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29.4.06

Zulmira, Murilo, Caio e talvez um epílogo

Erly Vieira Jr
(Publicado em 26.04.2006)

Bom, esta é a sétima e última coluna da nem um pouco enciclopédica série sobre a prosa brasileira entre o lançamento de Grande sertão: Veredas (1956) e o comecinho dos anos 90. Obviamente, minha intenção não foi a de traçar um panorama completo sobre essa produção, mas sim destacar alguns de seus momentos. Semana passada eu deixei três ótimos contistas pra trás, então começo a coluna destacando esse pessoal.

O primeiro nome que vou citar é uma ilustre desconhecida para a maioria dos leitores: Zulmira Ribeiro Tavares. Autora de contos cujo apuro na linguagem permite que antes do final de cada frase a gente seja surpreendido, ela tem uma produção bastante fértil e aclamada por parte da crítica especializada, mas segue desconhecida pelo grande público. Nem preciso dizer o que esse povo perde, né? Um volume em especial mereceria ser destacado: Cortejo em abril, lançado pela Companhia das Letras em 1998, que reúne vários contos curtos, precisos e vertiginosos, e um mais extenso, que dá nome ao livro e recria o cortejo funerário de Tancredo Neves em 1985, episódio que se constitui numa das maiores fabulações de nossa história recente. O "Consertador de Tudo", protagonista do conto, interrompe mais um dia de sua vidinha quase irrelevante para assistir à passagem do corpo pelo Ibirapuera e é uma experiência inesquecível para o leitor acompanhar o episódio sob a ótica do personagem. Quer ler Zulmira? Vai no Sebo Florestan Fernandes, tem vários títulos dela perdidos na estante de literatura brasileira. Foi lá que eu a descobri.

Sobre Murilo Rubião eu não tenho quase nada a dizer. É muito melhor mergulhar em seus livros num passeio deslimitado pelo território da literatura fantástica. Seus contos trazem uma melancolia frente ao absurdo, como se o fantástico fosse até aceito como instância irremediável do real, como algo com que o personagem mais cedo ou mais tarde teria que se confrontar, mas nunca baixar a cabeça e engolir a seco. Seu conto que mais me impressionou até hoje, "Teleco, o coelhinho", trazendo um animal falante metamorfo e dotado de comportamentos humanos, tem muito disso. Não à toa, o Bráulio Tavares escolheu este conto pra compor sua antologia Páginas de sombra: Contos fantásticos brasileiros. Eu, se fosse você, encomendaria sem medo O pirotécnico Zacarias imediatamente, na loja virtual mais próxima (ou você jura que vai encontrar o livro nessas livrarias da cidade? Mais fácil arriscar num sebo, sinceramente!).

O gaúcho Caio Fernando é o terceiro da lista. Só a biografia dele já seria motivo de culto: foi perseguido pelo DOPS, refugiou-se no sítio de Hilda Hilst, foi lavar pratos na Europa, foi squatter por muito tempo em Londres, usava batas, brincos nas duas orelhas e cabelos vermelhos em plena ditadura, foi mega-cultuado nos anos 80, em especial com os contos de Morangos mofados (livro de cabeceira até hoje de todo mundo que acaba por descobrir-se gay), tinha uma coluna semanal no Estadão e foi através dela que revelou ser portador do HIV, através de três enigmáticas "Cartas para além dos muros" (você pode ler a terceira, na qual ele revela o mistério das duas primeiras, neste link, aliás, existe um site só com as obras do escritor). Eu li isso na época (1994, época em que devorava diariamente os jornais na Hemeroteca da Biblioteca da Ufes, afinal eu tinha todo tempo do mundo em meu primeiro ano de faculdade), tinha acabado de descobrir Morangos mofados e senti todos os arrepios possíveis ao ler tão pertubadora confissão.

Caio era ídolo, pelo menos para a minha geração e para as duas imediatamente anteriores. Não dá pra ler contos e novelas como "Dama da Noite", "Terça-feira gorda", "Linda, uma estória horrível", "Sargento Garcia", "Aqueles dois", "Pela noite", "Dodecaedro" e não ter alguma reação. Ou pelo menos cair na gargalhada com crônicas desprentensiosas como "A lenda das Jaciras".

Confesso que hoje em dia não sei dizer se ele realmente ocupa seu devido lugar no cânone literário dos anos 80, ou se tudo que se publica e escreve sobre ele é fruto do esforço conjunto de seus cultuadores para abrirem os olhos da crítica para sua obra. A questão é que, exatamente por conta dessa biografia tão apaixonante, a obra de Caio quase sempre ficava em segundo plano e, na década de 90, foi jogada, pelos então dominantes Estudos Culturais, no rol da "literatura gay" (sabe-se lá o que vem a ser isso...). Vamos lembrar que o universo "politicamente correto" da corrente teórica dos Estudos Culturais deu espaço para as "minorias" (entre aspas, para ironizar a postura da corrente acerca dos grupos não-hegemônicos) serem reconhecidas... como "minorias" ? ou seja, colocou todo mundo que era "diferente" em guetos, a serem estudados por seus membros: e dá-lhe autoras lésbicas estudadas por pesquisadoras lésbicas, gays estudados por gays militantes, autores negros estudados por negros engajados, e todos considerados importantes não por sua produção literária, mas por seu ativismo na construção de supostas "identidades". Nessa histeria toda, que espero hoje em dia ter se esvaído, importantes autores brasileiros foram relegados a segundo plano, lembrados apenas por seu pertencimento a uma "minoria" específica (o célebre exemplo da poesia de Waldo Motta, revolucionária na forma e no cruzamento entre erotismo e tradição bíblica, mas que causou muito mais bas-fond nos meios por seu conteúdo homoerótico), citados apenas pelo bom-tom dos cadernos culturais de não deixar de incluir nas listas de final de ano pelo menos um autor gay, um afro-descendente, um indígena, um ex-retirante, um "portador de necessidades especiais", um fiel da Deus é Amor ...

Com isso, cabe atualmente à crítica e à academia resgatar a obra de autores que são importantes não apenas por questões identitárias, mas pela excelência de sua produção. O caso do Caio é gritante. Ele, ao lado de Ana C., conseguiram cumprir com maestria e honestidade a difícil tarefa de captar o espírito de época do final dos 70 e início dos oitenta sem deixar de lado o trabalho com a linguagem. Seus textos traduzem a urgência de sua geração, com a capacidade de jogar com a língua (e trapaceá-la sempre que possível) que só os grandes escritores possuem. E a literatura de Caio Fernando, "dói vezenquando", ainda hoje. Quantos autores do mesmo período conseguem deixar o leitor tão perplexo quanto? Eu nem pensaria duas vezes em colocar seus contos como leitura obrigatória no Ensino Médio e no programa do vestibular.

Bom, depois do Caio eu até fico quietinho e volto só semana que vem. Confesso que deixei de lado muita coisa importante desse período: não falei sequer de um cronista, acho que inclusive os gênero da crônica mereceria uma série de colunas mais aprofundadas (fica como uma promessa futura). Autores importantes que eu ainda não li, como Antônio Torres, Ana de Miranda, Milton Hatoum, Affonso Romano de Sant'Anna, Luiz Vilela, Autran Dourado, Antônio Callado também foram deixados de lado: afinal, não posso ficar falando do que ainda não conheço. Prometo que vou me tornar um leitor mais disciplinado e correr atrás de todos eles e, à medida em que for lendo seus livros, dedicar-lhes fartas colunas. Semana que vem volta nossa programação normal. Até lá.

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