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29.4.06

Onze livros a redescobrir (parte 1 de 3)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 29.03.2006)

Dando prosseguimento à série iniciada duas colunas atrás, chegou o meu momento "Quero ser Charles Gavin": a hora de indicar aquelas pequenas e grandes pérolas que, por algum motivo, não integram as tão temidas "listas" de melhores desse último meio século, mas que não deixam de ser obrigatórias por causa disso. Podem ser consideradas obras menores, ou esquecidas (menos badaladas eu sei que são), mas são importantes momentos da prosa contemporânea brasileira. Nesta semana, vão quatro, inaugurando essa minha listinha parcial, unilateral e apressada.

A festa
Em 1976, o mineiro Ivan Ângelo (que depois escreveria dois volumes de contos essenciais, A casa de vidro e A face horrível) aparecia com um romance inovador na forma e devastador no conteúdo.
Na forma: os sete capítulos iniciais, independentes entre si, podem ser lidos em qualquer ordem, como se fossem um volume de contos; o oitavo, "Antes da festa", cruza as sete estórias de maneira surpreendente; o último "Depois da festa" (na edição que possuo, a quinta, vem impresso em páginas azuis, diferente do resto do livro), são narrados os destinos de cada um dos personagens que esteve presente à tal festa, sob a forma de um índice remissivo.
No conteúdo: embora tivesse sido saudado pela esquerda festiva da época como uma obra de resistência, o livro é muito mais uma autocrítica dessa geração 60-70, minada tanto por sua ousadia quanto por sua estagnação. Uma ressaca detalhada, eu diria. Tanto que não existe um capítulo "Durante a festa", até porque os acontecimentos da noite de 30 de março de 1970 são irrelevantes para a narrativa. E os destinos estilhaçados dessa geração, sob a forma de um romance que se assemelha a um espelho quebrado, soam arrepiantes 30 anos depois de publicado o livro.

O caderno rosa de Lori Lamby
Diz a lenda que Hilda Hilst estava cansada de escrever livros elogiadíssimos pela crítica e ser solenemente ignorada pelo público. Daí ela ter partido, no comecinho dos anos 90 para uma literatura pornográfica, alegando que o sexo nos dias de hoje faz vender de tudo. O resultado, obviamente, não foi um estouro de vendas (afinal, havia uma prosa sofisticada demais por trás de tanta putaria, tornando os livros dessa fase obras de difícil leitura para o leitor médio, ainda que mais acessíveis que outros trabalhos da autora), mas trouxe muita polêmica. O tempo passa, a polêmica some, e o que fica é a literatura. E que literatura! Os três volumes publicados entre 1990 e 1992 (O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d?Escárnio e Cartas de um sedutor) são excelentes e estarrecedores. O caderno rosa..., ricamente ilustrado por Millôr na sua primeira edição, é um diário de uma criança (ou não é, a dúvida permanece durante todo o livro), descrevendo cada escabrosidade capaz de fazer corar o Siro Darlan. E ainda assim é literatura de primeira linha. Da Hilda eu recomendo a obra toda, principalmente os livros de poesia e esse caderno nem um pouco cor-de-rosa.

Panamérica
Sim, até a contracultura brasileira teve seus momentos de real relevância. Esse romance, publicado em 1967 por José Agrippino de Paula (que iria dirigir o surreal Hitler no Terceiro Mundo, estrelado por Jô Soares em pleno período do Cinema Marginal). Fortemente influenciado pela Pop Art, Agrippino desconstrói e reconstrói mitos contemporâneos com uma voracidade de fazer inveja ao mais antropófago dos modernistas. Cada capítulo é praticamente um parágrafo único, delirante, e por isso mesmo saboroso.
"Eu sobrevoava com o meu helicóptero os caminhões despejando areia no limite do imenso mar de gelatina verde": começando assim, um romance já me pega de jeito. Depois começa um desfile de personagens que inclui Marylin Monroe, Cary Grant, Marlon Brando, Cassius Clay, Joe DiMaggio... e até mesmo a filmagem de um épico bíblico demilleano, sem contar a hilária passagem em que Burt Lancaster comenta com o protagonista que o sexo das mulheres antes dos dezoito ainda é bastante carnudo e tem um cheiro mais agradável.
Mais um trecho do livro, mantendo nosso "menu degustação": "Eu olhei as cabeças dos comunistas conservadas no frigorífico do Departamento de Ordem Política e Social, e as cabeças eram muito grandes e lembravam cabeças de papelão pintado usadas no carnaval." O lado bom da minha edição (a 2ª, de 88) é que não tem o ridículo prefácio do "sabe-tudo" Caetano Veloso da edição recente (que recolocou o autor na mídia novamente). Graaaaaaaaaças a Deus.

Em Liberdade
Esse poderia ter sido o último capítulo de Memórias do cárcere. Ou o primeiro capítulo da vida pós-cárcere. Nesse diário imaginado dos primeiros dias de Graciliano Ramos após reconquistar a liberdade em 1937, Silviano impressiona ao descrever a sensação de descompasso que cerca a tentativa de Graciliano de fazer sua vida retornar "ao ritmo normal" nos turbulentos dias da gênese do Estado Novo. O exercício intertextual é tão forte que a gente começa a achar que é realmente um diário de Graciliano, e não um exercício ficcional escrito quase meio século depois (a primeira edição desse misto de ensaio, romance e diário é de 1981). E, no final do livro, quando o personagem "retorna à superfície", e diz que não sabe como fará para caberem todos no pequeno quartinho que lhes é destinado daqui por diante, dá um aperto tão grande, tão grande no leitor...

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