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5.10.06

Edital de Contos 2004
(Publicado em 27.09.06)

Neste sábado (30) pela manhã, na antiga Fafabes, será finalmente lançado o livro com os doze contos selecionados no Edital de Contos da Secult, realizado em 2004. Como todo resultado de concurso, é bom ficarmos atentos para os novos escritores revelados neste livro.

Alguns dos selecionados são escritores já com alguma estrada, como Jô Drummond, que possui alguns trabalhos bastante interessantes publicados (não só literatura, mas também artigos teóricos) e os dois autores residentes em Guaçuí, Miguel Lamas (que já havia lançado em 2002 o romance O vôo da libélula do Caparaó) e Marcos Tavares, que nos anos 80 havia publicado um único, porém essencial volume de contos, No escuro armados, no qual predominavam instigantes jogos de linguagem e um impressionante domínio da técnica narrativa (motivos que fazem, inclusive, do conto "Segundo os sumérios" um dos meus prediletos dentre os doze que compõem o volume).

Mas há também uma leva bastante interessante de escritores inéditos dentre os participantes. Alguns deles, como Carlos Calenti Trindade e Ronald Alves já haviam publicado alguns textos no zine literário Entrementes, produzido por estudantes de Comunicação da Ufes. Calenti, autor de outro dos meus contos prediletos dentre os da coletânea (e um dos mais promissores autores desse rol), também já teve seu conto "A cabra-cega dos corações miseráveis" publicado na revista eletrônica Paralelos, além de manter um blog onde publica alguns textos inéditos (muito bons, por sinal). Outros blogs que eu acompanhei por muito tempo foram os de Dante Ixo e André Graciotti, que também são conhecidos por desenvolverem outras atividades artísticas: Dante é membro da banda Solana e André é guitarrista da banda Terrorturbo e co-diretor dos vídeos Minuto Final e Pedestre (ambos exibidos no Vitória Cine Vídeo, em 2003 e 2004), além de ser um dos editores do site www.outernative.net.

Outros dois contos bastante interessantes são os de Janaína de Moraes (lembro que na época ele impressionou os jurados de modo unânime) e as "Personalidades Anagramáticas", de Tatiana Brioschi. Esse conto, surgido da participação da autora na Oficina Poiesis, ministrada por Waldo Motta em 2003 e 2004, na Biblioteca Pública Estadual, é talvez o mais ousado dentre os textos do livro, em termos formais: trata-se de um exercício borgeano de biografias fictícias, elaboradas a partir de alguns raciocínios anagramáticos, e com um senso de humor bastante peculiar. É o tipo de texto que a gente termina de ler e fica louco atrás de outro texto do mesmo autor...

Por fim, aproveito para falar da ilustração da capa. Trata-se da reprodução de uma pintura de Thiago Lessa, anteriormente apresentada numa das mais importantes exposições já realizadas a partir da produção capixaba, o Ruído, que ocupou o Museu de Arte do Espírito Santo na virada de 2002 para 2003. Uma das cenas mais marcantes era exatamente a série de gigantescas pinturas penduradas nas sacadas do MAES, apresentando à população a riqueza das artes plásticas capixabas. A figura do homem que olha para o horizonte (como dizia Fernão Ferreiro/Renato Pacheco, "agora tudo é novo e ao longe nos conduz") soava como uma espécie de síntese de uma certa atitude de se apresentar a arte como espaço de reflexão da urbanidade, em toda sua pluralidade. Ou seja, fala-se aqui da produção artística reapresentando o mundo cotidiano, sob novos e diversos pontos de vista. Essa atitude de procurar a diferença e aprender com ela meio que norteia o propósito do livro, e eu espero muito que as apostas nesses novos autores se concretizem o mais rápido possível. Espero que todos façam muito barulho ainda...

Cadê Teresa?
(Publicado em 20.09.06)

Sobre a escritora Teresa Veiga há informações escassas. Respeitadíssima pela crítica literária portuguesa, Teresa consegue manter-se totalmente avessa à exposição midiática, sem dar entrevistas nem revelar detalhes de sua vida pessoal, numa época em que escritores fazem mais barulho com sua vida pessoal do que com sua obra (neste 2006, os exemplos de J.T. LeRoy e Gunther Grass são os mais visíveis, embora no caso do Gunther a discussão mereça uma coluna inteira, dada sua complexidade). A própria biografia da autora, divulgada pelo site do IPLB (Instituto Português do Livro e das Bibliotecas) dá poucas pistas a respeito da autora, fazendo referências apenas à data de nascimento da autora (1945), às graduações em Direito (1968) e Românicas (1980) e ao exercício da atividade de Conservadora do Registro Civil entre 1975 e 1983. Além disso, sabemos que ela ganhou alguns prêmios literários importantes e publicou os volumes de contos Jacobo e outras histórias (1981), O último amante (1990), História de bela Fria (1992), As enganadas (2003) e o romance A paz doméstica (1999). Desses, As enganadas acaba de ser publicado no Brasil, numa parceria entre a Editora 7Letras e o IPLB.

Melhor assim. Sabendo quase nada sobre a autora, a tarefa de mergulhar na leitura de seu volume de contos recém-publicado é executada com maior liberdade, e cada virada de página propicia uma nova descoberta. O livro reúne três contos longos e bastante densos, todos protagonizados por mulheres que, em dada altura de suas vidas, percebem que foram, de alguma maneira, foram enganadas em alguma de suas crenças fundamentais.

"A morte de um jardineiro" conta a estória da esposa do governador civil, que um belo dia percebe, após a leitura de um livro, que a aparente felicidade de seu casamento era ilusória. Ela tenta manter a normalidade de seu cotidiano, mas a morte do jardineiro que trabalhava em sua residência desencadeia uma série de reações que a fazem assumir a falência matrimonial. Ela decide se retirar para a propriedade de campo do casal, o que provoca no marido a desconfiança vã de que ele o traía com o funcionário - quando na verdade ele reluta em admitir que ele e a esposa eram completamente desconhecidos entre si, apesar de anos de convívio. Teresa escapa das saídas óbvias, conduzindo a narrativa ao redor do vínculo de cumplicidade que se estabelece entre a esposa infeliz e a viúva do jardineiro, numa narrativa que evoca sutilmente o caráter epifânico de uma G.H. lispectoriana (ops, esbarrei no clichê de juntar "epifania" e "Clarice" numa mesma frase, me perdoem...).

"Danças húngaras de Brahms" estrutura-se sobre a desconfiança de uma mãe acerca da orientação sexual de seu único filho, cuja vida íntima é-lhe bastante nebulosa, apesar de residirem na mesma casa. Teresa constrói uma narrativa a partir de uma investigação empreendida pela mãe e por uma amiga, repleta de ansiedade e angústia à medida em que se aproxima a constatação dos fatos. Numa certa altura do conto, empreende-se um longo flashback que remonta à infância da protagonista, revelando-nos os modos masculinos de uma irmã que não lhe envia notícias suas há muitos anos. A narrativa assume-se como delirante, e o leitor é conduzido ao clímax sem perceber os sutis artifícios da autora para estruturar esse denso devaneio.

"Confidência barreirense" é narrado em primeira pessoa. A protagonista também foi, tal qual a autora, Conservadora do Registro Geral. Chegamos a supor, por alguns instantes, que seja uma narrativa baseada em algum episódio real, embora a autora tenha o cuidado de maquiar as datas, situando o episódio quase meio século atrás. Depois da segunda página, pouco importa ao leitor se há ou não verossimilhança com a biografia da autora: o espaço narrativo está tão bem definido que aceitamos embarcar no jogo sem contestar regra alguma. A confidência do episódio revela a ambigüidade moral (mas não ética) da protagonista, e aceitamos ser cúmplices de sua pequena transgressão.

Aliás, aceitamos ser cúmplices dos três episódios, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se também participássemos da oscilação moral a que os personagens estão submetidos quando da revelação dos embustes. O tempo todo a narrativa engana o leitor, que aceita participar do engodo, quem dera se todo engodo fosse assim. E quem dera se toda literatura contemporânea fosse assim. Ao menos estaríamos poupados de nulidades como J. T. LeRoy que, na falta de coisa melhor para escrever, fazem dos factóides de sua biografia matéria-prima de uma narrativa midiática de caráter duvidoso. Teresa Veiga, não. Ela prefere o anonimato, enquanto que seus personagens povoam nossas noites insones e vêm nos visitar a qualquer hora do dia, em qualquer de nossos momentos mais silenciosos. E vêm sem pedir licença, como todo personagem marcante do cotidiano que aflora em nossas lembranças. E o pior é que a gente deixa entrar. Afinal, eles são quase de carne e osso.

Bravos companheiros e fantasmas
(Publicado em 13.09.06)

A coluna de hoje é bastante curta, mas o assunto é de vital importância. É que vale muito a pena dar uma passada no Bravos Companheiros e Fantasmas: II Seminário sobre o autor capixaba, que será realizado entre os dias 13 e 15 de setembro (ou seja, de hoje até sexta) no Auditório do IC-II, na Ufes. Afinal, não é todo dia que podemos apreciar um evento totalmente dedicado à produção literária local, não só com apresentação de estudos críticos e teóricos, mas também abrindo espaço para que escritores possam relatar suas experiências.

Nesta edição do Seminário, teremos sete escritores, em três mesas, discorrendo sobre suas obras: Luiz Guilherme Santos Neves, Pedro J. Nunes, Reinaldo Santos Neves, Sérgio Blank, José Irmo Gonring, Anne Ventura e Bith. Vale lembrar que desde a primeira edição, em 2004, esse espaço ao escritor é generosamente concedido pelo evento, algo bastante raro nos congressos literários (mesmo nos mais importantes nacionalmente), restritos basicamente ao olhar dos pesquisadores, raramente contrapondo-os ao pensamento de autores em constante e incansável produção.

Cinco conferências serão apresentadas durante o evento: Francisco Aurélio Ribeiro vai falar dos cronistas (e das cronistas, como Haydeé e Carmélia), Tida Carvalho falará dos Diários Selvagens de Carlinhos de Oliveira, Bernadette Lyra terá dupla presença (falará do Ticumbi e será o objeto da fala de Deneval Siqueira) e Deny Gomes vai falar sobre "Imprensa e literatura no Espírito Santo", destacando episódios como o antológico projeto Nossolivro, nos anos 90 e o fundamental papel de Amylton de Almeida no cenário jornalístico e literário do Estado. A conferência de Deny abrirá o Seminário, que este ano é dedicado ao Amylton. Sucederá a fala de Deny uma mesa redonda dedicada ao autor, na qual João Barreto falará da clássica sensação de se viver exilado em Vitória, um dos temas fundamentais do romance A passagem do século, enquanto que Virginia Albuquerque analisará A autobiografia de Hermínia Maria, por sinal, meu livro predileto dentre os de Amylton.

Uma série de mesas-redondas completa o evento, passeando por assuntos tão diversos quanto a produção literária infanto-juvenil, o fescenino Cantáridas, o compositor Sérgio Sampaio e autores da importância de Maria Antonieta Tatagiba e Carlinhos de Oliveira (aliás, o "nome fantasia" do Seminário é tirado do belíssimo livro de contos homônimo, publicado pouco depois da morte de Carlinhos). E até eu estarei em uma delas, dedicada ao recém-lançado romance Kitty aos 22: Divertimento, de Reinaldo Santos Neves. Livro que, convenhamos, merecia ser indicado ao vestibular.

Nem preciso reforçar a importância de um evento dedicado à crítica e reflexão sobre a produção literária capixaba, ou será que preciso? Todo mundo sabe que a literatura é fundamental para uma discussão da experiência de se viver numa determinada época em uma determinada sociedade (acredito que isso possa ser chamado de "identidade cultural"), e discutir suas transformações históricas e estéticas é discutir as transformações da própria sociedade. Só aí já temos um motivo imenso para pelo menos dar uma passadinha por lá, né?

Literatura e outros sistemas de significação no Espírito Santo hoje (Parte 2 de 2) (Publicado em 06.09.06)

Continuando a discussão da coluna passada [ver link ao final], vamos aos highlights do debate realizado no Up em junho de 2005, com os escritores Douglas Salomão, Orlando Lopes e Gabriel Menotti.

Douglas Salomão: "Eu penso que o blog tem muito esta característica do instantâneo, do imediato, embora eu demorasse a postar até 15 dias. Ainda assim, a produção escoava de maneira bem mais veloz do que através dos meios impressos. Talvez por possuir este caráter imediato, esses textos acabam criando um corpo, uma cara. E às vezes é muito interessante isto, coisa que você não consegue numa coisa mais sedimentada, num livro.

Antes de entrar para o curso de Letras, eu ouvi de pelo menos três pessoas "cuidado, você vai fazer o curso de Letras e ele vai te endurecer". E eu pensava: "Será que se eu fizer Letras-Português eu vou perder o que eu tenho?" No curso, te cobram muito texto. Você tem que ter um tempo muito grande para lidar com esta coisa formal. Mas você pode articular sua arte de escrever nesta coisa formal. Combinando as duas coisas você resolve um primeiro problema que seria não abandonar completamente a poesia neste sentido de criar uma atmosfera interessante para um texto. Eu penso que não tem como negar que a gramática existe. Parece uma grade com várias caixinhas em que você pode colocar significados dentro. O interessante é que você pode destruir isso. O grande lance da poesia é você esvaziar este sentido mesmo, trabalhar com a ausência de sentido das palavras e aí sim ressignificar estas coisas, fugindo dessa estrutura amarrada. Se a gente pensar que existe um lugar que é possível você fugir desta fôrma que seria a gramática, aí eu acho que não tem como a gente endurecer muito. Você pode navegar numa ordem não linear, ter um pensamento mais oxigenado e produzir coisas muito interessantes. Eu acho que é uma batalha diária.

Um livro é palpável, você pode andar com ele. O computador, por mais que tenha todas estas possibilidades e facilidades em relação ao texto e à literatura, eu acredito que tem uma coisa que fica um pouco distante ainda. Na tela parece que ainda falta um pedaço para aquilo se concretizar. Parece que ainda não está pronto e que com o livro funciona mais. É mais fetiche que a tela do computador. Não é valorar, são duas coisas diferentes. Acho que a literatura ganha um efeito diferente nesta recepção."


Gabriel: "Nunca vi uma experiência de literatura hipertextual que tenha dado certo, que seja literatura. Parece mais hipertexto, experimento em hipertexto, do que uma coisa literária, que arrebata e deixa o leitor eufórico. A web é um caminho para jogar o texto que não é uma obra fechada. Hoje, a idéia de livro publicado é muito mais fluida. O sistema de publicação em blogs é muito bom, porque você está escrevendo e publicizando assim que vai terminando. A relação escritor-público muda muito."

Orlando: "Poesia é uma coisa, computador é outra. Eu não tenho uma coisa de compor para. O que eu tenho certeza que eu comecei a absorver que está associado ao digital é uma aceitação da teoria do ideograma, do Haroldo de Campos. Usar internet com freqüência facilitou entender como isto se estrutura. Em relação à linguagem propriamente dita, eu tento aproximar o máximo possível de uma linguagem de ideograma usando apensar os caracteres que tem no teclado do computador. Pensar visualmente a distribuição e sobreposição das coisas na página sem usar caracteres que não estejam disponíveis direto no teclado. Formalmente, o computador condiciona o que estou escrevendo bastante neste sentido.

Eu sempre fui muito tranqüilo quanto à idéia de existir uma língua culta e de existirem as tais variedades. Eu nunca tive problema de identificação em relação a isso. Conseguia acompanhar o que era a gramática. Acho que dentro da poesia eu nunca quebrei a sintaxe da gramática, na verdade eu hiperbolizava a própria gramática. Eu tento não contrapor a regra da gramática, mas usar as ambigüidades que a gramática tem. Tudo o que as pessoas colocam como defeitos da gramática eu uso para duplicar o sentido que pode ter no mesmo verso. Pontuação é outra coisa ótima para abrir sentidos. Então eu tiro a vírgula. O leitor que se vire para selecionar e encaixar um jogo dele para marcar por onde ir a leitura.

A literatura não é aquilo que o cara está fazendo, mas o que os leitores irão fazer com aquilo que estão lendo. Para o blog não muda nada em relação ao livro. Eu vejo muito pouca coisa que tenho projeto editorial suficiente para ter apelo. Não há crítica de prosa, muito menos há crítica de poesia. Onde é que estão os blogs de poesia? Ou é muito difícil encontrar ou não tem. Não aparece. Não se promove. Não tem interesse como um produto de cultura".

Literatura e outros sistemas de significação no Espírito Santo hoje (Parte 1 de 2)
(Publicado em 30.08.06)

Em junho de 2005, ainda quando eu trabalhava na Secult-ES, participei da organização de um ciclo de debates sobre literatura contemporânea no Espírito Santo, realizado no Centro Cultural UP, por ocasião do lançamento do livro Instantâneo. O segundo debate reuniu três dos participantes do livro para discutir a interface entre literatura e suportes digitais no Espírito Santo: Douglas Salomão, Gabriel Menotti e Orlando Lopes. Na coluna de hoje eu apresento alguns trechos da mesa-redonda, em que os autores falavam da relação entre suas respectivas produções literárias e outros sistemas de significação, em especial as tecnologias digitais.

Os três autores tinham em comum o fato de terem publicado parte de sua produção literária em blogs, durante algum tempo. Além disso, Douglas é um dos principais experimentadores de poesia visual em terras capixabas (sendo bastante conhecido também por seu trabalho como artista plástico), Orlando durante um bom tempo promoveu a lista de discussão virtual Itext, e o Gabriel participou de diversas ações e projetos em suportes digitais, seja na música, na literatura ou no cinema (tanto realizando animações quanto no campo do cineclubismo digital) - e muitas de suas reflexões podem ser acompanhadas através de sua coluna semanal aqui no Caderno Atrações, toda sexta. O bate-papo caminhou para uma discussão bem interessante sobre como produzir literatura aqui no Estado neste começo de século, deixando o assunto inicial um pouco de lado. Achei que não cabia manter as transcrições na gaveta pro resto da vida, então aí vão alguns trechos, divididos em duas colunas (nesta, as falas iniciais de cada um; na próxima, os debates):

Douglas Salomão: "Quando você está direcionado a fazer uma coisa você começa a pesquisar através do seu próprio olhar, além da prática. Calhou de cair na minha mão um monte de fotolitos do jornal A Gazeta. Muita palavra, textos, propagandas publicitárias, imagens. Eu peguei estes fotolitos e comecei a alterar raspando. A parte visual começou a se fundir com palavras. Eu não sabia onde eu ia chegar com isso, mas foi muito significativo.
Eu participei de alguns grupos de estudo ligados à filosofia, psicanálise e literatura, com Waldo Motta e Viviané Mosé. Aí meu trabalho plástico, de cinco anos para cá, começou a ganhar característica bem literária. Os poemas que eu comecei a escrever eu passei a pensar também num suporte para eles. Como eu poderia dar um corpo para uma palavra? Como extrapolar o espaço de um livro? Muita gente classifica como poesia visual, poesia concreta. Eu não me preocupo em classificar, mas em produzir.
Eu acredito que navegando neste espaço da literatura e da arte, chegamos num lugar que é muito curioso, onde você não sabe muito das coisas, mas a cada momento vai descobrindo. Nós somos bombardeados diariamente por imagens, por palavras. E não tem como você negar o seu olhar. Nós que temos que criar o filtro. Será que eu aceito, vou absorver aquilo ou não? Ainda que você fale que não quer lembrar daquilo, você já está lembrando porque você viu".


Gabriel Menotti: "A poesia parece estar sempre mais aberta a estas experimentações, a se fundir com outras coisas. A prosa parece ser muito fechada. Eu gosto de muitas coisas, me envolvo com muitas coisas, mas costumo segmentar muito. Eu faço animação, mas é animação simplesmente; eu escrevo, mas é texto mesmo o que escrevo. Eu tenho um fetiche muito grande por ver o texto no papel.
Hoje em dia somos contaminados por sistemas de significação os mais diversos. Isto acaba afetando não só a poesia contemporânea, mas muito da prosa contemporânea também. Escritores americanos pós-modernos vão beber em fontes de videogames, em filmes, em canções populares. É um pouco o meu caso infelizmente ou felizmente. Eu nunca gostei de poesia, não leio poesia. Mas hoje em dia o que eu mais escrevo é poesia. Quando eu escrevi meu livro de poesias as principais referências que eu tinha eram um CD do Marilyn Manson chamado "Anti-Christ Superstar" e uma história em quadrinhos do Grant Morrison chamada "Os Invisíveis". Isso acaba afetando o conteúdo.
A forma que eu busco é quase simbolista. Eu gosto muito do verso métrico, da coisa bem enquadrada. Faço sonetos às vezes. Só que minhas referências são essas. Além do próprio arcabouço de referências, esta coisa da produção digital é muito importante hoje em dia. O próprio programa editor de textos alterou muito nossa forma de escrever. Hoje em dia nossas ferramentas de escrever são digitais na mesma medida em que um texto é digital. Tudo no fim das contas é um código de máquina numérico. Grande parte do nosso mercado editorial hoje é puramente virtual. Esta literatura de blogs, os portais literários são coisas que nunca vão ser publicadas e que têm uma existência muito sólida. E há quem diga que daqui a pouco os próprios escritores vão ser eles próprios programas.
Hoje em dia, escrever está se tornando também uma coisa longe das próprias palavras. Mais uma operação talvez táctil, porque você está muito em contato com o texto que está escrevendo. Eu, quando escrevo, sinto muito isso. Estou jogando as palavras no papel e penso na medida em que elas estão aparecendo ali.
Eu achei interessante quando o Douglas falou que ele produz o poema. É uma coisa muito contemporânea. Na medida em que a escrita se torna um processo cada vez mais fluido, o significado da palavra ficar além da palavra ele se aproxima do ato de escrever. Acaba virando um jogo de combinação no texto. Embora eu busque no final uma forma mais quadrada e mais chata do mundo, eu me sinto jogando alguma coisa".


Orlando Lopes: "Literatura é o texto sendo lido. Não é o papel impresso. Só existe literatura quando as pessoas estão lendo.
Quando eu vim de Guarapari para Vitória, eu vim na esteira do pico da série Letras Capixabas. Eram livros cuja distribuição chegava a vários lugares, lá em Guarapari eu lia quando estava sendo lançado em Vitória. Isso criou na minha cabeça uma imagem de que as pessoas publicavam constantemente em Vitória, todo mês tinha um livro nas bancas. Não era muito bem assim, eu peguei no fim, em 1991, quando acabou a abordagem editorial de literatura pela Ufes, através da Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Nos anos 90 ficou um vácuo editorial. Não se parou de publicar no Espírito Santo, mas se desfez uma referência de que as coisas estavam aparecendo em algum lugar. Não tem resenha em nenhum lugar, não tem crítica, não tem circulação.
A necessidade de escrever é muito diferente daquilo que paramos para pensar a partir da idéia de sistema literário, da idéia de obra. Quais são as fantasias que temos a respeito do que é ser escritor?
Poesia tem um processo muito mais complicado do que prosa, porque as pessoas estão habituadas com os modelos da prosa, que são mais fáceis de ser acompanhados. Poemas podem não ter tema.
A vida inteira eu estudei para tentar ajudar as pessoas a serem claras quando elas falam e quando eu escrevo não consigo me comunicar, porque a poesia não permite fazer isso. Se for para entender não precisa.
Quais são as ferramentas? O que eu uso para escrever que faz um texto meu ser diferente de qualquer outra coisa que eu tenha visto antes, que produza um efeito diferente do que eu tenha sentido antes?
Eu tenho escrito uma poesia que reflete uma estrutura do próprio pensar, que é fragmentada pelo tipo de circulação de informação disponível hoje para as pessoas".

Metáforas náuticas
(Publicado em 23.08.06)

Em seu ensaio "Metáforas náuticas", Walnice Galvão busca traçar um paralelo entre as alusões ao universo marítimo em "Desenredo" e a própria construção narrativa do conto de Guimarães Rosa. Para isso, ela parte de um breve inventário das imagens do mar na literatura brasileira, a partir de seu registro mais insólito, "porque o mais seco": o sertão.

Esse mapa ligeiro vai da diversidade de recursos utilizada por Euclides de Cunha em Os sertões (anamnese, analogia com paisagens costeiras, comparação dos movimentos grupais com fenômenos marinhos, a expressão "o sertão vai virar mar") à leitura proposta por Graciliano Ramos (de que tais alusões presentes na língua do sertanejo seriam fixações da fala dos navegantes portugueses) e chega ao universo de Rosa, em que o sertão é, em suas diversas acepções, o cenário principal, seja como configuração geográfica, projeção psicológica, ou a partir da oposição ao universo urbano.

Mas é a partir da oposição sertão/oceano, ou melhor, do par seco/úmido que Walnice constrói sua análise, centrando-se no conto "Desenredo", em que o paciente sertanejo Jó Joaquim reinventa o passado equívoco, levando os personagens a acreditarem que nunca houvera um passado de infidelidades, crimes e maus comportamentos em sua relação conjugal.

Walnice destaca uma série de procedimentos adotados por Rosa em "Desenredo", como o uso de neologismos, termos raros, sintagmas ousados e recriações de expressões populares. Ela centra sua análise, contudo no levantamento de uma série de "alusões oceânicas", como nos provérbios "proferidos como comentários do narrador às peripécias da narrativa" (p.123): "voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento" (reelaborado a partir do "de vento e popa"), "todo abismo é navegável a barquinhos de papel" e "a bonança nada tem a ver com a tempestade". A essas alusões, são acrescidas outras referências à umidade ("sutil como uma colher de chá", "afogado de tifo", "o trágico não vem a conta-gotas", "no frágio da barca", "claro como água suja").

Esse acúmulo de "imagens do úmido", ainda segundo Walnice, justifica-se por um elaboradíssimo jogo iniciado pela referência sutil a Ulisses, arquétipo do navegador, e sua conjugação entre sabedoria e loucura, quando do início do processo de desenredo adotado por Jó Joaquim. Esse jogo, que evoca a equiparação entre existência humana e odisséia, evita a metáfora de travessia, tão cara a Grande sertão: veredas, e opera em outras instâncias - seja na fusão do "sedentário" e do "marinheiro" ("aquele que traz as boas novas") operada no narrador, seja na reinvenção do sertanejo, "que narra a honra em outro líquido, o sangue" (p. 127), estereótipo também desenredado nesse conto em que a reinvenção não é apenas do episódio amoroso vivido por Jó Joaquim.

Assim, por sucessivos "desenredos" nos diversos níveis do discurso, Rosa, segundo Walnice, constrói sua fábula, "pondo-a em ata" e apontando para novas possibilidades de significação.

Direito autoral vs. "direitos" do leitor

Vou contar uma estorinha pra vocês. Nem a carochinha seria tão criativa.

Queridos leitores, estava um amigo meu dia desses na casa de outro amigo doutorando em Literatura pela UFF, quando ele comenta da dificuldade em encontrar, nos sebos e bibliotecas das universidades cariocas/fluminenses, um exemplar que fosse de um livro essencial para a escrita de sua tese. Para ser elegante e manter o sigilo, digamos apenas que tratava-se do volume dos diários completos de um importantíssimo mas não muito badalado escritor brasileiro cujo romance mais importante, recheado de incesto, adultério, travestismo e relações familiares deterioradas (numa trama capaz de corar o Manoel Carlos) mereceu uma coluna inteira quando falei da produção brasileira nos últimos 50 anos. Estes Diários estão fora de catálogo há 30 anos, diga-se de passagem. O Amigo nº 1 lembrou ao Amigo nº 2 que, muitos anos atrás, quando era estudante, ele havia lido tal livro, e que havia um exemplar disponível na Biblioteca Central da Ufes. Vendo o brilho nos olhos do Amigo nº 2, aquele brilho de "ainda existe uma luz no fim do túnel", o Amigo nº 1 ofereceu-se para cometer a contravenção de fotocopiar passagens do livro e enviar-lhe via sedex.

Então, o Amigo nº 1 conseguiu o exemplar emprestado com uma estudante da Universidade (os nomes dos envolvidos serão mantidos em sigilo pelo bem de todos nós) e dirigiu-se, feliz da vida, a uma copiadora. Optou por fazer as cópias dentro de uma faculdade, uma vez que o preço das fotocópias em qualquer campus da cidade chega a ser metade do que se cobra dos portões pra fora. Foi à faculdade, relativamente próxima à sua residência. A atendente da xerox veio sorridente, mas seu sorriso logo murchou quando o Amigo nº 1 mostrou as passagens que precisava fotocopiar (digamos que era uma parte substancial do livro). Ela disse que não poderia atendê-lo, porque o total ultrapassava em muito o montante que a lei permitia copiar (os tais 10% do número de páginas). Ele tentou insistir, e ela disse que mesmo assim não daria porque com isso ela infringiria ordens superiores e correria o risco de perder o emprego, e apontou uma câmera de vídeo (afinal, era uma universidade privada, obviamente monitorada em cada canto de suas instalações por razões de segurança). Naquele momento, o Amigo nº 1 deu-se conta de algo inimaginável: as câmeras de segurança monitorando panopticamente se os funcionários estavam saindo da linha. Acho que ele ficou mais chocado ainda quando percebeu que tal procedimento era resquício do que o Foucault chamava de "sociedade disciplinar", e que seus anos de estudo eram capazes de fazê-lo jurar que esse negócio de "sociedade disciplinar" era coisa de um passado vitoriano, que vivíamos já há uns 30 anos o que o Deleuze chamava de "sociedade de controle", tal qual está escrito naquele texto curtinho e visionário que todo ser humano deveria ler, o tal Pós-escrito sobre as sociedades de controle.

Ainda embasbacado com a descoberta dupla (de que não poderia tirar fotocópias e de que o seu mundo real estava atrasado em relação à sua filiação teórico-acadêmica), o Amigo nº 1 tirou as cópias permitidas e voltou pra casa para esboçar um plano que não deixasse o Amigo nº 2 na mão.

No dia seguinte, ele foi à copiadora, e tirou mais 10% do livro. Saiu de lá e começou a abordar os estudantes que passavam do lado de fora. Contou todo o seu drama, disse que não poderia esperar dez dias para tirar as cópias que o Amigo nº 2 precisava, porque a tese dele tinha que ser defendida até dezembro, e com isso obteve a solidariedade de alguns. Essas raras almas caridosas entravam na copiadora, com o livro debaixo do braço, e o dinheiro entregue pelo Amigo nº 1 e tiravam mais dez por cento do volume. Em alguns minutos, o livro estava totalmente copiado.

Ah, esqueci de contar outra coisa. O Amigo nº 1 não podia ser flagrado cometendo tal ato em nenhuma de suas etapas, pois seria um crime. Isso incluía a postagem nos correios. Assim sendo, cada alma caridosa que ajudava tirando cópias em seu nome colocava-as num envelope destinado ao Amigo nº 2 e assinava como remetente. Esses envelopes eram entregues ao Amigo nº 1, que levava tudo ao correio e postava. E foi assim que o Amigo nº 2 recebeu o tal Diário Completo que lhe permitiram terminar sua tese sobre o escritor célebre.

Fim da "melódia" (como diziam os "antigos"): A tese do Amigo nº 2 está sendo elogiada pelos professores do doutorado, dizem que lança novas luzes sobre a obra do escritor, e provavelmente vai ser aprovada com recomendação de publicação e não dou dois anos pra virar livro. Exercício de futurologia da minha parte: esse livro vai circular no meio acadêmico, outros pesquisadores vão se interessar novamente pelo escritor estudado, artigos e papers pipocarão em congressos, livros teóricos e revistas da área, os cadernos de cultura voltarão a citar o escritor e a nova geração pós-blog e pós-orkut vai citá-lo como influência-mor, e isso tudo vai fazer que a obra completa do autor seja relançada. Inclusive os tais diários, que o Amigo nº 1 precisou fotocopiar clandestinamente para o Amigo nº 2 iniciar todo esse processo.

Depois me perguntam o porquê de eu ser tão favorável ao copyleft.

Se as editoras pelo menos reeditassem seus catálogos, eu até acreditaria nessa história de direito autoral à moda antiga. Enquanto isso, o pânico se generaliza: recebi uma chamada para publicação de artigos enviada por uma revista de um importantíssimo programa de pós-graduação que pedia aos autores dos artigos que evitassem citações longas demais, para evitar problemas relativos aos direitos autorais. Depois ninguém entende o porquê do Brasil ter um índice tão baixo de produção científica. Até nisso ela é desestimulada.

Aproveito para lembrar aos leitores que TODO o conteúdo desta coluna está licenciado em Creative Commons (existe inclusive um selo especificando os termos da licença que escolhi na margem superior direita do blog em que arquivo o conteúdo da coluna). Através da licença escolhida para este conteúdo, este material pode ser copiado à vontade, republicado à vontade no meio virtual, desde que citando o autor e que seu uso seja não-comercial. Mais informações sobre a licença Creative Commons, neste endereço ou, eventualmente, na coluna do Gabriel Menotti, toda sexta

Nem só o Google salva!
(Publicado em 02.08.06)

Nem só o Google salva: o You Tube também. Disso todo mundo já sabe, afinal a monstruosa quantidade de vídeos que podem ser encontrados na rede através dele beira o incalculável. Esta semana eu decidi testar o quase clichê "tem de tudo no You Tube", e encontrei em segundos o belíssimo depoimento que foi ao ar na novela das oito no dia em que não assisti (aquele da senhora de 68 anos que contou ter descoberto o orgasmo ao som de O côncavo e o convexo do Rei Roberto Carlos). OK, era algo fácil e bastante previsível de se encontrar. Decidi, então, procurar vídeos sobre literatura, afinal estava sem assunto para a coluna desta semana. E não é que encontrei algumas coisinhas? Acabou virando um passatempo viciante: a toda hora que lembro de alguma coisa eu corro pro site e faço uma busca rápida.

Vou compartilhar com vocês, ok? Só não espalhem por aí que eu ando estimulando a pirataria, porque eu nego até a morte, ajoelhado nos caroços de milho.

Pra começar, aquela que é quase onipresente, a dona do séqüito mais fiel e talibã dentre os leitores brasileiros, Clarice Lispector em sua célebre entrevista na TVE, com direito a apresentação do Gastão Moreira:
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Ainda na década de 70, Jorge Luis Borges em entrevista para a TV:
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Divertido foi ver o Leminski com a habitual cara de intelectual de boteco, declarando que "o uso da linguagem dá um barato fundamental ao ser humano", maior do que o sexo, o álcool e as drogas:
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Ele também fala da importância do judô para a poesia:
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Tem ainda aquela ótima cena em que o lindo poema do W.H. Auden, Funeral Blues é recitado, no meio daquele filme quase constrangedor, Quatro casamentos e um funeral (que, se Deus quiser, será esquecido em poucos anos, acredito piamente nisso):
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No cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas, uma cena rápida da adaptação feita pela Globo nos 80 (aquela que nunca mais foi reprisada), com Tony Ramos como Riobaldo e Bruna Lombardi como Diadorim:
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Uma animação de gosto duvidoso a partir de uma das cidades imaginadas pelo livro do Calvino, As cidades invisíveis:
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A fala de Harold Pinter ao receber o Nobel em 2005 (legendada em espanhol), afirmando que na arte "não há grande distinção entre o que é verdadeiro e o que é falso" (fala que deu vontade de copiar na íntegra e dedicar uma coluna inteira só a ela):
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Pra não dizer que não falei de Beckett, tem um minuto e meio de Film, aquele que citei semana passada:
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Esse eu não vi inteiro, mas vou baixar e ver com calma depois: Chomski vs. Foucault, quase que o grande duelo da segunda metade século XX:
Parte 1
Parte 2

Eu também fui atrás dos beatniks, pra não dizerem por aí que eu nunca dou atenção à contracultura, tem o filme Pull my daisy, de Robert Frank, realizado em 1959 e narrado pelo Kerouac (bom, esse também tem em alta resolução para download legalizado e gratuito no www.ubu.com):
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E fiz a caridade de trazer umas migalhas de sub-literatura, pros que gostam de se torturer, como essa entrevista com Bukowski em início de carreira:
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E esse momento vergonhoso em que Bono e Tom Waits desperdiçam seu precioso tempo de Pop Stars empenhados em salvar o mundo para recitar trechos de Bukowski:
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Bom, aí vc me pergunta: "Mas, Erly, minha conexão é discada ou, pior ainda, é um Velox (Lerdox, que nem o meu) da Telemá, como eu irei assistir esses vídeos on line?" Calma que eu já trago a solução (e aqui vou dar uma de Menotti e ensinar gambiarras): existe um site chamado Qooqle Vídeos (um piratex japonês, pra variar) que faz buscas dentro do You Tube. É só você clicar no vídeo que surgir como resultado da busca que abre uma janela com um player. No canto inferior direito, você clica em "options". Depois, em "get download link". Vai aparecer um link para download, você vai clicar com o botão direito e salvar o arquivo com o nome que você preferir (só lembrar de renomear a terminação como ".flv"). Pronto, o vídeo em baixa resolução vai para seu HD, em instantes. Para assistir, você só precisa de um player de arquivos FLV (se vc digitar "FLV player" no Google, acha milhares deles, com link para download) e pode assistir ao seu escritor predileto, à hora em que quiser.

Cem anos de Beckett
(Publicado em 26.07.06)

Durante o mês de julho, realizou-se no Rio de Janeiro, no luxuosíssimo Centro Cultural Telemar, o Festival Beckett 100 anos, discutindo e reapresentando a obra deste que talvez seja o grande dramaturgo da segunda metade do século XX. Embora o evento fosse concentrado basicamente nas peças teatrais, radiofônicas e televisivas do autor (além de uma mostra de vídeos, que ocorrerá em agosto no CCBB), muito do que foi debatido e apresentado contribui para um amplo panorama das letras e da filosofia na segunda metade do século XX.
No Brasil, Beckett até hoje é conhecido como "o autor de Esperando Godot", o que nem é a ponta do iceberg da complexa e instigante obra que ele construiu até sua morte, em 1987. Outros preferem incluí-lo no rol do "teatro do absurdo" (culpa do clássico livro do Martin Esslin, que aproximava Beckett de gente como Ionesco, Arrabal, Adamov, na pressa de catalogar o irlandês em alguma escola), embora ele no máximo se aproxime desse grupo pelo estranhamento que seu teatro provoca no espectador, muito embora sua proposta seja bastante diversa do "absurdo".
Caríssimos, Beckett é muito mais que isso, muito mais até do que apenas mais um nome na lista dos ganhadores do Nobel (o que ocorreria em 1969). Sua produção inclui romances que se configuram como verdadeiros pesadelos, como Malone morre (disponível por aí em tradução do Leminski), Molloy e O inominável, além de alguns poemas, o roteiro de um filme (Film, curta-metragem silencioso, realizado em 1964 e estrelado por Buster Keaton) e a já citada produção cênica para teatro, rádio e TV.
Os temas de Beckett comumente se aproximam das impossibilidades e impotências do homem em tentar significar num contexto de esvaziamento de sentido próprio de sua época. Relações humanas e temporais encontram-se totalmente fragilizadas em seus personagens, muitas vezes isolados do mundo exterior de alguma forma: seja na cegueira de diversos de seus personagens, em especial o velho Hamm de Fim de partida(recentemente publicada pela Cosac & Naify), seja Malone em seu leito de morte, ou ainda na inútil espera de Pozzo e Lucky em Esperando Godot. A única saída dos personagens é aceitar a condição do "não saber", essa mesma condição que, como apontou brilhantemente o diretor Rubens Rusche numa palestra sobre as peças radiofônicas de Beckett, dentro do festival citado, seria um ponto de partida para cada artista, esse ser que se vê "obrigado a expressar". Segundo Rusche, o "não sei" de Beckett deu-se aos 40 anos, quando ele começou a falar de si mesmo em suas obras cênicas e literárias.
A própria condição de Malone indica esse confronto com o "não-saber": imobilizado, confinado num quarto, deitado numa cama, Malone espera a morte. Tudo que ele pode fazer é observar, descrever e inventariar os objetos a seu redor. A uma certa altura do romance ele tenta narrar uma estória, mas nada se concretiza: nem personagem, trama, tudo que produz ao escrever provoca-lhe uma profunda aversão. Essa empreitada revela-se vã, como tudo que Malone possa fazer nesse momento de angustiada e tediosa espera.
Em seu Film, Beckett decide acompanhar um sujeito que perambula pelas ruas. O homem é visto de costas pela câmera, impossibilitada de conhecer-lhe o rosto antes da última cena. Curiosamente, embora o filme seja dirigido por Alan Schneider, o verdadeiro autor é Samuel Beckett, que já havia delimitado precisamente as condições de execução do curta já no roteiro.
Em sua palestra, Rusche ainda apontou a importância do silêncio em Beckett, não como negação da palavra, mas como instância da qual ela nasce. Daí a importância das pausas nas interpretações dos atores. Encenar Beckett é um exercício de escuta do silêncio, para tentar presenciar o nascimento da palavra, ainda que ela já nasça totalmente desprovida de significação, natimorta, segundo as diretrizes do universo beckettiano. Dessa forma, todos os elementos em Beckett são importantes, e não dá pra sair por aí fazendo adaptações irresponsável, como simplificações de falas e substituições de personagens cruciais por vozes em off pré-gravadas, totalmente descontextualizadas do momento em que o ator constrói seu gesto de embate corporal com a própria palavra, como muita gente vem fazendo por aí.
Aliás, uma das coisas mais interessantes que foram apresentadas no festival foi justamente uma riquíssima leitura dramática de uma peça radiofônica, chamada Cascando, até então inédita no país. Nesse texto, um personagem, o Abridor (Opener) controla, em cada uma das mãos, uma forma de se comunicar, desconexamente, com o universo: de um lado, uma voz ofegante; do outro, a música. Cabe a ele abrir e fechar as mãos, uma de cada vez, ou as duas ao mesmo tempo, como único ofício possível frente ao confronto desses ruídos com o próprio esvaziamento de significação do mundo. Acompanhei (de olhos fechados, já que a peça foi concebida para transmissão em rádio) o sensacional duelo do Abridor (Rubens Ruschie) frente à voz (Ricardo Blat, irretocável, apresentando um texto dificílimo, numa entonação genial) e um aparelho de som que executava uma música (a versão original da peça, em 1963, contava com uma obra do compositor Marcel Mihalovici). Não foi uma experiência fácil de se atravessar, confesso que doeu um bocado. E, por isso mesmo, foi algo lindo de se presenciar.
Para quem quiser conhecer mais das peças para rádio escritas por Beckett, o site Ubu Web (http://www.ubu.com/sound/beckett.html) possui duas performances em MP3: a própria Cascando, e Words and music, escrita em 1962, e considerada um marco na concepção de peças para execução radiofônica. Vasculhando com calma pela internet, dá pra encontrar o Film para download ou streaming.

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