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26.5.06

"A vida muda rápido. A vida muda num instante."

Erly Vieira Jr
(Publicado em 24.05.2006)

"Eu não sei o que esse livro tem. Alguma coisa nele mexe comigo. É como se eu estivesse no lugar da autora, à medida que a leitura avança. A cada dois parágrafos eu tenho que parar a leitura, é como se viesse uma vontade de chorar que nunca se concretizasse, os olhos nublam, ardem um pouco, embaçam, mas nada de surgir uma lágrima. Nem umazinha sequer." Cerca de duas semanas atrás, eu abri o editor de texto do Blogger.com para ensaiar um post no meu blog "secreto". Eu queria falar da experiência de atravessar O ano do pensamento mágico, livro de Joan Didion, recém-lançado. Contudo, achei o post bastante piegas e desisti de postar. Não valia a pena compartilhar tanta água-com-açúcar num único parágrafo, mesmo que fosse com os cinco ou seis (talvez sete) amigos que têm acesso àquela página pessoal.
A questão é que o livro da americana Joan Didion conseguiu a proeza de despertar minha atenção logo que foi lançado. Fiquei curioso quando li, na seção de livros daquela revista mentirosa de circulação nacional (cujo nome tem quatro letras), acerca desse relato de uma escritora acerca da perda do companheiro de quatro décadas e do sofrimento causado pela doença de sua única filha, internada na mesma época. Exatamente isso: Quintana, filha de Joan, estava em coma induzido no hospital, vitimada por um choque séptico, quando, na noite da terça-feira, 30 de dezembro de 2003 (e logo após mais uma difícil visita à filha no hospital), John Gregory Dunne, também escritor e marido de Joan, cai fulminado por um ataque cardíaco, na frente da esposa, em frente à mesa posta para o jantar. E Joan, dez meses após essa tão grande perda, pôs-se a escrever um relato sobre sua dolorosa experiência.
Eu poderia ter todo tipo de desconfiança sobre esse livro: a autora poderia ter caído na simplista armadilha do filão de auto-ajuda, o fato do livro estar vendendo que nem água (chegou a ser o não-ficção mais vendido em São Paulo na semana seguinte ao lançamento) poderia revelar ser tudo um mero caça-níqueis com uma boa dose de marketing, o fato de ter um trecho do livro na capa poderia sugerir que naquelas páginas havia um amontoado caudaloso de frases feitas. Todos esses temores foram ruindo tão logo me deparei com o livro. O tal trecho que está na capa já desarma qualquer um com sua simplicidade: "A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente". Talvez eu seja sentimental demais e não sabia disso, mas a verdade é que uma passagem dessas é dotada de assombrosa sinceridade. O currículo da autora também ajudou (tem um livro dela que foi eleito pela revista Time um dos cem melhores romances dos últimos oitenta anos), e como o livro estava bem baratinho (custa menos de vinte reais, preço raro nos dias de hoje), acabei levando um exemplar pra casa.
A tal "citação" da capa foi a primeira coisa que Joan conseguiu escrever sobre o ocorrido, menos de um mês depois da tragédia. Ela esperou quase um ano para poder continuar a partir desse ponto. Para uma escritora de alta produtividade, foi um longo e necessário período. Nesse meio tempo, ela pesquisou todas as informações que tinha a seu alcance sobre luto e morte, inclusive o livro de etiqueta de Emily Post, publicado em 1922. A pesquisa tinha um objetivo muito maior que a publicação de um livrinho: na verdade, Joan cercava-se dos livros atrás de explicações racionais que afastassem toda sorte de "pensamento mágico", ou seja, de idéias místicas e supersticiosas acerca da "presença" do marido morto a seu lado, ou de esperanças de seu retorno (sentimentos que, para quem sofre a perda de um ente querido, são bastante comuns). E é exatamente esse relato da perda e da tentativa de se seguir em frente que é narrado no livro sem qualquer gotícula de pieguice a respingar no leitor que atravessa suas páginas tão dolorosas.
Exemplo disso está no momento em que Joan teve de enfrentar a situação de se desfazer das roupas do marido: primeiro separou as roupas mais velhas, reservando os casacos e sapatos para um momento posterior. A certa altura, ela constata que estava guardando parte dessas roupas e calçados porque acreditava inconscientemente que John iria precisar "quando voltasse" (mais um "pensamento mágico"), e se convence que tal comportamento pode ser até justificável pela dor da perda mas, ainda assim, é passível de uma urgente e necessária superação. Joan narra tudo isso sem muitas cerimônias, embora vez por outra use de procedimentos romanescos para prender o leitor em seu relato (como o suspense acerca do desenvolvimento da enfermidade da filha, que viria a falecer depois da publicação do livro).
A perplexidade diante da morte inesperada, neste início de século, mais uma vez está na linha de frente da inspiração de parte da produção artística de arte deste início de século. Poderíamos dizer que é parte do espírito de época de nossos dias, vide os dois grandes traumas globais dos últimos anos: o 11 de setembro e o tsunami do Sudeste Asiático, cujos efeitos intercontinentais foram bem mais impactantes do que o estouro da "bolha" Nasdaq na virada do século, só para citar um exemplo. A incapacidade do homem de enfrentar uma finitude não-planejada, num mundo em que a compressão espaço-temporal proporcionada pelas tecnologias digitais aparentemente nos dá uma certa sensação de onipotência, tem sido a inspiração para uma série de trabalhos, e não falo aqui do oportunista disco do Bruce Springsteen sobre a tragédia do WTC nem do filme realizado por onze diretores de diversas nacionalidades, irregular e, em dois terços dos seus episódios, oportunista.
O que marca mesmo essa produção cultural acerca da perda é o fato de que, em qualquer tragédia, morrendo uma pessoa ou cinco mil, o que conta não são as estatísticas, mas o fato de que cada um desses mortos é uma história feliz que termina. O relacionamento de quatro décadas de Joan Didion com seu esposo, por exemplo. Ou a perda dos familiares dos canadenses do Arcade Fire, originando o belíssimo disco Funeral, que se propõe uma celebração do ato de se estar vivo, apesar de tudo. Aliás, não só Funeral, que encabeçou a minha lista pessoal de discos prediletos de 2004, mas também os meus prediletos dos anos seguintes: a nostalgia de uma Nova Iorque boêmia e artista do início dos anos 80, devastada logo a seguir pela Aids, em I am a bird now, do Antony and the Johnsons, ou a "constatação da solidão" que atravessa todo o disco recém-lançado de Scott Walker, The drift (se não a mais bela, pelo menos um das obras mais ousadas e originais que vi na música pop em muitos anos, bem próxima do War Requiem do compositor erudito britânico Benjamin Britten). Quisera eu ter esse talento de fazer bonito a partir da dor: lembro que exatos dez anos atrás, quando perdi um amigo que era uma espécie de "irmão mais velho", tentei dedicar-lhe um poema, talvez a coisa mais piegas que produzi ? por isso mesmo, tal texto nunca veio à luz, nem cópia dele tenho mais.
E é nesses momentos, em que a dor é transfigurada, recriada e assimilada através do trabalho artístico, que podemos dar razão a certas colocações, como quando W.H. Auden (no poema "Funeral Blues") pede para apagar uma por uma das estrelas porque nada mais importa já que seu amado não está mais vivo, ou quando Fassbinder decide superar a dor do suicídio de seu companheiro (da qual ele foi em parte causador), realizando seu filme mais pessoal (o "pouco lembrado" Num ano com treze luas, que trata exatamente dos últimos dias de um suicida rejeitado por seu grande amor). Ou ainda quando Joan passa o livro inteiro rememorando episódios vividos ao lado de John e Quintana, numa tentativa de não deixar desbotarem as lembranças felizes de uma época em que os dias pareciam que iriam durar para sempre (vide a irônica utilização de uma foto dos três, em férias, em meados dos anos 70, publicada na contracapa do livro).
Como disse no início, eu não sabia o que esse livro tinha que mexia tanto comigo. E fica mais difícil ainda de não cair na tentação de um "pensamento mágico" sobre esse livro ter aparecido na minha vida apenas cinco dias antes da perda de minha avó materna. A minha idéia inicial era dar o livro para minha mãe ler, já que eu o comprara inocentemente, imaginando que fosse despertar seu interesse pela leitura, pois ela também havia perdido, alguns anos atrás, seu companheiro de uma vida inteira. A gente nunca imagina quando a vida da gente muda, e não tem como ficar boquiaberto quando percebemos que realmente muda num instante. De qualquer modo, o livro está aqui, talvez possa ser útil para minha mãe daqui a algumas semanas ou meses. Ou até para mim mesmo.

Certas coisas que o colunista acha que deve dizer

Erly Vieira Jr
(Publicado em 17.05.2006)

Eu disse que só o prefácio de Kitty aos 22: Divertimento, novo romance do Reinaldo Santos Neves (O quê? Você ainda não leu?!?) dava sozinho assunto para uma coluna. Aliás, o livro, em lugar de um mero e burocrático prefácio, tem um texto de abertura, intitulado "Certas coisas que o autor acha que deve dizer", que apresenta uma série de considerações sobre a gênese do romance, e sobre o processo de produção. Além de satisfazer a curiosidade do leitor (que, ao final da leitura, retorna ao texto introdutório para confirmar as expectativas apresentadas nessas páginas iniciais), as tais "Certas coisas..." de Reinaldo são uma aula de como escrever um romance de primeira linha.
Logo de cara, somos informados que um sonho originou uma cena (crucial) do livro. Uma cena em que uma moça faz a descoberta do silêncio. Ora, isso já é motivo para um romance. Mas o sonho, que dava um livro sozinho, aqui só deu uma única cena. Como diz Reinaldo: "Tive de me virar para descobrir o resto da história e poder contá-la. Fiz, parece-me, o que costumam fazer os paleontólogos que reconstituem o esqueleto de um animal a partir de um único osso: reconstituí o romance a partir de uma única cena" (pág.8).
O livro começou a ser escrito em julho, e em outubro já tinha uma primeira versão circulando entre familiares e amigos. O processo de pesquisa é descrito pelo autor nos seguintes termos, ainda na página 8:
"Como procedi? A personagem era e havia que ser jovem; o mundo era e havia que ser o mundo dos jovens de hoje. Então procurei-os onde estavam ao meu alcance: nos blogs disponíveis na Internet. Ali fiz meu trabalho de pesquisa e dali extraí informações sobre a minha personagem e sobre o seu mundo: material suficiente para criar o cenário do romance e imaginar a mentalidade dos personagens e para produzir a linguagem narrativa. Batizei a personagem de Kitty - boa parte dos jovens de hoje usa diminutivos em inglês à guisa de apelidos. Daí, Kitty. A gatinha Hello Kitty, portanto, não é causa, mas conseqüência dessa escolha."
Mas o mais fascinante disso tudo é a construção de uma cidade para a personagem: Mic (ou Mictown ou Mictória) é uma transfiguração ficcional de Vitória, acrescida de elementos que pudessem servir à estória (a universidade católica e a Victoria Fashion Week) e trocando o nome de ruas e logradouros, na vida real batizadas porcamente pelos vereadores, mas no livro poeticamente renomeadas. Mesmo que a cidade seja uma recriação, o que importa é que o ethos da juventude da qual Kitty faz parte está lá. Assim como a Vitória do final dos anos 70 escapa das linhas de As mãos no fogo e ganha vida durante a leitura (ou a Vitória dos 80 em Sueli), a ilha deste começo-de -século está todinha nas páginas do Divertimento, com toda intensidade e urgência, muito mais viva e pulsante do que em muita letra "modernosa" de raggae e rock locais.
Os itens de consumo citados no livro foram "roubados" de uma revista que Reinaldo recebe em casa, e que guarda pros trabalhos escolares do filho de nove anos. Eu lembro de ter ficado assombrado quando ele, naquela salinha do Neples-Ufes, numa tarde dessas, me mostrou os recortes de dentro de um envelope pardo. A bolsa, o sapato, o carro, estava tudo lá, e era difícil de acreditar que aqueles recortes banais de revista forneceram objetos que assumem uma riquíssima dimensão dentro do romance.
Ao final das considerações, Reinaldo nos revela que Phil, o padrasto de Kitty (que, para mim, tem muito cinismo do Kevin Spacey em Beleza Americana, talvez seja só impressão minha) é uma homenagem ao Phillip Marlowe, personagem de Chandler. E confessa que planejava utilizá-lo como narrador do romance, mas que acabou optando por um narrador em terceira pessoa. Eu bem que sentia um tom meio policial na narração, uma leve tintura noir que vai tomando corpo da metade para o final do livro, e as duas linhas finais (pág. 9) desse texto introdutório meio que mataram a minha charada: "(...) mas alguma influência de Phil permaneceu comigo, de modo que sinto que é a ele que devo o tom narrativo do romance". Depois de atravessar novamente essas "Certas coisas...", deu novamente vontade de ler o romance, confesso a vocês.

13.5.06

"Todo personagem tem o romance que merece"

Publicada em 10.05.2006
Erly Vieira Jr

Ela tem apenas 22. Chama-na de Kitty. Todo mundo. Tem blog, fotolog com nome de música do Police: Every little thing she does, vive nas baladas, na ?sinfonia de estrobos? proporcionada pelas cybershots de bolso a toda hora convocadas pra tirar foto pro fotolog. É loura, olhos azuis, bonita, gostosa e cultuada pela sua "galera" (sempre odiei essa palavra, diga-se de passagem). Ganhou de Daddy um Audi A-3 vermelho, faz Comunicação numa "facul" particular em Mic (a.k.a. Vitória, nossa tão querida Faketown). É claro que suas amigas se chamam Lu, Déb, Pri (aliás, são duas Pris!, só faltou mesmo uma Tati e uma Mari pra completar), e dá pra adivinhar que no Winamp do computador dela rola Audioslave, Linkin' Park, Lasgo, No Doubt e até mesmo SOAD, pra mostrar que não tá aí pra brincadeira. Até que de vida sexual ela já fez um bocado de coisas, Guto, seu ex, que o diga. O atual, Breno, que é bi, é uma prova de que Kitty, a princípios não tem "preconceitos". Bala, doce, tudo ela já provou, e encaretou depois de uma quase overdose de pó. Mamãe é Mummy, demonstrando que a vida vez por outra pode ser cor-de-rosa (embora quase sempre tudo seja foda demais), e falada em inglês, que até chega a ser muito bom, ?provindo, como provém, 10% de aulas em instituto de línguas e 90% de letras de rock? (p.26). E ela de-tes-ta trocadilhos do seu nome com a imbecil Hello Kitty.
Kitty, aos 22, é protagonista de um romance. Ela bem que poderia ser personagem de algum escritor ex-blogueiro, quase sempre gaúcho ou carioca, surgido na virada do século, altamente hypado e eterno estudante de Jornalismo (mesmo depois de formado). Mas, jogada assim, sem mais nem menos numa trama sub-bukowskiana (esse tipo de escritor a-do-ra Bukowski, sabe-se lá Deus por quê), a história de Kitty seria tão descartável como costuma ser esse tipo de literatura. E, ainda por cima, o excesso de referências pop que o autor iria jogar no texto pra disfarçar a falta de habilidade em contar uma história no máximo serviriam pra demonstrar um maniqueísmo simplista e arrogante de escritor jovem que ouve Weezer e Babyshambles e que só escreveria sobre uma fã do Linkin' Park pra ridicularizar ela e todas as patricinhas que partilham de seus gostos mainstream.
E aí vem o primeiro tapa. Kitty é protagonista de um livro, mas sua história caiu em boas mãos: duas das melhores do país atualmente (sem exagero), diga-se de passagem. Kitty aos 22: Divertimento é o novo romance de Reinaldo Santos Neves (16 anos depois da publicação do sublime Sueli). Reinaldo, escritor de primeira linha, e ainda por cima jazzófilo xiita (daqueles que se reúnem no Clube das Terças-feiras, como seu personagem Garibaldi) escrevendo sobre patricinhas fotologgers sempre ansiosas por uma "baladinha" irada? E por que não?
Reinaldo promove um mergulho no efêmero e altamente mutável universo da cultura pop pra extrair dali uma estória das mais empolgantes dos últimos tempos, centrada na última semana de férias de julho da protagonista. E aí a gente percebe a diferença entre um escritor de verdade e um autor hypado por causa de livros com títulos muito mais interessantes que o seu conteúdo. Aqui, as referências à cultura pop de hoje não agem como uma camisa-de-força a reduzir os personagens a uma determinada tribo, como é de praxe na maioria dos livros que se utilizam desse recurso, escritos por autores "jovens" e "descolados". Pelo contrário. No romance escrito por Reinaldo, tais referências são reviradas do avesso, a cada vez que a trama nos leva a lugares inesperados. Os signos pop, aqui, conseguem ser utilizados a serviço da narrativa (e não a obrigando a estar a serviço do pano de fundo), e somam significados justamente por terem utilizadas suas principais características: a descartabilidade e a mutabilidade constante.
Reinaldo consegue, dentro de um universo efêmero e supostamente descartável, construir uma personagem de uma densidade raramente encontrada na prosa brasileira contemporânea. O livro consegue ser deliciosamente pop, sem ser raso em momento algum. Vai seduzir leitores jovens hoje, vai satisfazer os leitores antigos do autor, e vai deixar todo mundo perplexo e hipnotizado à medida em que a trama vai avançando. E eu me arriscaria a dizer que, mesmo daqui a muito tempo, quando a gente já tiver esquecido do Audioslave, do No Doubt, da Britney, do Linkin' Park, quando o System of a Down não conseguir mais "mesmerizar" ninguém (a mim, nunca enganou), quando fotologs e blogs forem peça de museu e cybershots forem objetos tão obsoletos quanto um gramofone, Kitty aos 22 ainda vai ser uma leitura bastante instigante, como todo bom livro.
O curioso é que Reinaldo intitula-o de "divertimento", como no gênero musical erudito, surgido no século XVIII, caracterizado por peças ligeiras, geralmente executadas por conjuntos de câmara, cujo clima é "despreocupado, sereno lépido e alegre" (há uma nota explicativa no começo do romance, definindo o gênero). Kitty aos 22, dessa forma, pretendia ser um entretenimento leve, uma espécie de fábula ligeira. Acabou sendo um romance daqueles. Dificilmente aparece algo tão bom este ano aqui no Espírito Santo. Eu, se fosse você, corria atrás de um exemplar. O livro chega às lojas da cidade esta semana. Merecia chegar às lojas de todo o país. E, como é um livro muuuuuuito rico, vai merecer mais de uma coluna por aqui. Só a apresentação do autor rende assunto para mais de um texto.
O livro abre com um lembrete: "Todo personagem tem o romance que merece". Kitty merece, e nós, leitores, também.

Este texto começa com um cordel ambientado na distante Hamelin...

Erly Vieira Jr
(Publicado em 03.05.2006)

Dia desses, chegou uma versão do Flautista de Hamelin em cordel às minhas mãos. De autoria de Braulio Tavares, "O flautista misterioso e os ratos de Hamelin imediatamente me chamou a atenção pela tentativa de cruzar, num texto impresso, duas tradições que se desenvolveram principalmente no campo da oralidade: as lendas populares e a literatura de cordel.
A lenda do flautista remonta à Idade Média. Já havia atravessado séculos (e sofrido uma série de variações) quando os irmãos Grimm ouviram-na da boca da camponesa Dorothea Viehmann, no comecinho do século XIX. A fábula conta a história de uma cidade que sofreu uma praga de ratos e foi salva por um flautista que, ferido pela ingratidão da população, que não lhe pagou a quantia combinada pelo serviço, hipnotizou todas as crianças da cidade com uma melodia, transportando-as até uma caverna misteriosa, na qual todos desapareceram para sempre. Lenda ou fato, até hoje tal história seduz leitores e autores, a ponto de ser contada e recontada de inúmeras formas. Provavelmente, a origem da lenda tem a ver com episódios em que crianças, de alguma forma (ou por vontade própria, ou atraídas por algo que lhes fosse sedutor), se afastaram em bando de sua pequena cidade: como era comum que crianças desgarradas fossem raptadas e vendidas como escravo em portos distantes, durante a Idade Média européia, esse tipo de narrativa fazia parte do imaginário popular da época, a ponto de episódios reais, sem registro histórico confiável numa sociedade basicamente oral, serem transfigurados em pequenas ficções e lendas.
O cordel também é um tipo de narrativa popular que, com seu ágil texto em sextilhas de cinco ou sete versos e seus livrinhos de impressão barata e sedutoras capas de xilogravura, ficcionaliza muitas vezes episódios históricos ( nos chamados "folhetos do acontecido") ou causos populares, trasfigurando o real em narrativas que lançam mão de fartos recursos do campo do fantástico (é que no sertão, explica o livro num artigo ao final dele, não há uma divisão tão nítida entre o mundo fantasioso das crianças e o mundo "realista" dos adultos, de modo que a fantasia e o inverossímil caem com luvas no gosto dos leitores de cordel). Tavares, o autor do artigo, explica que o autor do cordel, desse modo, faz o cruzamento entre seu próprio mundo e o mundo dos personagens: daí comerem macaxeira num banquete num palácio oriental, ou o mocinho de nome bem brasileiro (em plena Grécia e Turquia) salvar a mocinha presa na torre com uma máquina voadora, o Pavão Misterioso, título de um cordel dos mais célebres já publicados.
E é isso que Tavares, um expert em literatura fantástica (vide as duas coletâneas que resenhei aqui tempos atrás, uma de autores "borgeanos" e uma de autores brasileiros, ambas organizadas por ele), acaba por fazer ao efetuar o cruzamento do cordel com o conto de fada malcriado do flautista. Eis o cordel, em sua maior vocação antropofágica, renascido em plena literatura brasileira contemporânea, altamente resenhável pelos sisudos e intelectualizados cadernos culturais, mas sem deixar de ser pulsante, irreverente, divertido e criativo, como bem deve ser um cordel.
Motivado pela leitura recente do Flautista, dirigi-me ao MAES pra conferir a exposição Universo do Cordel. Deparei-me com um belo painel de como a xilogravura, com toda sua riqueza iconográfica, é parte fundamental da produção nordestina de cordel. Pude também conferir a riqueza e o bom humor na escolha dos títulos: "O exemplo da mulher que vendeu o cabelo e visitou o inferno", "O exemplo da moça que encontrou a besta-fera", "Novo pacote depois da eleição: Foi traição", "Morreu são Tancredo Neves deixando o Brasil de luto" (Ok, "São" Tancredo foi a pior forçação de barra dos últimos 30 anos, mas ao menos soa engraçado!)...
Só não pude conferir o "passeio pela LITERATURA de cordel" que é anunciado no texto do curador, plotado na parede do museu. Até que havia uns trechos de cordel plotados na parede, mas o fato de que centenas de livrinhos de cordel foram expostos presos à parede (numa montagem que, digamos é plasticamente linda, digna de uma exposição), eliminando a possibilidade de interação com o espectador, que é convidado a contemplar o mosaico de capas, a assistir um vídeo (com uma projeção que prejudica o som), e a ver alguns cordéis da Kátia Bobbio, única representante capixaba da literatura de cordel, aprisionados numa redoma (eu mesmo fiquei louco pra ler um trechinho de um da Maria Nilce e de outro sobre Luz del Fuego, mas fiquei só na vontade).
Ou seja, o livrinho de cordel, tornado objeto de exposição, não supre uma carência cultural que nós, moradores do sudeste do Brasil, tão distantes do sertão nordestino, temos: a de entrar em contato com a rica produção de cordel. A gente sai morrendo de vontade de abrir os livrinhos com as capas e títulos mais sedutores e irreverentes, mas a curiosidade jamais é saciada.
Esse tipo de "aprisionamento" do objeto (eu diria "reducionismo") vez por outra aparece no terreno das Artes Visuais (que, ironicamente, deixaram de ser chamadas de artes plásticas justamente para assumirem uma visão mais ampla e transdisciplinar de seus objetos), em algumas iniciativas que caem na fácil tentação de dialogar com a "exoticidade" do objeto muito mais que com a originalidade da abordagem do mesmo frente à realidade. Basta lembrarmos do recente episódio do Cine Falcatrua, selecionado para o Rumos Itaú Cultural como se fosse uma espécie de legitimação de uma curadoria ?antenada? com as novas tecnologias e com as transgressões às regras do jogo cultural, mas que causou uma certa repulsa entre os outros artistas participantes do projeto, por terem exibido episódios do Chaves e videogames (comprados no camelô do centrão de São Paulo, atitude super coerente com as propostas do coletivo) em plena Avenida Paulista. Dentro das discussões sisudas da "Arte Contemporânea" não cabe exibir um piratão do Chaves, né? Dialogar com as relações entre público consumidor, seus anseios de consumo e a realidade de seu bolso semi-vazio não é de bom-tom prum artista contemporâneo, né? A "Arte Contemporânea" deve se ocupar com assuntos mais investigativos, me disseram por aí. Eu sugeriria tirar o lençol do varal e estende-lo na parede, pra que se possa projetar a realidade em movimento e conflito, a 30 frames por segundo!
E olha que a obra principal do Falcatrua nem era a exibição na Paulista, mas sim um bem bolado festival em que os filmes eram exibidos em pedaços, escolhidos pelo próprio projecionista, cruzando o universo do sampling (tão presente na contemporaneidade) e do VJing com os conceitos de autoralidade e curadoria. Não preciso dizer que o negócio causou debates acalorados, né? Principalmente de cineastas que não lêem regulamento (que previa com detalhes TODAS as condições de exibição) e vêm reclamar de seus filmes terem sido exibidos de maneira inadequada. Definitivamente, pelo menos dois terços do mundo sequer entraram no século XXI, eu diria. Deveriam aprender com os autores de cordel. Pena que não se vende cordel por aqui. Eu, com certeza seria leitor compulsivo. Porque o primeiro impulso de quem entra da bela exposição de cordel no Mães é de querer ler todos os cordéis expostos na parede. Taí uma prova de que certos livros podem ser julgados pela capa.

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