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29.4.06

Onze livros a redescobrir (parte 3 de 3)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 12.04.2006)

O púcaro búlgaro
Confesso que tive muita dificuldade em escolher um único livro do Campos de Carvalho. A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961) e A chuva imóvel (1963) são impressionantes tanto na linguagem elaboradíssima quanto nas altas doses de ironia. A frase final deste último são arrepiantes: "Mesmo morto, continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel, serei eu que a estarei cuspindo".
Mas é O púcaro búlgaro, publicado em 1964, que me pega de jeito. Imagina só: um cara chamado Hilário publica um anúncio do tipo "Expedição à Bulgária: procuram-se voluntários". A intenção era conferir se a Bulgária de fato existia. Obviamente, aparecem os sujeitos mais absurdos: o inclinado Pernacchio, um bulgarólogo de nome Radamés, um tal Expedito não-sei-o-quê e Ivo Que Viu a Uva, descendente do sábio hindu que inventou o zero e que até hoje reivindica os direitos autorais dessa invenção. O livro estrutura-se como um diário dos preparativos de Hilário para a expedição, com altas doses de surrealismo (o próprio autor se considerava surrealista). Os quatro sujeitos vão morar no apartamento de Hilário e Rosa, diálogos absurdos sucedem-se interminavelmente, Expedito e Rosa fogem e tudo se resolve com uma partida de pôquer entre os restantes. Depois de publicar esse livro, Campos de Carvalho retirou-se da vida literária. Mas já tinha inoculado altas doses de sarcasmo na literatura brasileira.

Sueli
Pouco importa distinguir o que realmente aconteceu do que se encontra ficcionalizado nesse "romance confesso" publicado em 1989 por Reinaldo Santos Neves. Personagens, datas, eventos e cenários reais são transfigurados nesse romance (na dupla acepção da palavra), praticamente um "crime passional", como afirma o autor na orelha do livro. Metalinguagem e intertextualidade estão aqui a serviço da narrativa, e não tentando roubar a cena do romance (o que o diferencia de várias outras experiências da literatura brasileira nos anos 70-80, hoje bastante datadas), de modo que a leitura é absurdamente prazerosa ao leitor. Chega a arrepiar quando eu me lembro que esse livro foi escrito e publicado aqui no Espírito Santo e que seu autor está tão perto de nós. Merecia ter edição nacional, por uma dessas editoras blockbusters da vida (Record, Companhia das Letras, Objetiva, Nova Fronteira, Rocco... qualquer uma delas) e ser lido e debatido nacionalmente. Pelo menos caiu alguns anos seguidos no vestibular (eu o li aos dezesseis, e confesso que foi um dos livros que mais me influenciaram a querer escrever), embora hoje não seja tão fácil de achar por aí, nem nos sebos. E tem uma passagem maravilhosa em que o narrador (Reynaldo, com "y") conta de ter se deparado, certa noite, com uma crônica do Rubem Braga sobre a mulher terrível da vida de cada um se chamar Maria, Ana, Joana, "Ou até mesmo Sueli". E, no dia seguinte, ao encontrar com o próprio Rubem no aeroporto, hesita em confidenciar sobre sua própria Sueli (e não o faz, por fim). Arrepiante.

O pavão desiludido
José Carlos Oliveira foi um dos maiores cronistas do país nos anos 60/70, publicando seus textos no Jornal do Brasil durante 23 anos ininterruptos (naquele tempo, a crônica diária era um gênero forte em nossa literatura, e parte desse material pode ser conferido nos volumes dedicados ao gênero na lendária série Para gostar de ler). Zé Carlos publicou alguns volumes de crônicas, alguns romances e um belo livro de contos, Bravos companheiros e fantasmas (seu único livro "capixaba"). Hoje, ele anda bastante esquecido, embora seu romance mais bem-sucedido comercialmente, Terror e êxtase, de 1978 (que chegou até a virar filme, com relativo sucesso), seja até fácil de encontrar nos sebos da vida (acabei de pesquisar no mercadolivre.com e vi três exemplares à venda, só pra ilustrar). Mas o livro que eu recomendo mesmo, por mais difícil que seja de encontrar, é o primeiro romance, O pavão desiludido, publicado em 1972 pela Bloch Editores (sei que tem um exemplar na Biblioteca da Ufes, foi ele que eu li anos atrás, ainda estudante). Seus capítulos, todos independentes um do outro, de modo a também serem lidos separadamente, constroem uma suposta narrativa autobiográfica que recupera elementos da infância pobre do autor numa Vitória muito mais provinciana que hoje e da tumultuada relação familiar (em especial com a mãe), num painel bastante rico da personalidade do protagonista (uma espécie de alter-ego de Carlinhos). Vale a pena ler tudo dele, inclusive a biografia escrita por Jason Tércio, Órfão da tempestade, que mostra um José Carlos muito mais complexo que o folclórico boêmio que não saía do Antonio's na Zona Sul carioca. E, mais que tudo, vale a pena conferir a candura de imagens como a do menino que via o arco-iris refletido no jato da mangueira d?água.

Bom, aí foram minhas onze dicas, divididas em três etapas. Semana que vem entramos na penúltima coluna da série de sete sobre a prosa brasileira dos últimos 50 anos. Falaremos dos contistas e das tais antologias de "melhores contos" que inundam as prateleiras das livrarias em suas mais diversas versões. Até lá!

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