler algum conto dele que você vai passar até a apreciar esses aromas pouco convencionais, ainda que o faça, como eu, apenas durante as páginas em que o conto se desenrola. A calçada suja do centro das grandes cidades, o suor do migrante, o sol de quarenta graus, a miséria distribuída generosamente em cada esquina, tudo isso está presente no uso poderoso da linguagem coloquial em cada parágrafo. Nem sei indicar um livro só dele.

Do José J. Veiga eu nunca gostei muito, mas tenho que dar o braço a torcer para "Os cavalinhos de platiplanto", um segredo entre narrador e leitor que nos leva a territórios íntimos e inesquecíveis da infância. Ivan Ângelo tem dois livros interessantíssimos de contos, A face horrível e A casa de vidro. Mesmo os dois ou três contos dele que lembram Rubem Fonseca demais são muito bons. E a tal da "casa de vidro" tirou meu sono por um bom tempo, coisa que nenhum filmeco de terror japonês ou tailandês conseguiu até hoje. Do João Gilberto Noll, eu recomendo todos os livros, mas se fosse pra ler um conto apenas, eu diria pra você ler "Alguma coisa urgentemente", que infelizmente foi suuuuper mal-adaptado para o cinema no filme Nunca fomos tão felizes? (bom, o filme datou, o conto não!).

Dalton Trevisan, não bastasse ser um dos maiores de todos, ainda foi sortudo na adaptação pro cinema. Alguém aí viu A guerra conjugal, do Joaquim Pedro de Andrade, adaptando diversos contos do escritor curitibano? Um dos poucos filmes brasileiros dos anos 70 que realmente prestam. Acho que só a adaptação para "Os mil olhos do cego" datou um pouco, mas como já é final de filme, nem compromete tanto. Pra quem não tiver mais videocassete em casa pra passar na locadora e pegar o filme (sim, pra variar, ele inexiste em dvd), e pra quem tem também, porque ver filme adaptado não supre a leitura do livro de origem (a não ser O poderoso chefão, baseado num livro meia-boca), vale a pena ler qualquer livro do Dalton. Ou pelo menos O vampiro de Curitiba, pra não fazer feio nas rodas de conversa em vernissages e foyer de teatros.

Os outros três que eu quero citar eu deixo pra próxima coluna, pra poder me aprofundar em cada um. Então, semana que vem tem Caio Fernando Abreu, Zulmira Ribeiro Tavares e Murilo Rubião. E os cronistas, porque crônica não é gênero menor, não senhor!

Onze livros a redescobrir (parte 3 de 3)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 12.04.2006)

O púcaro búlgaro
Confesso que tive muita dificuldade em escolher um único livro do Campos de Carvalho. A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961) e A chuva imóvel (1963) são impressionantes tanto na linguagem elaboradíssima quanto nas altas doses de ironia. A frase final deste último são arrepiantes: "Mesmo morto, continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel, serei eu que a estarei cuspindo".
Mas é O púcaro búlgaro, publicado em 1964, que me pega de jeito. Imagina só: um cara chamado Hilário publica um anúncio do tipo "Expedição à Bulgária: procuram-se voluntários". A intenção era conferir se a Bulgária de fato existia. Obviamente, aparecem os sujeitos mais absurdos: o inclinado Pernacchio, um bulgarólogo de nome Radamés, um tal Expedito não-sei-o-quê e Ivo Que Viu a Uva, descendente do sábio hindu que inventou o zero e que até hoje reivindica os direitos autorais dessa invenção. O livro estrutura-se como um diário dos preparativos de Hilário para a expedição, com altas doses de surrealismo (o próprio autor se considerava surrealista). Os quatro sujeitos vão morar no apartamento de Hilário e Rosa, diálogos absurdos sucedem-se interminavelmente, Expedito e Rosa fogem e tudo se resolve com uma partida de pôquer entre os restantes. Depois de publicar esse livro, Campos de Carvalho retirou-se da vida literária. Mas já tinha inoculado altas doses de sarcasmo na literatura brasileira.

Sueli
Pouco importa distinguir o que realmente aconteceu do que se encontra ficcionalizado nesse "romance confesso" publicado em 1989 por Reinaldo Santos Neves. Personagens, datas, eventos e cenários reais são transfigurados nesse romance (na dupla acepção da palavra), praticamente um "crime passional", como afirma o autor na orelha do livro. Metalinguagem e intertextualidade estão aqui a serviço da narrativa, e não tentando roubar a cena do romance (o que o diferencia de várias outras experiências da literatura brasileira nos anos 70-80, hoje bastante datadas), de modo que a leitura é absurdamente prazerosa ao leitor. Chega a arrepiar quando eu me lembro que esse livro foi escrito e publicado aqui no Espírito Santo e que seu autor está tão perto de nós. Merecia ter edição nacional, por uma dessas editoras blockbusters da vida (Record, Companhia das Letras, Objetiva, Nova Fronteira, Rocco... qualquer uma delas) e ser lido e debatido nacionalmente. Pelo menos caiu alguns anos seguidos no vestibular (eu o li aos dezesseis, e confesso que foi um dos livros que mais me influenciaram a querer escrever), embora hoje não seja tão fácil de achar por aí, nem nos sebos. E tem uma passagem maravilhosa em que o narrador (Reynaldo, com "y") conta de ter se deparado, certa noite, com uma crônica do Rubem Braga sobre a mulher terrível da vida de cada um se chamar Maria, Ana, Joana, "Ou até mesmo Sueli". E, no dia seguinte, ao encontrar com o próprio Rubem no aeroporto, hesita em confidenciar sobre sua própria Sueli (e não o faz, por fim). Arrepiante.

O pavão desiludido
José Carlos Oliveira foi um dos maiores cronistas do país nos anos 60/70, publicando seus textos no Jornal do Brasil durante 23 anos ininterruptos (naquele tempo, a crônica diária era um gênero forte em nossa literatura, e parte desse material pode ser conferido nos volumes dedicados ao gênero na lendária série Para gostar de ler). Zé Carlos publicou alguns volumes de crônicas, alguns romances e um belo livro de contos, Bravos companheiros e fantasmas (seu único livro "capixaba"). Hoje, ele anda bastante esquecido, embora seu romance mais bem-sucedido comercialmente, Terror e êxtase, de 1978 (que chegou até a virar filme, com relativo sucesso), seja até fácil de encontrar nos sebos da vida (acabei de pesquisar no mercadolivre.com e vi três exemplares à venda, só pra ilustrar). Mas o livro que eu recomendo mesmo, por mais difícil que seja de encontrar, é o primeiro romance, O pavão desiludido, publicado em 1972 pela Bloch Editores (sei que tem um exemplar na Biblioteca da Ufes, foi ele que eu li anos atrás, ainda estudante). Seus capítulos, todos independentes um do outro, de modo a também serem lidos separadamente, constroem uma suposta narrativa autobiográfica que recupera elementos da infância pobre do autor numa Vitória muito mais provinciana que hoje e da tumultuada relação familiar (em especial com a mãe), num painel bastante rico da personalidade do protagonista (uma espécie de alter-ego de Carlinhos). Vale a pena ler tudo dele, inclusive a biografia escrita por Jason Tércio, Órfão da tempestade, que mostra um José Carlos muito mais complexo que o folclórico boêmio que não saía do Antonio's na Zona Sul carioca. E, mais que tudo, vale a pena conferir a candura de imagens como a do menino que via o arco-iris refletido no jato da mangueira d?água.

Bom, aí foram minhas onze dicas, divididas em três etapas. Semana que vem entramos na penúltima coluna da série de sete sobre a prosa brasileira dos últimos 50 anos. Falaremos dos contistas e das tais antologias de "melhores contos" que inundam as prateleiras das livrarias em suas mais diversas versões. Até lá!

Onze livros a redescobrir (parte 2 de 3)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 05.04.2006)

Mais quatro títulos injustamente esquecidos no rol dos "fora-do-cânone". Desta vez, três "obras menores" (não pra mim) de autores maiores, e um romance semi-esquecido de um poeta célebre.

Pilatos
Quase todo mundo prefere o livro que marcou o retorno do Cony à literatura, depois de 23 anos de silêncio, o autobiográfico Quase memória. E eu tenho que concordar com o Cony: qualquer um escreveria um Quase memória, mas só ele poderia escrever algo como Pilatos, aliás, seu livro predileto. Publicado em 1973, foi concebido para ser um ponto final na obra do autor (tanto que ele ficou esse tempo todo sem escrever ou publicar) e é uma história bastante perturbadora. É a história de um homem sem nome que teve o pau (não, a palavra "pênis" não condiz com o livro, vou usar "pau" mesmo) decepado num acidente e, ao decidir que a vida só valeria a pena se pudesse carregá-lo, ainda que murcho, ao seu lado (num vidro de compota com iodo e álcool). Tem passagens cômicas, mas a gente ri é de nervoso, afinal, é uma grande metáfora sobre a vulnerabilidade humana que faz do humor apenas um atalho para mergulharmos na tristeza e amargor desse universo, recheado de personagens fellinianos (como o mendigo Sic Transit, ou a equipe de cinema que aluga o vidro de compota para usá-lo como divindade num filme bicho-grilo). Entre mendigos, o protagonista assume-se como um nada, e o livro faz o leitor também se sentir tão castrado quanto o personagem frente a cada situação. Podemos até questionar a importância do Cony como escritor, dizer que sua produção 60/70 está datada, ou que a tão festejada série de livros pós-1997 aos poucos foi se reduzindo à previsibilidade do fardão da ABL e às crônicas para Ana Maria Braga, mas não podemos deixar de lado essa obra que, nas palavras do autor, estava, naquele momento, dando uma banana "à política e à literatura". Anti-engajado e antiliterário, o livro continua atemporal e, melhor de tudo, libertador.

Água viva
Clarice é talvez o nome mais cultuado na literatura brasileira. A frase "Eu amo Clarice Lispector" é proferida por gente de todo tipo, e eu já perdi a conta de amigos e conhecidos que têm a obra completa da autora em suas estantes, reluzentes como verdadeiros objetos de culto. A palavra "epifania" acabou virando clichê literário por conta desse culto desesperado que fez da escritora uma espécie de rainha das citações: blogueiros, psicanalistas, teóricos literários, artistas, deleuzianos em geral, discípulos de Suely Rolnik, devotos da perplexidade, gente que quer escrever sobre qualquer assunto de forma "poética" e insuportavelmente adjetivada dana a citar Clarice como se fosse a cura para todo mal. Água viva, com seu monólogo caleidoscópico em tom de confidência, virou uma espécie de bíblia para toda e qualquer citação "epifânica". A aura de culto é reforçada por um marketing do tipo "Cazuza leu esse livro 111 vezes" ou pelos depoimentos de leitores que dizem não conseguir largar "esse livro que mexe comigo", que empacam na leitura de um parágrafo, retornam páginas anteriores para sentir melhor o texto, perdem noites de sono tentando entender Clarice. Se, algum dia você encontrar um exemplar à venda no sebo (digo "se" porque esse tipo de livro quem compra só se desfaz depois de morto, se não pedir pra ser enterrado junto com o exemplar), repare bem: as margens estarão repletas de anotações, divagações, e o texto estará quase que totalmente sublinhado. Exatamente por esses motivos todos, Água viva merece ser redescoberto. Para deixar esse duvidoso status de "devoção religiosa talibã" e ocupar seu merecido lugar como um dos mais instigantes livros já escritos nesse país, sem as costumeiras histerias de fãs. Clarice não merece ser lida porque é quase uma divindade inatingível, inefável, inatacável. Ela merece ser lida porque é uma escritora de primeira grandeza, como Machado de Assis, Mário de Andrade e Guimarães Rosa foram. E já é muita coisa um país de apenas 500 anos de idade ter produzido quatro prosadores de primeira grandeza, não acham? E, pelamordedeus, vamos para de ficar arrotando por aí que o principal personagem dos livros de Clarice "é a linguagem". Pra mim isso não é elogio algum, soa muito mais como um grilhão pra tornar toda boa literatura uma escrava dos artigos de linguagem enfeitada e conteúdo zero.

Fundador
Nélida Piñon é um caso à parte na nossa literatura. Talvez eu arrisque a incluí-la junto aos quatro grandes que acabei de citar. Afinal, ela já ganhou quase todos os prêmios literários possíveis dentro e fora do país (incluindo o Juan Rulfo e o Príncipe de Astúrias, e não duvido se um dia ela levar um Nobel também), sem contar o alto grau de pesquisa de linguagem em todos os seus livros. Alguém decidiu que a obra-mor da autora é a República dos sonhos, de 1985. Nada contra o livro, que realmente é fascinante, mas a questão é que pouco se comenta sobre seus outros livros, muitos de igual grandeza. Fundador, publicado em 1969 (e ganhador do Walmap, na época o mais importante prêmio literário do país), navega pelo mítico, pelo heróico, pelo fantástico para construir um mundo mágico, fabuloso e sagrado, que poderia ser aproximado à própria América. Pode não ser nem um pouco realista, totalmente imaginado, mas raramente encontramos personagens tão profundos e instigantes como a Monja e o Fundador.

Ninho de cobras
Vou usar as palavras de Stuart Evans, do The Times, citado por Antônio Olinto, para descrever esse livro: "Uma raposa se perde no centro de Maceió, cidade principal de Alagoas, no Nordeste do Brasil. O animal é visto, reconhecido, confundido com um cachorro, desconsiderado por muita gente até que é morto violentamente a pauladas. Torna-se, assim, a raposa, o elo deste romance bravio, soberbamente bem construído em que as vidas, preocupações, obsessões de um professor presunçoso, uma prostituta, uma bondosa freira de hospital e um anônimo escritor de cartas venenosas (que permanece sem identificação) obliqua e sutilmente se ligam ao suicídio de um Alexandre Viana, cidadão comum, razoavelmente bem respeitado."
Confesso que não entendo porque esse livro de Lêdo Ivo, encontra-se fora de catálogo (reza a lenda que foi reeditado em 2001, mas não vi nem sombra dessa edição por aí). O autor fez 80 anos em 2004, mas só destacaram sua poesia, e quase não se menciona esse romance (de 1973, mesmo ano de Pilatos e Água viva), a não ser em duvidosos estudos teóricos que disfarçam, sob a égide redentora da exegese, as manifestações dos egos agigantados de ensaístas que juram que escrever complicado e enfeitado é interpretar uma obra literária/artística. O grande lance do livro é que a epopéia da raposa (que não é de Esopo) cresce a cada mudança de foco narrativo, capítulo por capítulo e tira o tapete do leitor tantas vezes seguidas que a gente começa a achar natural cair tantas vezes seguidas sem saber onde fica o fundo. Tinha que cair no vestibular, durante pelo menos uma década inteira, pra fazer parte permanentemente do nosso imaginário popular, como aconteceu com A hora da estrela, Mário de Andrade, Guimarães Rosa.

Onze livros a redescobrir (parte 1 de 3)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 29.03.2006)

Dando prosseguimento à série iniciada duas colunas atrás, chegou o meu momento "Quero ser Charles Gavin": a hora de indicar aquelas pequenas e grandes pérolas que, por algum motivo, não integram as tão temidas "listas" de melhores desse último meio século, mas que não deixam de ser obrigatórias por causa disso. Podem ser consideradas obras menores, ou esquecidas (menos badaladas eu sei que são), mas são importantes momentos da prosa contemporânea brasileira. Nesta semana, vão quatro, inaugurando essa minha listinha parcial, unilateral e apressada.

A festa
Em 1976, o mineiro Ivan Ângelo (que depois escreveria dois volumes de contos essenciais, A casa de vidro e A face horrível) aparecia com um romance inovador na forma e devastador no conteúdo.
Na forma: os sete capítulos iniciais, independentes entre si, podem ser lidos em qualquer ordem, como se fossem um volume de contos; o oitavo, "Antes da festa", cruza as sete estórias de maneira surpreendente; o último "Depois da festa" (na edição que possuo, a quinta, vem impresso em páginas azuis, diferente do resto do livro), são narrados os destinos de cada um dos personagens que esteve presente à tal festa, sob a forma de um índice remissivo.
No conteúdo: embora tivesse sido saudado pela esquerda festiva da época como uma obra de resistência, o livro é muito mais uma autocrítica dessa geração 60-70, minada tanto por sua ousadia quanto por sua estagnação. Uma ressaca detalhada, eu diria. Tanto que não existe um capítulo "Durante a festa", até porque os acontecimentos da noite de 30 de março de 1970 são irrelevantes para a narrativa. E os destinos estilhaçados dessa geração, sob a forma de um romance que se assemelha a um espelho quebrado, soam arrepiantes 30 anos depois de publicado o livro.

O caderno rosa de Lori Lamby
Diz a lenda que Hilda Hilst estava cansada de escrever livros elogiadíssimos pela crítica e ser solenemente ignorada pelo público. Daí ela ter partido, no comecinho dos anos 90 para uma literatura pornográfica, alegando que o sexo nos dias de hoje faz vender de tudo. O resultado, obviamente, não foi um estouro de vendas (afinal, havia uma prosa sofisticada demais por trás de tanta putaria, tornando os livros dessa fase obras de difícil leitura para o leitor médio, ainda que mais acessíveis que outros trabalhos da autora), mas trouxe muita polêmica. O tempo passa, a polêmica some, e o que fica é a literatura. E que literatura! Os três volumes publicados entre 1990 e 1992 (O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d?Escárnio e Cartas de um sedutor) são excelentes e estarrecedores. O caderno rosa..., ricamente ilustrado por Millôr na sua primeira edição, é um diário de uma criança (ou não é, a dúvida permanece durante todo o livro), descrevendo cada escabrosidade capaz de fazer corar o Siro Darlan. E ainda assim é literatura de primeira linha. Da Hilda eu recomendo a obra toda, principalmente os livros de poesia e esse caderno nem um pouco cor-de-rosa.

Panamérica
Sim, até a contracultura brasileira teve seus momentos de real relevância. Esse romance, publicado em 1967 por José Agrippino de Paula (que iria dirigir o surreal Hitler no Terceiro Mundo, estrelado por Jô Soares em pleno período do Cinema Marginal). Fortemente influenciado pela Pop Art, Agrippino desconstrói e reconstrói mitos contemporâneos com uma voracidade de fazer inveja ao mais antropófago dos modernistas. Cada capítulo é praticamente um parágrafo único, delirante, e por isso mesmo saboroso.
"Eu sobrevoava com o meu helicóptero os caminhões despejando areia no limite do imenso mar de gelatina verde": começando assim, um romance já me pega de jeito. Depois começa um desfile de personagens que inclui Marylin Monroe, Cary Grant, Marlon Brando, Cassius Clay, Joe DiMaggio... e até mesmo a filmagem de um épico bíblico demilleano, sem contar a hilária passagem em que Burt Lancaster comenta com o protagonista que o sexo das mulheres antes dos dezoito ainda é bastante carnudo e tem um cheiro mais agradável.
Mais um trecho do livro, mantendo nosso "menu degustação": "Eu olhei as cabeças dos comunistas conservadas no frigorífico do Departamento de Ordem Política e Social, e as cabeças eram muito grandes e lembravam cabeças de papelão pintado usadas no carnaval." O lado bom da minha edição (a 2ª, de 88) é que não tem o ridículo prefácio do "sabe-tudo" Caetano Veloso da edição recente (que recolocou o autor na mídia novamente). Graaaaaaaaaças a Deus.

Em Liberdade
Esse poderia ter sido o último capítulo de Memórias do cárcere. Ou o primeiro capítulo da vida pós-cárcere. Nesse diário imaginado dos primeiros dias de Graciliano Ramos após reconquistar a liberdade em 1937, Silviano impressiona ao descrever a sensação de descompasso que cerca a tentativa de Graciliano de fazer sua vida retornar "ao ritmo normal" nos turbulentos dias da gênese do Estado Novo. O exercício intertextual é tão forte que a gente começa a achar que é realmente um diário de Graciliano, e não um exercício ficcional escrito quase meio século depois (a primeira edição desse misto de ensaio, romance e diário é de 1981). E, no final do livro, quando o personagem "retorna à superfície", e diz que não sabe como fará para caberem todos no pequeno quartinho que lhes é destinado daqui por diante, dá um aperto tão grande, tão grande no leitor...

A comissão de frente

Erly Vieira Jr
(Publicado em 22.03.2006)

Como prometido, a gente embarca agora na primeira etapa da viagem pela prosa brasileira entre 1956 e 1991 (lembrando que, ao encerrar o percurso nessa data, podemos evitar julgamentos apressados de obras por demais recentes, e que merecem ser lidas e julgadas num espaço de tempo bem maior que uma década e meia ou menos). Hoje eu quero falar da "comissão de frente". Sim, daqueles nomes que com certeza estarão na linha de frente dos cânones vindouros. Até mesmo para que, nas colunas seguintes (dedicadas aos tesouros escondidos), possamos ter referenciais para aprofundar essa discussão ligeira de uma ou duas laudas semanais.

Por conta mesmo desse limite de espaço, não vou ficar aqui chovendo no molhado, ou seja, não vou destinar linhas e linhas aos nomes mais badalados da comissão de frente. Afinal, ninguém precisa de ler um colunista quase diletante como eu pra saber do óbvio: que gente como Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Raduan Nassar faz parte do primeiro escalão, e que ler qualquer livro desses autores é certeza de se deparar com algumas das melhores páginas de nossa literatura. Não fosse assim, esse povo todo não viveria ganhando os mais importantes prêmios internacionais, né? Se, ainda assim, alguém quiser que eu monte uma listinha básica, aí vai, só por desencargo de consciência: Feliz ano velho, O cobrador, A paixão segundo G. H., A hora da estrela, Felicidade clandestina, Mistérios, Fundador, República dos sonhos, Lavoura Arcaica e Um copo de cólera. Pronto, cumpri a obrigação com um top ten improvisadíssimo e nem um pouco definitivo.

Ou quase: Guimarães Rosa ainda iria produzir algumas obras-primas nos livros Primeiras estórias e Tutaméia ? inclusive "A terceira margem do rio", talvez o melhor conto já escrito em língua portuguesa. Quem leu sabe que não é exagero meu.

Agora dá pra falar dos outros nomes de ponta. Como, por exemplo, José Cândido de Carvalho. Desse você deve ter ouvido falar bastante, mas não deve ter lido ainda. A obra fundamental dele é O coronel e o lobisomem, publicado em 1964. Tem que ler. O filme não é grande coisa (tenta imitar Guel Arraes e não consegue) e nem vai dar a medida exata de uma linguagem riquíssima, repleta de neologismos que enganam o leitor desatento, jurando que atravessa regionalismos pré-existentes. Zé Cândido puxa nosso tapete tão bem que dá até gosto. E olha que nem falei dos flertes com o fantástico e com o mitológico...

E, já que entrei na seara dos adaptados pela Globo Filmes, dois outros nomes se destacam: o paraibano (de nascença, e pernambucano por opção) Ariano Suassuna (sim, o Auto da Compadecida é leitura tão obrigatória quanto o genial filme do Guel Arraes) e o pernambucano (de nascença) Osman Lins. Mas o melhor do Osman Lins nem é Lisbela, pra falar a verdade. O quente mesmo é Avalovara, publicado em 1973. Verdadeiro labirinto em que a palavra toma à frente e deixa o enredo em segundo plano, se não em terceiro. Só pra vocês terem uma idéia, um dos personagens é representado por um símbolo gráfico. Nem me peçam pra pronunciar seu nome, porque é impossível. Mas isso não é empecilho pra me aventurar de vez em quando nas suas páginas mágicas, um prato cheio pra fãs de Calvino e Cortázar. Lins, inclusive, é colocado pela crítica norte-americana no mesmo patamar que o escritor argentino. Uma pena que um romance traduzido em tantas línguas (fazendo as delícias dos tradutores que gostam de desafios) seja tão desconhecido em seu país de origem.

Pesquisando na internet, achei um artigo de Ermelinda Ferreira, intitulado "Uma ilha no espaço aberta à visitação", do qual transcrevo o seguinte trecho, capaz de traduzir em palavras muito mais apropriadas que as minhas o sentimento de quem leu o romance:

"Avalovara é, provavelmente, um caso único na literatura brasileira, no qual o enredo encena a palavra. É ela que sobe ao palco, poderosa, e fala, com a voz embargada, de um mundo estagnado, um mundo que se fossiliza a cada dia pelo empobrecimento da imaginação, pelo reducionismo da emoção, pelo minimalismo da visão. (...) Da solidão do escritor, que se insiste em chamar de hermetismo", e que nada mais é do que a sua resistência no âmago de uma casa que se esvazia".

Outro que mereceria destaque fácil é o mineiro Pedro Nava, que só viria a publicar pra valer com quase setenta anos de idade (na juventude, dois ou três de seus poemas e contos chegaram a público, não mais que isso). Em 1972, Baú de ossos dá início a uma série de seis volumes de memórias, só interrompida com o suicídio do autor em 1984. Nava é o responsável pela elevação do gênero memorialístico à linha de frente da nossa literatura (pena não ter surgido ninguém à altura para manter o legado...). É de Pedro uma das passagens mais arrepiantes de minha "carreira" de leitor: "Não me lembro da cara nem do nome de um só colega, de uma só colega do Andrès. Vejo-os, sem detalhe fisionômico ou contorno físico - estarrecidos no ar da sala de jantar ou no recreio, diluídos ao sol, como as figuras de confete da arquibancada do Circo de Seurat!". Quem nunca se sentiu assim com relação a alguma passagem da infância ou adolescência?

Pra encerrar esse rápido "convescote", trago aquele que, pra mim, é a cereja do bolo: Lúcio Cardoso. Ok, ele já tinha certa fama desde a segunda geração modernista, mas sua obra mais importante vem à luz em 1959: a Crônica da casa assassinada. São mais de quatrocentas páginas narrando a decadência da família Menezes, com detalhes absurdamente expressionistas e impregnantes (impossível não imaginar o tempo todo o odor de violetas ou as paredes recobertas de camadas e mais camadas de limo), num coquetel de "incesto, adultério, travestismo e homossexualismo" (pra citar o título de um artigo do Wilberth Salgueiro, o Bith, bem interessante, sobre o livro) que, na mão de Luchino Visconti daria talvez o seu melhor filme. (Adivinha quem adaptou pro cinema? Saraceni. Com Norma Bengell como protagonista. Ninguém merece, né? E não tem trilha maravilhosa de Tom Jobim nem Carlos Kroeber travestido que consigam salvar o filme, viu?).

Lúcio faz o favor de narrar o caso de amor fulminante entre mãe e filho através de uma alternância de focos narrativos em flashback que Orson Welles já havia provado ser palatável ao espectador/leitor médio com seu Cidadão Kane. Iniciando-se com os instantes terminais da enferma Nina, os capítulos reúnem depoimentos ou anotações dos personagens, incluindo aí até confissões ao padre mais cúmplice que nossa literatura já produziu. Mergulhamos em quase afogamento irremediável nas motivações de cada personagem, através de parágrafos imensos recheados de períodos intermináveis e inúmeras orações subjetivas encadeadas. Quase barroco de tão sufocante. E, ainda assim, de uma elegância em seus momentos de maior dor. Eu mesmo daria o dedo mínimo, quando não a mão esquerda inteira, pra criar uma passagem como a que o travestido Timóteo, até então exilado em seu quarto imundo no solar decadente dos Menezes, executa sua vingança, vestido com as jóias e roupas de sua mãe, sendo carregado numa rede até o velório da cunhada para realizar o último desejo dela, na frente de toda a aristocracia da cidade: depositar violetas no caixão. A frase é inesquecível: "Deus, Nina, é um canteiro de violetas cuja estação não passa nunca". Arrepiante. Depois dessa porradaria toda, pausa para os intervalos comerciais, né?

E depois de Grande Sertão?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 15.03.2006)

Em 2006, acredito que iremos respirar Guimarães Rosa e seu Grande Sertão: Veredas. Diadorim, Riobaldo, e a história que começa com "nonada" e termina em "travessia" (ou melhor, com um sinal de infinito depois desta palavra) deverão render congressos, artigos, livros publicados, teses, documentários, especiais de TV, exposições, edições de luxo. Ainda bem. Nessas horas é que eu não torço nariz para datas comemorativas: imagina quanta coisa boa pode vir no cinqüentenário da pedra fundamental do romance contemporâneo brasileiro. A festa já começou com direito a lançamento de edição comemorativa e palestra em plena Bienal do Livro. Se a gente for lembrar que são também 50 anos de Corpo de baile e 60 de Sagarana, aí é que a festa nunca termina. Dizem por aí que uma das reedições terá Bethânia lendo a morte de Diadorim, o que corresponde às 14 páginas finais do livro. Biscoito fino?

A questão é que eu não vou falar de Grande Sertão: Veredas. O livro é leitura obrigatória, inquestionavelmente. É daqueles livros que orgulharia qualquer nação de tê-lo em sua literatura. É livro pra se ler não apenas uma, mas incontáveis vezes, reiniciar a leitura de tempos em tempos, saborear os jogos de linguagem, as "puxadas de tapete" no meio da trama. Fala a verdade: quantos livros você leu na vida que proporcionam isso tudo? Nenhum? Então é hora de desembolsar um dinheirinho e comprar o seu exemplar. Nem que você tenha que abrir mão de um mês inteiro de boteco, cinema e balada.

O assunto do qual eu pretendo me estender, não só por esta, mas pelas próximas colunas, é herança direta do livro de Rosa. Grande Sertão, ao completar meio século, lança a pergunta: "E depois?". Sim, e depois de 56, o que se publicou de verdadeiramente relevante na literatura brasileira?

A pergunta é bastante delicada. Com certeza, você vai ter, como eu tive, na ponta da língua, pelo menos uma dúzia de "grandes obras" que ainda não chegaram à meia-idade. Clássicos do nosso tempo, poderíamos dizer. A questão é que mais da metade da sua lista não bateria com a minha, ou com a do seu amigo, pai, mãe, namorado(a), amante, colega de trabalho ou com a lista do pessoal do futebol de domingo na praia. Idiossincrasias imperariam de rol para rol, obviamente. Até porque, se Rosa, junto com Clarice, são os marcos iniciais da nossa prosa "contemporânea", também são os pontos finais do cânone. Depois deles, nada mais é incluído de forma unânime no rol das obras essenciais (até porque faz parte da "contemporaneidade" uma certa recusa aos cânones em prol da diversidade e da polifonia). Pode até entrar na lista de todos os críticos e estudiosos um livro ou conto de algum desses autores ou dos de gerações anteriores, publicados depois de 56 (como A hora da estrela ou A terceira margem do rio), mas não vai haver muita coisa a citar sem causar controvérsias depois desses. Pense no seu professor de literatura do ensino médio (no meu tempo, 2º Grau): com certeza, ele não avançava muito depois desses autores, pra não cair na areia movediça de citar apenas seus autores prediletos dos últimos 20 anos. E aí sobra pro leitor apenas aceitar o ofício de garimpeiro e tentar procurar as pepitas (que não são poucas) dentre uma miríade de autores desse último meio século.

Não que não haja livros "poderosos" de lá pra cá. Assim, de cabeça, eu citaria Crônica da Casa Assassinada, Feliz ano novo, A guerra conjugal, O coronel e o lobisomem, Avalovara, A festa, Um copo de cólera, Lavoura Arcaica, Ninho de cobras, Pilatos... ops, mal comecei e já fui capaz de citar dez. Sem contar os autores que me fariam ficar em dúvida sobre escolher apenas um de seus livros: Lygia, Nélida, Hilda Hilst, Campos de Carvalho, Dalton Trevisan, Pedro Nava, Murilo Rubião... Como podem ver, é uma lista bastante pessoal, ainda que vocês concordem com parte desses nomes.

Até que se fôssemos falar de poesia, a coisa seria mais fácil. Depois da Geração de 45, de Cabral e do Concretismo, poderíamos nos centrar em alguns ismos, como o Tropicalismo, a Poesia-Práxis, a literatura marginal setentista... Sem contar aquelas vozes dissonantes, que não se enquadram em movimento algum, mas cujo conjunto da obra aparece com tamanha força que é impossível não enxergá-las: Ferreira Gullar, Adélia Prado, Hilda Hilst, Manoel de Barros, Ana C. (se bem que os dois últimos estão longe de ser unanimidades)...

Mas quando a gente fala da prosa, a coisa toma outra forma. Da década de 60 pra cá, a pluralidade de estilos e de experimentos, e a opção por explorar com força outros gêneros além do romance (conto, crônica, memórias, híbridos) fizeram com que surgissem muitos livros importantes, alguns bem lidos, outros quase desconhecidos. Vez por outra, a capa da Bravo resgata algum autor do período, redescoberto através do relançamento de sua obra completa por alguma editora caça-níqueis. E assim vamos vivendo, desconhecendo a maioria das tentativas bem-sucedidas de se desbravar a prosa contemporânea brasileira, reforçando ou recusando a herança que Clarice e Rosa deixaram por aí.

Nas próximas colunas, tentarei apresentar alguns desses livros e autores, como se fosse um diário de bordo. Pra variar, será uma lista passional e incompleta. Mas é a minha contribuição para a arte de botar lenha na fogueira. Aceito sugestões de autores e títulos que, caso eu não tenha lido ainda, devorarei com o maior prazer. Tentarei evitar a geração 90-00, até porque ainda é muito cedo pra gente avaliar a produção desse pessoal (o melhor é ler e deixar-se levar pelo texto, como bons leitores). Vou me concentrar em obras publicadas há pelo menos 10 ou 20 anos. Até porque fazer julgamentos apressados não dão em muita coisa: se, exatos vinte anos atrás, essa viagem pelas últimas décadas fosse empreendida, Lya Luft estaria fácil no rol dos autores promissores, dado o grau de experimentalismo do texto, ainda assim acessível ao leitor médio (eu li As parceiras, de 1980, e posso afirmar sem medo que gostei). Experimentem, se tiverem estômago, ler as bobagens best-seller que a autora publica hoje. Nem sombra dos livros do começo dos anos 80. E por aí vai.
O que eu espero é que essa "jornada" através de livros e autores sirva pra ampliar a discussão, mais que eleger esse ou aquele livro acima dos outros. É muito mais o relato da peneira pessoal de um leitor apaixonado do que a sisudez de um pseudo-crítico wannabe. Mas garanto que vai ser um bom entretenimento. Peguem suas canoas e preparem-se para a travessia que, pra não fugir à regra, também traz suas lemniscatas depois da última palavra... Até semana que vem!

Da arte de lapidar

Erly Vieira Jr
(Publicado em 08.03.2006)

Esta semana fui perguntado, para uma matéria do Século Diário, sobre quais obras capixabas deveriam figurar num rol de livros que todo mundo deveria ler. Na minha listinha, incluí uma obra não muito conhecida, mas bastante apreciada por seus leitores: trata-se de No escuro, armados, único livro de contos de Marcos Tavares, publicado pela coleção Letras Capixabas em 1987.

Recheados de jogos de palavras, neologismos e palavras portmanteau, os textos de Marcos combinam altas doses de nonsense e ironia, em meio a preciosas frases cuja sonoridade em muito as aproxima a versos de um grande poeta. O jogo já começa a partir da epígrafe de Barthes, que abre o livro: "Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz". Ao terminar a leitura dos contos, ficamos fica imaginando o como seria se o autor resolvesse se aventurar pela poesia, trapaceando barthesianamente a própria língua.

A questão é que Marcos publicou esparsamente alguns poemas durante os anos 80, principalmente nas revistas Letra e Imã. Uma pena que esse material encontrava-se meio que oculto, distante até mesmo dos acervos oficiais (leia-se bibliotecas públicas em geral, e as Coleções Especiais da Biblioteca da Ufes, grande salvação da lavoura em se tratando de literatura produzida no Espírito Santo).

Eu disse "encontrava-se", porque o pretérito é o tempo ideal pra situar esse esquecimento apressado. Sim, porque Marcos Tavares finalmente reuniu essa produção em um livro, a ser lançado nas próximas semanas, pela editora Flor&Cultura: trata-se de GEMAGEM (assim mesmo, em caps lock).

Como bem disse Oscar Gama Filho, na orelha de No escuro..., a linguagem de Marcos Tavares é pra ser lida não só nas entrelinhas, "mas também nas entreletras, nas entrepalavras e nas entrefrases". E essas dimensões são tão bem-estruturadas nos poemas graças a um constante exercício de reescritura. Independente de haver poemas que a olhos afobados soem anacrônicos, como os que exploram o apelo visual flertando com o concretismo (ainda que produzidos nos anos 70), o que salta aos olhos é o conjunto de versos lapidados, cuidadosamente posicionados e imprevistos. Tão sedutores quanto os melhores contos de No escuro, armados, como "Auto retrato", "Praça da Esperança" e "Empregos da língua", entre outros.

Exemplo já clássico é "Gema Gemido", incluído em algumas antologias e publicado originalmente na Revista Letra, e que se inicia em grande estilo:"dia a dia, adiado o tardio parto, perto./ festa a floresta porque flore a manhã."

Se Tavares andava sumido faz tempo dos círculos literários da Grande Vitória (desde que foi trabalhar e residir no eixo Guaçuí-Dores do Rio Preto), pelo menos ele manda notícias de vez em quando. Vale lembrar que um conto dele, "Segundo os Sumérios", foi selecionado pelo Edital de Contos 2004 da Secult (e deve sair do ineditismo rapidinho), e que, devezenquandariamente, o escritor ministra alguma oficina literária na região do Caparão. O único deslize de GEMAGEM é a escassez de textos novos (depois de 84, há apenas três poemas), já que o livro deixa uma curiosidade no leitor de saber o que o autor anda escrevendo nos dias de hoje. (Alô, seu Marcos, estamos esperando um novo livro de contos seu em breve, viu?). Ainda assim, ao reunir o grosso da produção semi-inédita do poeta entre 1976 e 1984, GEMAGEM apresenta um excelente exemplo de como a poesia brasileira um dia teve força ímpar (força essa que a gente vive esperando ressurgir na safra atual, tão entretida em circular pelas FLIPs, antologias de blogueiros e cadernos de cultura "zona sul"...).

Marcha de quarta-feira de cinzas

Erly Vieira Jr
(Publicado em 01.03.2006)

Você já ficou com um nó na garganta e uma vontade de chorar depois de ler algum conto? Não? Pois eu já. Diversas vezes, inclusive. Recentemente, a vontade de chorar veio no meio do Transcol lotado, no alto da Terceira Ponte, após as linhas finais de um conto enviado pelo nosso querido editor Vitor Lopes, texto de autoria de Juan Rulfo (do livro O planalto em chamas), que eu recebi por e-mail, imprimi e, inocentemente, pus-me a ler sentadinho num banco do ônibus em pleno final de tarde, no final de novembro passado.

Juan Rulfo, pra quem não sabe, é um escritor mexicano, nascido em 1917 e falecido em 1986, celebrizado por sua obra Pedro Páramo (1955) e pelos contos de O planalto em chamas (1953), ambos em catálogo no Brasil. Ele também dá nome ao Prêmio de Literatura Latinoamericana e do Caribe, concedido anualmente pelo México e recebido, entre outros, pelos brasileiros Nélida Piñon e Rubem Fonseca, em 1995 e 2003, respectivamente.

O conto em questão chama-se "Es que somos muy pobres". Narrado em primeira pessoa, por um adolescente filho de camponeses de poucos recursos materiais, o conto começa com uma frase que já prenuncia o tom da narrativa: "Aqui todo va de mal em peor". Segue-se o relato da morte de uma tia do personagem, rapidamente eclipsado pela ocorrência de uma chuva interminável, resultando numa inundação que levou toda a recente colheita de cevada da família, além da vaca La Serpentina, único bem que o pai havia tido condições de adquirir para o dote da irmã caçula do protagonista, a menina tacha, de 12 anos. A vaca seria uma chance dela possuir algo que atraísse um bom pretendente, e que a livrasse do destino de suas duas irmãs mais velhas, prostituídas mundo afora. Só essa sinopse digna de um filme do De Sica ou do Rosselini já arrancaria lágrimas do fã de melodramas. Mas o buraco cavado pelo autor pra nos derrubar é muito mais embaixo.

A força da natureza é descrita como algo crescente e irremediável, como as imagens da chuva que não parece acabar nunca e da água do rio, cada vez mais espessa e escura, vista pelos jovens irmãos do alto de um barranco do qual põem-se a contemplar impotentes o seu destino.

Rulfo enclausura seus personagens na circularidade de um tempo que nunca passa, de uma pobreza da qual não há saída, e quando a linha reta e veloz do rio impõe-se sobre esse universo, é pra levar pra bem longe toda e qualquer possibilidade dos personagens escaparem de uma tragicidade presente desde seu nascimento. Tanto que a morte da tia é um dado quase irrelevante no conto: no máximo reafirma o irremediável, presente nos seios nascentes de Tacha, que prometem ser pontudos e fartos como os das duas irmãs "sujas" (o termo é do próprio Rulfo).

E aí que vem o golpe de misericórdia: quando Tacha começa a chorar pela perda de sua vaquinha e é abraçada pelo irmão que em vão tenta consolá-la, seu corpo começa a ser descrito como o próprio rio: ela parece chorar a mesma água suja que corre, e seu soluçar assemelha-se ao barulho da correnteza. O corpo começa a correr em linha reta, em direção ao destino já traçado anteriormente; os seios sobem e descem à medida em que ela chora, como nas palavras do autor, "sin parar, como si de repente comenzaram a hincharse para empezar a trabajar por su perdición".

Depois dessa metáfora mais que cortante que Rulfo constrói durante o conto (e, acreditem, o negócio todo só vai quebrar a gente, de surpresa, no último parágrafo), eu não tinha como esconder as lágrimas escorrendo pelo rosto naquele fim de tarde. Nada mais lindo do que traduzir em palavras coisas que a gente julga indizíveis. Depois dessa, Juan Rulfo passou pro meu rol de prediletos. Abri a janela do Transcol pro vento quente de quase verão secar meu rosto e disfarçar a choradeira. A quarta-feira de cinzas havia chegado mais cedo pra mim, exatamente naquele momento.

Próxima parada: Estação Capixaba

Erly Vieira Jr
(Publicado em 22.02.2006)

Duas colunas atrás eu falei do vasto banco de dados que o site Poetas Capixabas disponibiliza na internet. Hoje, vou falar de outro site que abre um espaço preciosíssimo para a produção local: trata-se da Estação Capixaba. No endereço www.estacaocapixaba.com.br, mantido pela Cultural-ES e coordenado pela Maria Clara Santos Neves, encontra-se a seção Bravos companheiros e fantasmas, dedicada à literatura brasileira produzida no Espírito Santo. Esta seção, que fica a cargo do Reinaldo Santos Neves, reúne uma série de textos literários e críticos que permitem ao leitor ter contato com um verdadeiro "quem é quem" da cena capixaba. Basta clicar no link literatura, da página inicial do site, que a viagem tem início imediato.

Logo de entrada, há a seção Visão geral, onde encontramos dois textos preciosíssimos: um texto do Luiz Busatto sobre o modernismo antropofágico no Estado e o Mapa da literatura brasileira feita no Espírito Santo, elaborado por Reinaldo Santos Neves e, pasmem, ainda inédito em livro. O ensaio de Reinaldo parte do período colonial até a virada do século e, além de resgatar momentos importantes, como o Jardim Poético publicado no século XIX e autores como Maria Antonieta Tatagiba e Haydeé Nicolussi, apresenta um riquíssimo panorama sobre o período posterior à década de 50. Eu destaco principalmente a seção sobre os anos 80, considerados a "época de ouro" da produção local, com sua efervescência amplamente detalhada e discutida no ensaio.

Ainda no campo da teoria, temos uma seção com textos críticos acerca da literatura mundial, de autoria de Andréia Delmaschio, Lino Machado e Oscar Gama Filho.
Complementando o estudo de Reinaldo, temos o Rol de autores, com verbetes sobre os principais nomes citados no "Mapa", contendo notas bio-bibliográficas e algumas de suas obras.

Mas o site não se prende só à produção consagrada. Duas outras seções merecem ser destacadas. Uma delas é o Canteiro de obras, contendo textos de diversos autores, talvez a região mais preciosa e saborosa do site. Trabalhos de Luiz Romero de Oliveira, Miguel Marvilla, Luiz Guilherme Santos Neves, Paulo Sodré, Ivan Borgo, além de um romance inédito (O senhor Kurtz, morto) e uma coletânea de contos, ambos de autoria de Renato Pacheco. O canteiro foi iniciado em 2001, com a publicação de "fascículos" iniciais de quatro autores, e permite que possamos ter acesso a pérolas como um livro inteiro de inéditos do poeta Lino Machado e toda a seqüência das aventuras de José Garibaldi Magalhães, o herói da série Dois graus a leste, três graus a oeste, escrita por Reinaldo Santos Neves. Aliás, a série de crônicas protagonizadas pelo jazzófilo purista que detestava Miles Davis é mais uma das incríveis obras inéditas de Reinaldo, talvez o maior prosador residente neste Estado (essa é minha opinião pessoal, mas os textos ilustram isso muito bem). Garanto que não ficam muito atrás se comparadas a romances essenciais do autor, como Sueli: Romance confesso e As mãos no fogo.

Uma última seção que merece nossa atenção é a que contém, na íntegra, o livro A parte que nos toca, coletânea de 2000 que já foi diversas vezes selecionada para o vestibular da Ufes (aliás, sua disponibilização on line ocorreu como parte das comemorações dos 40 anos da Universidade). Pra quem nunca pôde ler a antologia, há muito esgotada, a chance está aí, numa amostra do melhor que se anda escrevendo por estas bandas.

Por essas e outras, a Estação Capixaba é parada certeira em minhas navegações na rede. Espero que daqui por diante, seja de vocês também.

Afinal, pra que serve a tal liberdade de expressão?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 15.02.2006)

Semana passada só se falava no "absurdo" que eram as violentas reações mulçumanas às charges publicadas pelos jornais europeus. De uma hora pra outra a silenciosa Dinamarca de trasnsgressores essenciais como Dreyer, Dinensen, Andersen e Lars Von Trier tinha se tornado o mártir da vez. O "absurdo" maior, para alguns, não era terem colocado a cabeça do primeiro-ministro dinamarquês a prêmio. Era o tal concurso que o governo iraniano estava promovendo, aberto a charges que satirizassem o Holocausto.

Sinceramente, eu acho que essa foi talvez a única sugestão dotada de algum lampejo de sanidade, em meio a tanta histeria coletiva: era uma chance genial de se devolver uma "afronta" na mesma moeda, provocando os tabus alheios. Isso vale muito mais do que qualquer violência física: a ironia é uma bela arma pra se enfrentar a hipocrisia. E o que mais se viu durante esses últimos quinze dias na Europa e no Oriente Médio foi um festival de hipocrisia capaz de rivalizar com praticamente todos os escândalos políticos brasileiros desses últimos quarenta anos.

Tudo bem que quem está por trás da proposta é a mais perigosa das raposas. O "novo" governo iraniano já deu provas da capacidade de ser pior que Saddam, Khadafi, os Talibãs, Sharon, Bush e Tony Blair juntos. Mas a proposta não deixa de abrir espaço para um saudável debate sobre o que realmente vem a ser a tão defendida "liberdade de expressão", não só na forma de liberdade de imprensa, mas também como direito individual inalienável.

O Holocausto é talvez o grande calcanhar de Aquiles da cultura ocidental contemporânea. Numa época em que quase nada é tabu, a lembrança de um dos mais monstruosos (e documentados, o que o torna mais monstruoso ainda) massacres da história da humanidade é sempre evocada em nome da paz mundial. Ao mostrar os extremos de crueldade em larga escala dos quais o ser humano é capaz, o extermínio de judeus e outras "minorias" durante a Segunda Guerra trouxe-nos incontáveis lições. A arte vez por outra se inspirou nesse episódio para produzir algumas de suas obras mais pungentes (o War Requiem de Benjamim Britten, uma lista infindável de belíssimos filmes e a emocionante literatura de sobreviventes dos campos de concentração, como Primo Levi são os primeiros exemplos que me vêm à mente), além de caça-níqueis de todo tipo (inclusive aquele filme oscarizado do Spielberg e, indiretamente, o filhote dele atualmente em cartaz nos cinemas).

A questão é que hoje o Holocausto é usado, principalmente por Israel, como uma espécie de escudo pra justificar toda e qualquer atitude, não só de defesa, mas também de ataque (incluindo muitas atitudes tão abusivas quanto as dos adversários árabes), esvaziando assim, o significado de algo que deveria servir como uma grande lição para a humanidade. Em lugar de se reaproveitar a triste herança da tragédia para se demonstrar as formas nas quais a esperança e a união de forças podem superar a dor (e a criação do Estado de Israel no início trazia essa marca), faz-se uso dessa situação para alimentar o rancor entre as partes em constante conflito. Uma bola de neve daquelas.

Daí que eu retorno à contribuição que, involuntariamente, o "diabólico" governo iraniano trouxe ao debate do livre-pensar/livre-expressar: só mesmo permitindo à ironia questionar as contradições do discurso social é que podemos resgatar o significado simbólico da dor e de suas cicatrizes. A partir do momento em que os dois lados são alfinetados, continua e intensamente, mas de uma forma saudável, ou seja, abrindo espaço para discussões diversas, as diferenças podem ser confrontadas e resolvidas, ainda que de forma bastante lenta. E esse aprendizado passa pela nossa capacidade de ouvir o "diferente" e aprender com ele, ainda que nós sejamos os "mocinhos" e eles, os "bandidos".

Esta semana eu revi um exemplo que se aproxima do concurso iraniano: nos anos 60, frente aos embargos que os EUA promoviam à Cuba recém-comunista, o cineasta cubano Santiago Alvarez fez um dos mais emocionantes panfletos da época (tanto que deixou de ser panfleto com o passar do tempo, e hoje é reconhecido como uma obra instigante): trata-se do curta-metragem Now!, colagem de imagens de negros norte-americanos sendo torturados pela lei e ordem, e de protestos pela igualdade racial, ao som da canção de protesto (então banida) de Lena Horne. Corria o ano de 1965 e o racismo era a grande pedra no sapato norte-americano de então. Alvarez expôs de forma bastante criativa as contradições da dita "maior democracia ocidental". Coisa que os artistas de hoje deveriam fazer.

Aí você me pergunta: "Essa não é uma coluna de literatura? Cadê a literatura?" Pois é. Falei de política, falei de cinema, expus colocações difíceis de engolir, enquanto que a literatura responde a tantas questões com um incômodo silêncio. Hoje os grandes escritores mundiais são cada vez mais chapa-branca, calando-se frente a questões básicas. Ok, não daria pra se ter uma resposta artística imediata e ao mesmo tempo relevante para o que vivemos agora, mas isso infelizmente não serve como esperança de que o episódio possa produzir uma forte reflexão daqui por diante, a ser traduzida nos próximos anos em livros realmente relevantes. Provavelmente, os artistas de hoje vão se calar, como sempre fazem. Enquanto que Pasolini, Wilde, Primo Levi, Genet, Sade, Maiakovski e outros grandes mestres da arte de "cutucar feridas abertas" são freqüentemente citados como referência pelos autores badalados, os tais "contemporâneos" continuam em cima do muro (excetuando-se os autores oriundos das "minorias", que se respaldam justamente por aliarem sua crítica social à pesquisa estética). Ou seja, os contemporâneos fazem questão de se perderem no tempo. Uma lástima.

Não estou dizendo que a arte deva ser veículo para panfletos. Só acho que abrir a boca de vez em quando faz bem, principalmente se a voz que se pronuncia é a dos que são lidos por milhares ou milhões. Acho que é para isso que, no fim das contas, serve a liberdade de expressão. Senão, a gente corre o risco de, no caso de se iniciar uma Terceira Guerra, o coitado do primeiro-ministro dinamarquês (cujo assassinato desencadearia toda a minha fantasiosa catástrofe futurista) acabar virando nome de alguma banda pop de inspiração retrô daqui a cinqüenta anos. Igualzinho aconteceu ao arquiduque Francisco Ferdinando.

Poesia capixaba na internet

Erly Vieira Jr
(Publicado em 08.02.2006)

Semana passada eu mencionei sobre sites que costumam divulgar autores locais. E faltou citar o exemplo capixaba, no ar desde 2003. O site Poetas Capixabas abriga 656 (!) autores, das mais diversas origens. Talvez seja o mais amplo mapeamento de autores capixabas já realizado, embora restrinja-se apenas a poetas. Independente de se gostar ou não desse ou daquele autor incluído, o importante é reconhecer que o site assume o papel de mais amplo banco de dados sobre poesia no estado e, melhor ainda, disponível para consulta pública em qualquer parte do planeta.

Estão todos (ou quase todos) lá: antigos ou contemporâneos, acadêmicos ou vanguardistas, trovadores e transgressores... uma série de biografias acompanhadas de poemas, atualizados com a colaboração dos próprios internautas. E, se ao visitar o site, o leitor sentir a falta desse ou daquele autor, é só acessar a seção Espaço do leitor e preencher um formulário com os dados de quem está faltando (o mesmo serve para atualizar a lista de títulos publicados e participações em coletâneas).

O site é uma louvável iniciativa de Thelma Maria Azevedo, nascida em 1931 em Florianópolis. E o mais espantoso é que Thelma compilou esse imenso banco de dados sem patrocinador algum, privado ou público.

Isso faz saltar aos olhos o absurdo que é a total ausência de bancos de dados sobre a cultura local e nacional mantidos por órgãos públicos. Mapeamentos, disponibilização de resultados em sites e catálogos impressos, nada disso é realizado de forma ampla e sistemática (esporadicamente, ocorrem iniciativas de médio e curto alcance, como o exemplo do site 10 maes vídeo, voltado para a produção audiovisual, ou bancos de dados oriundos de iniciativas particulares). Carecemos de mecanismos que não só dêem visibilidade à produção cultural de municípios, estados e do País, como também de meios de atualizar esses dados constantemente. Meus caros, a discussão sobre a tal "identidade cultural" começa justamente pelo amplo conhecimento da produção cultural de um determinado povo em determinada época (para depois cruzarmos a contemporaneidade com a tradição). Fechar os olhos para isso é admitir em caps lock que se concebe a cultura como sobremesa. E sobremesa, até onde eu saiba, só serve pra criar barriga. Cultura, pra mim, é tão essencial quanto o arroz e o feijão.

O mais engraçado foi que eu descobri esse site através do Google. Sim, eu tenho o hábito de periodicamente jogar o meu nome no Google, "pra ler o que andam escrevendo de mim por aí" (hehehehe). E qual não foi minha surpresa ao descobrir que eu era um verbete no site Poetas Capixabas, e que a página ainda continha uma curiosa seleção de textos do meu primeiro livro? Sem contar que é bem interessante tentar adivinhar os motivos que levaram à escolha desse ou daquele texto pra constar no site...

Bom, o site tá aí. Aliás, não dei o endereço, dei? Então vai lá: http://www.poetas.capixabas.nom.br .

Experimente dar uma passeada pelo site, quem sabe você não consegue garimpar algum autor interessante do qual você nunca ouviu falar (ainda)? E quem sabe, daqui a algum tempo, a gente não encontre por aí outros sites mapeando nossa produção em outras áreas (artes plásticas, música, teatro, entre outros)? Até mesmo pra gente poder separar o joio do trigo e preferir a obra de fulano ou beltrano, precisa-se de conhecer a produção local e nacional, e os bancos de dados são ferramentas fundamentais para se iniciar toda e qualquer pesquisa.

Como o poeta chega a seu público?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 01.02.2006)

Estava eu, num fim de semana de dezembro, passeando por Belo Horizonte quando entro numa livraria e me deparo com o livro de Viviane Mosé sobre Nietzsche exibido com grande destaque nas prateleiras. Ao ver meu interesse, o livreiro ainda comenta que o livro tem tido boa vendagem e que vários clientes têm voltado à loja pra comprar outro exemplar pra dar de presente no Natal. Empolgado com a repercussão do trabalho de Viviane, aproveito pra perguntar se por acaso haveria algum dos livros de poesia dela à venda na loja, já que eu mesmo, apesar de grande fã de sua poesia, nunca consegui adquirir qualquer um de seus títulos. Foi espantosa a reação do proprietário da loja (uma das mais tradicionais livrarias de BH): "Como? Ela também é poeta? Pensei que fosse apenas filósofa!"

A partir desse episódio, dá pra começar a entender a quase inexistente visibilidade da poesia no Brasil. Se Viviane, que é uma escritora reconhecida pela crítica e com livros publicados por editoras com boa distribuição nos grandes centros (Toda palavra e Pensamento Chão foram lançados pela Sete Letras e até no catálogo do www.submarino.com constaram durante algum tempo), é muito mais famosa como filósofa do que como poeta, e seus volumes de poesia são quase impossíveis de se encontrar, imagina o resto dos poetas publicados? Como o já restritíssimo público-leitor de poesia neste país consegue ter acesso aos livros?

Publicar, até que se publica em grande volume neste país. Dia desses, eu me deparei com uma lista de cerca de 7300 poetas publicados, compilada por Leila Miccolis. Lista, aliás, que se amplia quando conjugada às listagens dos diversos sites regionais espalhados pela rede, cada qual atingindo seu estado. Embebido em utopia, alguém sugeria, num fórum de discussões de internet, que os livros de poesia poderiam ter sua tiragem ampliada para mais de sete mil exemplares, porque só os poetas da lista, caso se comprometessem a comprar um o livro do outro, já esgotariam tais edições. Como se o problema fosse esse...

A questão envolve variáveis bem mais complexas, e não falo apenas do preço do feijão que não cabe no poema. Mesmo se os livros de poesia fossem baratíssimos, como fazer com que cheguem aos leitores? Dos tais sete mil e tantos autores, acredito que 90 a 95 por cento deles sequer saiu das fronteiras municipais, quiçá estaduais, e a quase totalidade desse número foi publicada nas mambembes "edições do autor". Publicar, convenhamos é a parte mais fácil. Seja através de Lei de incentivo, seja juntando o dinheiro da rescisão e do FGTS, seja vendendo o carro, publicar um livro é algo relativamente acessível ao brasileiro médio. Volume de produção e público não são exatamente o problema.

A coisa começa a mudar de figura quando a gente pensa na carência de mecanismos que respaldem o melhor dessa produção. Ou seja, a árdua tarefa de separar o joio do trigo. Desde concursos e editais que selecionem e premiem obras de reconhecido mérito literário e possibilitem a revelação de novos talentos, até mecanismos que possibilitem aos bons autores locais serem reconhecidos e publicados por editoras de alcance nacional, e terem a possibilidade de serem resenhados por veículos de ampla circulação. Quantos bons escritores temos em nosso Estado, que mereceriam ser reconhecidos nacionamente? Faça a sua listinha. Agora multiplique pelo número de Estados brasileiros, porque a situação não é diferente no resto do país. Com isso, chegamos a cinco ou dez por cento do número de poetas da lista dos sete mil.

Trezentos e poucos, ou setecentos bons poetas? Ok. Agora, suponhamos que desses, uns trinta bons livros de poesia sejam publicados no país anualmente. Talvez cinqüenta. Onde estão esses livros? Como saber que eles existem, de que forma adquiri-los? Chegamos naquele que, pra mim, é um dos mais fortes empecilhos na relação entre o poeta e o leitor brasileiro: a distribuição a nível nacional do montante editado.
Pense bem, quantas vezes você leu que fulano ou beltrano ganhou o prêmio APCA, Revista Cult, Jabuti, seja-lá-o-que-for, na categoria "poesia", e você nunca conseguiu ver esse livro na sua frente? Com algum esforço dá pra achar no Google uns dois ou três poemas do distinto autor, e só. Raramente o livro está num site à venda, e muitas vezes são pouquíssimos exemplares, rapidamente esgotados. E assim vai.

Voltemos ao exemplo de Viviane Mosé. Recentemente ela lançou um livro com cd, denominado Receita pra lavar palavra suja, pela Arte Clara. Vendia no site da Editora, que está atualmente em manutenção, ou seja, fora do ar. Não consegui achar em loja alguma, nem em Vitória, nem nas outras capitais do Sudeste (e olha que revirei livrarias de todas nos últimos seis meses). Tentei procurar na internet, mas não achei em nenhuma das lojas virtuais que sempre compro. Aliás, ao googlar o nome do livro, quase todas as páginas encontradas referem-se não a ele, mas ao poema homônimo (muito postado em blogs, por sinal, o que reforça que há um público numeroso que cultua a poesia da autora). Ou seja, pra conseguir o livro, só através de uma Via Crucis, ou comprando o exemplar na loja da editora, no Jardim Botânico (no Rio) ou diretamente com a autora, em algum de seus recitais.

Viviane não é a única. Waldo Motta, outro dos nossos autores mais importantes e reconhecidos nacionalmente, praticamente é artigo raro em livrarias, mesmo na Grande Vitória. Eu me lembro que quando o Bundo foi publicado pela Editora da Unicamp, em 1995, era impossível de achar nas livrarias daqui. Choviam resenhas favoráveis ao livro em grandes jornais nacionais, e nada dele nas prateleiras. Ou você comprava na mão do autor, ou ficava sem. Imagina a cena: um autor como o Waldo tendo que vender seus livros de bar em bar, noite após noite, no centro da cidade, em pleno fim de século. Bom, Transpaixão e Recanto, seus livros seguintes (e tão essenciais quanto o Bundo), foram vendidos nesse esquema.

Isso me faz lembrar as estratégias de marketing pouco usuais de um escritor capixaba que, durante os anos 80, reza a lenda, era a estrela de uma série de pichações nos muros da cidade: "Eu li A cumplicidade do beijo de Benilson Pereira e gostei". Tempos depois ele migrou para os rodapés de outdoors e para os cartazes em xerox tamanho A4 espalhados nos orelhões e postes: "Tire seu sonho da gaveta". A estratégia, ao que parece, deu certo. Conheço muita gente que comprou ao menos um livro do Benilson por conta dessa visibilidade toda. Tanto que, dia desses, os postes das placas de sinalização de logradouros do centro da cidade apareceram tomados por cartazes em policromia, nos quais o autor agradecia a cidade pela acolhida nestes vinte e cinco anos, algo do tipo "muitas cidades têm um autor, mas só um autor tem uma cidade", ou vice versa. Mais uma vez, durante o curto período de tempo que essas peças estiveram em circulação, todo mundo viu e comentou, independente de se gostar ou não da poesia de Benilson. Isso mais uma vez nos lembra que, pra poder chegar a seu público-alvo, qualquer que seja ele, o poeta brasileiro precisa atirar para os lados mais diversos possíveis. Infelizmente.

Bom pro bolso, né?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 25.01.06)

E não é que o negócio dos pocket books pegou mesmo aqui no Brasil? Eu lembro que quando eu era adolescente (e isso foi um dia desses) ouvia das pessoas que livro de bolso era "livro vagabundo": fosse pela baixa qualidade do papel-jornal ou das encadernações, ou pelo reprovável hábito de se condensarem os textos originais, causando alterações substanciais (e de gosto duvidosíssimo) com relação à obra original. Lembro dos livros de bolso de coleções supostamente "universitárias" do final dos anos 70, encalhados no sebo, e das edições toscas em papel barato vendidas em bancas de revistas, com suas capas impressas em uma ou duas cores. Nesse formato, obviamente só davam algum lucro as pulp fictions de sempre (Rioki Inoue, com os mais de mil títulos de sua autoria publicados entre 86 e 92 e um título no Guiness que o diga). Ainda assim, agradeço muito a uma coleçãozinha da RioGráfica através da qual pude ler dois textos que fizeram a minha cabeça muitos anos atrás: Diário de um ladrão (Jean Genet) e O deserto dos tártaros (Dino Buzzati) ? livros, inclusive, que só seriam relançados recentemente, e que serão assunto de colunas futuras.

Resultado: toda vez que alguém tentava lançar uma coleção de bolso por aqui, encalhava. Isso desde a década de 30. E o que em todo mundo era sucesso, por aqui encalhava. Uma pena, porque o formato de bolso tem uma série de vantagens: é barato de produzir (não só pelo custo da impressão, mas também pelo fato de que quase sempre esse tipo de edição trabalha com livros já pertencentes aos catálogos das editoras), garante tiragens maiores (permitindo atingir um público mais amplo, que não pode pagar o exorbitante preço do livro no Brasil) e é um produto que agrada ao leitor (já que custa baratinho, cabe em qualquer bolsa, pode ser lido no ônibus-avião-metrô, etc etc etc). Sem contar que, com o livro vendendo bem, a editora pode mantê-lo sempre em catálogo.

Bom, o jogo começou a virar com a entrada da L&PM Pocket nesse mercado, em 1997. Na época, a editora L&PM praticamente tinha sumido do mapa: depois de lançar livros que eram leituras de cabeceira da geração 80 (ao lado dos títulos da Editora Brasiliense), introduzindo à juventude brasileira diversos autores beatniks, noirs, libertinos, glbt, alternativos e esquerdistas em geral, bastante bem-cotados no cânon universitário da nascente Nova República, pouco se ouvia falar da editora. Numa tacada espertíssima, a L&PM começou a reeditar seu catálogo num formato mais barato, mas com uma programação visual atraente e qualidade de impressão boa (nada de papel jornal). Aliou a isso uma excelente estratégia de marketing que hoje em dia inclui displays próprios com os títulos da coleção, e cuja disponibilidade não se restringe ao espaço da livraria: os mais de mil e quinhentos displays encontram-se em bancas de revistas e estações de metrô (na Avenida Paulista, qualquer uma daquelas bancas 24 horas possui pelo menos uns 30 títulos da L&PM Pocket).

As coleções de bolso também incluem títulos de "domínio público", que custam à editora apenas os serviços de tradução. Com isso, tornou-se possível encontrar, a preços bastantes acessíveis, edições decentes de Molière, Shakespeare, Maquiavel, Dom Quixote em dois volumes e até mesmo de certas bobagens milenares resgatadas pelo povo da auto-ajuda, como A arte da guerra, de Sun Tzu, verdadeira praga espalhada neste início de século.

E nisso já se vão quase dez anos de pocket-cultura literária no país. E diversos efeitos indiretos desse processo podem ser observados no panorama literário nacional. Um exemplo bem claro é a grande quantidade de escritores,"dublês de escritores" e blogueiros em geral influenciados por gente como Bukowski e Fante, autores por anos cobiçados nos sebos e hoje encontráveis em qualquer display de livraria. Bem ou mal, o fato desses autores terem voltado às prateleiras aumenta as possibilidades de voltarem a ser lidos e de influenciarem uma certa "pulp fiction" freqüentemente travestida de "nova literatura brasileira".

Outro aspecto curioso é a publicação de obras exclusivamente nesse formato. Não falo apenas de obras literárias como alguns títulos recentes de Dalton Trevisan, mas também de livros técnicos que finalmente podem vir a atingir o grande público. A coleção Leitura, da Paz e Terra (que começou nesse segmento pouco antes da L&PM), que inclui o esquecível A arte da guerra e a impressionante marca de 500 mil exemplares da Pedagogia da autonomia do Paul Freire, detém entre seus títulos obras exclusivas, como O cinema brasileiro moderno, do Ismail Xavier, que permite ao leitor por menos de dez reais ter acesso a uma importante análise crítica do cânone cinematográfico brasileiro, inclusive com uma rara tentativa (talvez a mais bem-sucedida até agora) de se pensar criticamente os títulos relevantes da produção nacional dos anos 70 e 80, extensos territórios a serem desbravados pelos teóricos vindouros (muito embora eu ache que o Ismail nesse livro tenha se prendido muito na produção 70-80 dos diretores do cinema novo, em detrimento de nomes surgidos no período e hoje caídos injustamente no anonimato, e muito embora eu também ache que isso é assunto pra outro colunista e eu mesmo esteja fugindo do meu assunto, pra variar...).

Claro que nem tudo é lindo e maravilhoso nesse segmento: o preço dos livros poderia ser bem mais barato (o preço médio é de 12 a 18 reais, chegando a quase 30 em alguns casos) e autores estreantes poderiam ser contemplados por essas coleções, entre outras reivindicações deste colunista. Mas, pelo menos, o fato de que muita coisa relevante existir por aí em edições de bolso permite que livros sejam efetivamente cogitados para inclusão em listas de presentes de aniversário, natal e "amigo x". O que, num país semi-analfabeto e desmemoriado, que adora aplaudir quase histericamente celebridades recém inventadas e com sobrevida inferior a quinze minutos, já é muita coisa.

Contos fantásticos no labirinto de Borges e outras narrativas fantásticas
Erly Vieira Jr
(Publicado em 18.01.06)

Borges ainda hoje me intriga, e muito. Ele tira meu sono, e ironicamente, me dá muito prazer nisso. Seria o autor do livro que eu levaria para uma ilha deserta, para poder sonhar ao final de cada conto. Talvez ele supriria a solidão que a ilha me proporcionaria (por isso mesmo, espero jamais ter que ir para uma ilha deserta, muito menos sozinho).

É curioso perceber que muito da obra de um dos mais importantes autores do século XX fundamenta-se a partir do diálogo com gêneros bastante subestimados e, por isso mesmo, considerados menores dentro dos cânones da literatura mundial: a literatura fantástica e a narrativa policial-detetivesca. Borges trava declaradamente um diálogo permanente entre obras fundamentais da literatura universal (Homero, Cervantes, Shakespeare, Kafka, As Mil e uma noites) e uma extensa lista de autores bem menos cotados, como Chesterton, Quincey, Stevenson, Wells, entre outros. Ou seja: além de produzir textos fundamentais, Borges ainda acaba servindo como uma espécie de porta de entrada para esses autores todos ? e é aí que a gente descobre que o argentino tem razão, que a obra desses caras é fascinante e que quem tá errado é a meia dúzia de Harold Blooms que passa seus dias elegendo e cultivando seus restritíssimos e incompletos cânones literários.

A antologia organizada por Bráulio Tavares, Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, lançada recentemente pela Casa da Palavra, permite ao leitor conhecer um pouco mais do parentesco entre os contos borgeanos e uma série de escritores, muitos inclusive esquecidos pelo tempo ou relegados ao segundo ou terceiro plano da crítica literária ? só para constar, dos dezoito presentes na antologia, apenas Poe e Kafka figuram ao lado de Borges nos tais cânones. Tavares nos apresenta uma série de contos de mistério e fantasia, escritos por autores que, em sua maioria, influenciaram o escritor argentino, alguns inclusive reunidos em antologias organizadas por Borges e seu incansável parceiro Bioy Casares, como Chesterton, León Bloy, May Sinclair, O. Henry e Eillery Queen.

Alguns contos bem que poderiam ter sido escritos pelo próprio Borges, como o obsessivo relato presente em "O abacaxi de ferro", de Eden Phillipots, ou a interminável busca pela mitológica terra de Carcassone, no conto homônimo de Lord Dunsany. O mais borgeano dos contos reunidos, na minha opinião, talvez tenha sido o único que Borges não tenha lido: trata-se de "A livraria", publicado por Nelson Bond em 1941 (e traduzido por José Paulo Paes para o português ainda nos anos 50), contemporâneo dos primeiros contos do argentino e que aborda um tema muito próximo aos de seus textos: uma livraria de livros não-escritos, apenas sonhados e jamais executados por seus autores.

Outros textos serviram de inspiração confessa para textos fundamentais de Borges: nessa antologia, temos a oportunidade de ler um pouco conhecido conto de H. G. Wells, "O ovo de cristal", constantemente citado como a verdadeira fonte de inspiração para os textos "O aleph" e "O Zahir". Também podemos aqui conferir o conto que deu origem a uma lenda urbana de grande popularidade na época da Primeira Guerra Mundial, os Anjos de Mons (aquela estória em que São Jorge mandou seus anjos para defenderem um pequeno contigente inglês do iminente massacre alemão, fazendo os milhares de soldados adversários tombarem um a um com suas flechas invisíveis): trata-se do conto "Os arqueiros", do hoje esquecido Arthur Machen.

Um outro conto assombroso (perdoem-me o trocadilho!) é uma narrativa fantástica escrita pelo Infante D. Juan Manuel há quase 700 anos (e erroneamente atribuída a Borges): "El brujo postergado", que impressiona por sua concepção extremamente ousada de uma temporalidade flexível, coisa que só habitaria o imaginário ocidental pra valer a partir da Relatividade de Einstein.

O livro ainda conta com um excelente ensaio de Tavares em suas páginas finais (afinal, ele revela o desfecho de contos de suspense, daí estar situado apenas ao final da leitura do volume), aproximando os contos reunidos com as temáticas mais constantes no trabalho de Borges, e que nos traz uma bela metáfora: pensar a obra do argentino como uma longa rua, e os textos da antologia como "ruas transversais que se conectam com ela em diferentes pontos". Um livro obrigatório, pra figurar na estante ao lado dos quatro volumes das Obras Completas de Borges.

A Casa da Palavra também relançou este ano outra coletânea organizada por Tavares, desta vez voltada para a literatura fantástica produzida no Brasil: Páginas de Sombra resgata obras quase esquecidas de Orígenes Lessa, do capixaba Adelpho Monjardim, e de Berilo Neves (este, num inspiradíssimo conto sobre uma misteriosa doença que varreria todas as mulheres do mundo, deixando apenas uma sobrevivente e instalando o caos), ao lado de contos bastante conhecidos de Lygia Fagundes Telles, Murilo Rubião e Machado de Assis e autores que se dedicaram a fundo no gênero fantástico, como André Carneiro, Heloisa Seixas e Carlos Emílio Corrêa Lima (sentimos a falta, justamente, do próprio Bráulio Tavares, referência obrigatória no gênero aqui no Brasil).

Mas o texto que mais me chamou a atenção, no meio dessa gente toda, é o que abre o livro: "Flor, telefone, moça", de Carlos Drummond de Andrade, sobre uma jovem que passa a receber telefonemas de uma voz misteriosa, exigindo que ela devolva a flor que roubara de um túmulo. Drummond, com muita ironia, humor e alguma dor, narra uma estória de pura poesia em apenas cinco páginas, e cujo desfecho, fugindo totalmente do gênero fantástico, nos inunda daquele tipo de melancolia boa que faz a gente querer sair por aí assobiando uma canção triste, porém belíssima.

Sobre os premiados do Edital
Erly Vieira Jr
(Publicado em 11.01.2006)

Bom, agora que saiu o resultado do Edital para publicação de obras literárias inéditas da Secult, acho que valeria a pena fazer uma coluna sobre os premiados. Aliás, ao comemorar os resultados desse Edital (e torcer para que haja muitos outros Editais), estamos celebrando a saída do ineditismo de cinco obras literárias de primeira linha, produzidas aqui e que deverão ser publicadas até o final do ano.

Uma coisa bem interessante acerca do Edital foi abolir a obrigatoriedade de se premiar um livro de cada "categoria" (é de praxe, nos concursos literários, que a premiação seja anacronicamente dividida em categorias: romance, conto, crônica, poesia). Dessa forma, o júri (aqui composto pelos escritores Orlando Lopes, Reinaldo Santos Neves e por mim) pôde se sentir mais à vontade para premiar os trabalhos que mais se destacaram no montante de concorrentes (quase quarenta!), independente do gênero de cada trabalho. Dessa forma, foram selecionados três livros de poesia, um romance e um volume de contos. Confesso que fiquei surpreso com a quantidade de bons livros de poesia dentre os concorrentes, principalmente num Estado em que o gênero literário mais comumente produzido e lido é a crônica.

Dos cinco selecionados, temos dois "estreantes". Eu preferi colocar entre aspas porque, apesar dos escritores enquadrarem-se na definição constante no Edital (que considera estreante o autor que não possui livro próprio publicado), ambos são nomes que já há algum tempo vêm correndo por fora no cenário local.

Bernardo Barros Coelho de Oliveira, professor de filosofia da Ufes, é autor do único romance selecionado, O fotógrafo da primeira-dama. É um livro recheado de uma deliciosa ironia, ambientado numa fictícia capital de um estado cujos governantes estão envolvidos em escândalos inenarráveis e o tempo todo fugindo de aparições públicas, o que faz com que o fotógrafo do título passe boa parte do seu tempo no mais puro ócio, dedicando-se a percorrer a cidade como um "flaneur" benjaminiano. Se a situação descrita acima nos remete imediatamente ao Espírito Santo de quatro, cinco anos atrás, o jogo entre o leitor e a narrativa ganha um atrativo a mais, quando a gente tenta identificar na cidade os logradouros da Vitória real (por mais que a cidade do romance seja intensamente fictícia).

Já Douglas Salomão, que foi selecionado com a obra Zero, é um dos poetas que mais atuaram no cenário local nos últimos anos, mesmo sem livro publicado. Aproximando-se da poesia visual, as artes plásticas e a música eletrônica, os trabalhos de Douglas tornaram-se presença constante em galerias e espaços públicos da Grande Vitória nos últimos cinco anos. Provavelmente você já deve ter lido alguma coisa dele: seja no outdoor com o poema (de uma frase) "Meus olhos olham para as coisas sem minha permissão", instalado em 2004 na Rua da Lama, em Jardim da Penha, como parte de uma exposição do projeto Quanto mais arte melhor; ou ainda, esculpido na parede do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), na exposição Ruído, entre 2002 e 2003: "Aqui,/ a poesia é provisória./ Tudo que fica/ falta."
Douglas também realizou, durante algum tempo, recitais acompanhado do músico Cons, agregando à sua poesia as experimentações da música eletroacústica e eletrônica. Alguns poemas de Douglas, bem como textos em prosa de Bernardo podem ser encontrados na antologia Instantâneo, lançada pela Secult-ES em 2005 e disponível para leitura aqui no Século Diário.

Do livro de contos Enquantamento, de Anne Ventura, pode-se dizer que também é uma estréia. Anne já havia publicado alguns volumes de poesia na adolescência, mas afirma que sua produção como escritora inicia-se com esse livro de contos. E que estréia! Anne apresenta um conjunto de textos bastante envolvente, capazes de fazer o leitor mergulhar em sua leitura ainda nas primeiras linhas, e querer ir mais fundo mesmo sem saber nadar. Enquanto o livro não vem, dêem uma conferida no conto Gastura, escrito na mesma época que os contos de Enquantamento e publicado no Instantâneo.

Caê Guimarães é um dos principais nomes do cenário capixaba a partir da década de 90, tendo estreado com o livro de poemas Por baixo da pele fria (1997), ao qual se seguiu o conto Entalhe final (1999), ambos publicados por Massao Ohno. Particularmente, eu devorei o primeiro livro de Caê, e costumava recitar de memória poemas como "A lua vem da Ásia" (que me lembra o livro de Campos de Carvalho, assunto para uma coluna futura) e "Otimismo Dialético", entre outros. Quando o dia nasce sujo foi a obra de Caê contemplada pelo Edital, e seus poemas aprofundam a escrita esboçada no primeiro livro. Provavelmente eu devo decorar mais uma dúzia de textos desse livro também...

Completando a lista dos selecionados, com o excelente livro de poemas Senhor Branco ou O indesejado das gentes, temos Paulo Sodré, um dos maiores poetas que já passaram por este Estado. Professor do Departamento de Letras da Ufes e vencedor de diversos concursos literários, Sodré começou a publicar ainda nos anos 80, através da Coleção Letras Capixabas, mantida pela FCAA/Ufes durante toda aquela década. Sua obra é composta principalmente por volumes de poesia, como Interiores (84) e Dos olhos, das mãos e dos dentes (92), além de um livro infantil e de um romance, Lhecídio, publicado em 1989. Neste romance, a temática homoafetiva está envolta numa intensa experimentação formal, sem recusar uma sensibilidade profunda, o que o situa a anos-luz à frente dos meros escritores-militantes como João Silvério Trevisan. Eu ainda acho que Lhecídio é um dos mais injustiçados romances dos anos 80, e que se tivesse sido publicado num "grande centro" teria tido uma repercussão à altura da grande literatura que ele contém.

Pra encerrar, gostaria de ressaltar que o júri decidiu conceder três menções honrosas. Na verdade, se pudessem ser premiados oito livros, as menções teriam sido contempladas. Três autores estreantes, cujos trabalhos (muito acima da média) bem que merecem ser aprovados pelas leis de incentivo (alô, Lei Rubem Braga!) e afins. São eles: Alessandro Darós (também participante do Instantâneo), Tatiana Brioschi (anteriormente premiada no Edital de Contos 2004 da Secult ? a ser publicado em breve ? com o originalíssimo conto "Personalidades Anagramáticas") e Fabrício Noronha, videomaker, artista plástico, integrante do grupo Sol na Garganta do Futuro (que mescla poesia e música) e uma das cabeças por trás do coletivo que vem revolucionando a maneira de se fazer cineclubismo no país (precisa dizer o nome?). Ou seja, é pra gente ficar de olho nesses três também: algo me diz que ainda vamos ouvir falar muito deles por aí.

Resoluções de Ano Novo

Erly Vieira Jr
(Publicado em 04.01.06)

Minha mãe me falou que falar mal dos outros sem motivo é coisa muito feia e que meninos como o Diogo Mainardi não vão pro Céu. Bom, uma das coisas que menos quero no mundo é passar o resto dos meus dias no mesmo lugar que esse sujeito. Por isso mesmo, minha primeira resolução de Ano-Novo é nunca mais nem citar o nome de Bruna Surfistinha, muito menos falar mal dela. Isso também vale pra todos os ex-blogueiros metidos a escritores que imitam descaradamente Bukowski, Fante ou os Beatniks. A melhor forma de colocar o que é ruim no seu lugar é elogiar o que é bom. Não comentar sobre livros vergonhosos hypados sabe-se lá por quem ainda é a melhor forma de incentivar o instantâneo ostracismo desses modismos. Que assim seja.

A segunda resolução de Ano-Novo é ler as obras completas do Diogo Mainardi. Se for pra falar mal, tem que ser com total conhecimento de causa. E a terceira é ler as obras completas de Guimarães Rosa. Afinal, depois de atravessar o Mainardi, vou precisar de literatura de verdade pra poder me desintoxicar. Aí, eu aproveito pra terminar a leitura de A montanha mágica, que já se arrasta por muito tempo.
Uma outra resolução, agora falando sério, é rezar todo santo dia pra que apareça uma revista literária decente neste Estado pra poder escoar a produção literária local. Toda vez que vou a Belo Horizonte, eu me sinto o "primo pobre" ao me deparar com o Suplemento Literário editado pelo Governo de Minas. Todo mês sai um caderno inteiro de 24 páginas divulgando (e muito bem) o que rola por lá, enquanto que por aqui, nada. Desde que a revista Você parou de circular (e lá se vão mais de sete anos), o cenário capixaba ficou órfão de um espaço mais amplo pro debate e difusão do que se escreve aqui, seja ficção, poesia, ensaio, crônica ou crítica literária. Que existe muita gente por aqui fazendo boa literatura e bons ensaios teóricos, isso a gente sabe. Falta é oportunidade pra essa produção toda sair da gaveta. Fazer pensamento positivo pra que haja várias boas estréias em livro este ano é a quinta resolução: nós, leitores, merecemos!

Uma última resolução, já que seis é um número de promessas suficiente pro ano inteiro, é continuar fazendo dessa coluna um espaço democrático e instigante acerca do debate literário. Compartilhar novidades, resgatar preciosidades, receber e-mails de leitores com dicas quentíssimas e correr atrás dessas dicas. E, mais que tudo isso, poder celebrar o prazer de se ler um, dois, dezenas de livros. Feliz 2006!

A tal da lista de melhores do ano

Erly Vieira Jr
(Publicado em 28.12.05)

Ah, vai! Não me cobrem essa tal lista, pelamordedeus! Seria uma lista parcial. Injusta. Apressada. Afobadíssima e, no fim das contas, supérflua. Ou será que vocês realmente levam a sério as listas de melhores livros do ano?

Aliás, vocês já pararam pra pensar que quase não existem listas de "melhores livros do ano", enquanto que as listas de filmes, músicas e discos do ano são praticamente a regra, tanto nas revistas sérias quanto nos blogs e fotologs dos amigos? Eu mesmo já postei as minhas faz tempo, no fotolog...

Se vocês me perguntarem qual o filme que mais gostei este ano, eu respondo sem pensar duas vezes: Tartarugas podem voar, do iraniano Bahman Ghobadi, ambientado no norte do Iraque. Se me perguntarem os discos que mais gostei este ano, a resposta não só vem sem pensar duas vezes como ainda tenho o requinte de listar uma série de discos que nem no Brasil saíram, mas que muitas vezes estavam no meu HD desde quando foram lançados (ou bem antes), e de artistas pouco ou nada conhecidos do grande público (só pra saciar a curiosidade dos mais afoitos, eu respondo: I am a bird now, do Antony and the Johnsons e Illinois, do Sufjan Stevens). Agora, listar os grandes livros de 2005 é o tipo de tarefa que não foi feita para mim (embora esta seja uma coluna de literatura).

O motivo é bem simples: o tempo da leitura é outro. Ler um livro não é algo que se encerra nos 80 minutos de duração de um cd ou nas duas horas de um longa-metragem. Um livro pode ficar sobre o meu criado-mudo cinco, seis meses, ou até mesmo devorado em uma noite, uma vez que cada leitura tem seu próprio ritmo: tem dia que leio cem páginas, tem dia que não passo de dois parágrafos, é tudo uma questão de fruição ? acredito que com qualquer pessoa que leia por prazer seja a mesma coisa. Ainda que eu me prontificasse a ler sem interrupções todos os livros que são lançados durante o ano, o máximo que eu poderia produzir seriam julgamentos apressados, e essa coluna seria um amontoado de resenhas que no máximo contariam a trama dos livros. E eu teria que completar pelo menos uma lauda com adjetivos vazios tipo "um dos mais emocionantes relatos sobre tal assunto" ou "fulano demonstra um domínio quase neo-barroco da linguagem ao tingir o sertão com sinuosas e ambíguas tonalidades aquareladas de silêncio e espasmo". Ou, pior ainda, apelaria pro clássico e desgastado "é um livro bastante sensível". Honey, convenhamos: tirando bula de remédio, memorando e laudo de IML, desconheço qualquer coisa que seja escrita sem um mínimo de sensibilidade. Ainda mais em literatura, néam?

Por isso que eu acho muito mais sinceras as descaradas copiagens de releases que a gente lê por aí nas seções de livros dos jornais locais e revistas brasileiros. Mais fácil repetir o que a editora mandou do que ter que emitir uma opinião relevante sobre cada livro lançado e lido, ou na maioria das vezes, folheado rapidamente.

Outro empecilho à elaboração de listas: a dificuldade de se encontrar certos livros, e até mesmo de se saber quais exatamente os livros mais relevantes lançados no planeta recentemente. Enquanto que dá pra acompanhar os lançamentos de filmes com uma certa regularidade (mesmo numa cidade em que os filmes não-hollywoodianos são exibidos com o habitual atraso de quatro a seis meses, de modo que o meu filme predileto do ano foi visto numa viagem ao Rio, pra variar, mas eu também poderia ter tentado baixar num desses emules da vida), uma vez que os circuitos de exibição e crítica, no mundo, já foram facilmente mapeados, o mesmo não pode se dizer dos livros: como irei saber se publicaram uma obra-prima recentemente naquela cidadezinha do Liechtenstein ou no Rio Grande do Norte? Ou até mesmo por uma editora independente, em São Paulo mesmo ou Nova York? Esse tipo de descoberta não se faz em semanas ou meses ? às vezes demoram décadas até os livros serem localizados, lidos por gente mais ou menos influente e incluídos no cânones. Sem contar que a importância de um livro depende muito da sua longevidade, não como best-seller, mas como obra capaz de influenciar gerações seguintes, numa silenciosa vingança contra a miopia da crítica na época de seu lançamento. Ou vocês acham que O processo de Kafka figurava na lista dos 10 mais de 1925? Eu, de Augusto dos Anjos, livro que todo mundo lê hoje em dia antes dos 16 anos, por acaso teve alguma repercussão em 1912?

(Nem vou mencionar a barreira da língua, uma vez que o leitor médio raramente domina mais que duas línguas além da língua-mãe o suficiente para atravessar um livro de cabo a rabo. Certos livros demoram séculos até que suas traduções para o português sejam editadas.)

Um último motivo para que eu justifique a ausência da lista de melhores do ano: o hábito da leitura ainda não se resolveu satisfatoriamente em termos de cultura digital. Por mais que os cybereufóricos jurem de pé junto que ler na tela do computador até com um certo conforto, eu afirmo que ler um livro não-impresso ainda é um grande empecilho (Eu não acredito em e-books!). O velho hábito de virar páginas ainda é mais confortável, e o monitor do PC (ou do notebook) não me permitem ler sentado na cabeceira da cama (ok, o notebook até ficaria um pouco no colo, mas ninguém agüenta seu peso sobre as coxas por muito tempo). Isso, de certa forma, restringe a leitura de uma obra literária ao suporte impresso, o livro, nem sempre tão fácil de adquirir (barato, então, nem pensar!). Enquanto que no meu HD já estão há várias semanas os discos que os Strokes e o Belle and Sebastian ainda irão lançar no começo de 2006, e que em 2005 cerca de uma centena ou duas de discos foram baixados da internet (e deletados, quando não me agradavam mais), o processo da leitura de um livro continua ocorrendo da mesma forma que era quando eu era garoto (e talvez continue a sê-lo durante muito tempo).

Por essas e outras, eu já aviso que só serei capaz de fazer a lista dos melhores livros de 2005 talvez daqui a vinte ou trinta anos. O que, no fim das contas, não é um grande problema, né? E por falar nisso, alguém tem interesse numa lista de melhores de 1976?

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