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29.4.06

A comissão de frente

Erly Vieira Jr
(Publicado em 22.03.2006)

Como prometido, a gente embarca agora na primeira etapa da viagem pela prosa brasileira entre 1956 e 1991 (lembrando que, ao encerrar o percurso nessa data, podemos evitar julgamentos apressados de obras por demais recentes, e que merecem ser lidas e julgadas num espaço de tempo bem maior que uma década e meia ou menos). Hoje eu quero falar da "comissão de frente". Sim, daqueles nomes que com certeza estarão na linha de frente dos cânones vindouros. Até mesmo para que, nas colunas seguintes (dedicadas aos tesouros escondidos), possamos ter referenciais para aprofundar essa discussão ligeira de uma ou duas laudas semanais.

Por conta mesmo desse limite de espaço, não vou ficar aqui chovendo no molhado, ou seja, não vou destinar linhas e linhas aos nomes mais badalados da comissão de frente. Afinal, ninguém precisa de ler um colunista quase diletante como eu pra saber do óbvio: que gente como Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Raduan Nassar faz parte do primeiro escalão, e que ler qualquer livro desses autores é certeza de se deparar com algumas das melhores páginas de nossa literatura. Não fosse assim, esse povo todo não viveria ganhando os mais importantes prêmios internacionais, né? Se, ainda assim, alguém quiser que eu monte uma listinha básica, aí vai, só por desencargo de consciência: Feliz ano velho, O cobrador, A paixão segundo G. H., A hora da estrela, Felicidade clandestina, Mistérios, Fundador, República dos sonhos, Lavoura Arcaica e Um copo de cólera. Pronto, cumpri a obrigação com um top ten improvisadíssimo e nem um pouco definitivo.

Ou quase: Guimarães Rosa ainda iria produzir algumas obras-primas nos livros Primeiras estórias e Tutaméia ? inclusive "A terceira margem do rio", talvez o melhor conto já escrito em língua portuguesa. Quem leu sabe que não é exagero meu.

Agora dá pra falar dos outros nomes de ponta. Como, por exemplo, José Cândido de Carvalho. Desse você deve ter ouvido falar bastante, mas não deve ter lido ainda. A obra fundamental dele é O coronel e o lobisomem, publicado em 1964. Tem que ler. O filme não é grande coisa (tenta imitar Guel Arraes e não consegue) e nem vai dar a medida exata de uma linguagem riquíssima, repleta de neologismos que enganam o leitor desatento, jurando que atravessa regionalismos pré-existentes. Zé Cândido puxa nosso tapete tão bem que dá até gosto. E olha que nem falei dos flertes com o fantástico e com o mitológico...

E, já que entrei na seara dos adaptados pela Globo Filmes, dois outros nomes se destacam: o paraibano (de nascença, e pernambucano por opção) Ariano Suassuna (sim, o Auto da Compadecida é leitura tão obrigatória quanto o genial filme do Guel Arraes) e o pernambucano (de nascença) Osman Lins. Mas o melhor do Osman Lins nem é Lisbela, pra falar a verdade. O quente mesmo é Avalovara, publicado em 1973. Verdadeiro labirinto em que a palavra toma à frente e deixa o enredo em segundo plano, se não em terceiro. Só pra vocês terem uma idéia, um dos personagens é representado por um símbolo gráfico. Nem me peçam pra pronunciar seu nome, porque é impossível. Mas isso não é empecilho pra me aventurar de vez em quando nas suas páginas mágicas, um prato cheio pra fãs de Calvino e Cortázar. Lins, inclusive, é colocado pela crítica norte-americana no mesmo patamar que o escritor argentino. Uma pena que um romance traduzido em tantas línguas (fazendo as delícias dos tradutores que gostam de desafios) seja tão desconhecido em seu país de origem.

Pesquisando na internet, achei um artigo de Ermelinda Ferreira, intitulado "Uma ilha no espaço aberta à visitação", do qual transcrevo o seguinte trecho, capaz de traduzir em palavras muito mais apropriadas que as minhas o sentimento de quem leu o romance:

"Avalovara é, provavelmente, um caso único na literatura brasileira, no qual o enredo encena a palavra. É ela que sobe ao palco, poderosa, e fala, com a voz embargada, de um mundo estagnado, um mundo que se fossiliza a cada dia pelo empobrecimento da imaginação, pelo reducionismo da emoção, pelo minimalismo da visão. (...) Da solidão do escritor, que se insiste em chamar de hermetismo", e que nada mais é do que a sua resistência no âmago de uma casa que se esvazia".

Outro que mereceria destaque fácil é o mineiro Pedro Nava, que só viria a publicar pra valer com quase setenta anos de idade (na juventude, dois ou três de seus poemas e contos chegaram a público, não mais que isso). Em 1972, Baú de ossos dá início a uma série de seis volumes de memórias, só interrompida com o suicídio do autor em 1984. Nava é o responsável pela elevação do gênero memorialístico à linha de frente da nossa literatura (pena não ter surgido ninguém à altura para manter o legado...). É de Pedro uma das passagens mais arrepiantes de minha "carreira" de leitor: "Não me lembro da cara nem do nome de um só colega, de uma só colega do Andrès. Vejo-os, sem detalhe fisionômico ou contorno físico - estarrecidos no ar da sala de jantar ou no recreio, diluídos ao sol, como as figuras de confete da arquibancada do Circo de Seurat!". Quem nunca se sentiu assim com relação a alguma passagem da infância ou adolescência?

Pra encerrar esse rápido "convescote", trago aquele que, pra mim, é a cereja do bolo: Lúcio Cardoso. Ok, ele já tinha certa fama desde a segunda geração modernista, mas sua obra mais importante vem à luz em 1959: a Crônica da casa assassinada. São mais de quatrocentas páginas narrando a decadência da família Menezes, com detalhes absurdamente expressionistas e impregnantes (impossível não imaginar o tempo todo o odor de violetas ou as paredes recobertas de camadas e mais camadas de limo), num coquetel de "incesto, adultério, travestismo e homossexualismo" (pra citar o título de um artigo do Wilberth Salgueiro, o Bith, bem interessante, sobre o livro) que, na mão de Luchino Visconti daria talvez o seu melhor filme. (Adivinha quem adaptou pro cinema? Saraceni. Com Norma Bengell como protagonista. Ninguém merece, né? E não tem trilha maravilhosa de Tom Jobim nem Carlos Kroeber travestido que consigam salvar o filme, viu?).

Lúcio faz o favor de narrar o caso de amor fulminante entre mãe e filho através de uma alternância de focos narrativos em flashback que Orson Welles já havia provado ser palatável ao espectador/leitor médio com seu Cidadão Kane. Iniciando-se com os instantes terminais da enferma Nina, os capítulos reúnem depoimentos ou anotações dos personagens, incluindo aí até confissões ao padre mais cúmplice que nossa literatura já produziu. Mergulhamos em quase afogamento irremediável nas motivações de cada personagem, através de parágrafos imensos recheados de períodos intermináveis e inúmeras orações subjetivas encadeadas. Quase barroco de tão sufocante. E, ainda assim, de uma elegância em seus momentos de maior dor. Eu mesmo daria o dedo mínimo, quando não a mão esquerda inteira, pra criar uma passagem como a que o travestido Timóteo, até então exilado em seu quarto imundo no solar decadente dos Menezes, executa sua vingança, vestido com as jóias e roupas de sua mãe, sendo carregado numa rede até o velório da cunhada para realizar o último desejo dela, na frente de toda a aristocracia da cidade: depositar violetas no caixão. A frase é inesquecível: "Deus, Nina, é um canteiro de violetas cuja estação não passa nunca". Arrepiante. Depois dessa porradaria toda, pausa para os intervalos comerciais, né?

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