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29.4.06

E depois de Grande Sertão?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 15.03.2006)

Em 2006, acredito que iremos respirar Guimarães Rosa e seu Grande Sertão: Veredas. Diadorim, Riobaldo, e a história que começa com "nonada" e termina em "travessia" (ou melhor, com um sinal de infinito depois desta palavra) deverão render congressos, artigos, livros publicados, teses, documentários, especiais de TV, exposições, edições de luxo. Ainda bem. Nessas horas é que eu não torço nariz para datas comemorativas: imagina quanta coisa boa pode vir no cinqüentenário da pedra fundamental do romance contemporâneo brasileiro. A festa já começou com direito a lançamento de edição comemorativa e palestra em plena Bienal do Livro. Se a gente for lembrar que são também 50 anos de Corpo de baile e 60 de Sagarana, aí é que a festa nunca termina. Dizem por aí que uma das reedições terá Bethânia lendo a morte de Diadorim, o que corresponde às 14 páginas finais do livro. Biscoito fino?

A questão é que eu não vou falar de Grande Sertão: Veredas. O livro é leitura obrigatória, inquestionavelmente. É daqueles livros que orgulharia qualquer nação de tê-lo em sua literatura. É livro pra se ler não apenas uma, mas incontáveis vezes, reiniciar a leitura de tempos em tempos, saborear os jogos de linguagem, as "puxadas de tapete" no meio da trama. Fala a verdade: quantos livros você leu na vida que proporcionam isso tudo? Nenhum? Então é hora de desembolsar um dinheirinho e comprar o seu exemplar. Nem que você tenha que abrir mão de um mês inteiro de boteco, cinema e balada.

O assunto do qual eu pretendo me estender, não só por esta, mas pelas próximas colunas, é herança direta do livro de Rosa. Grande Sertão, ao completar meio século, lança a pergunta: "E depois?". Sim, e depois de 56, o que se publicou de verdadeiramente relevante na literatura brasileira?

A pergunta é bastante delicada. Com certeza, você vai ter, como eu tive, na ponta da língua, pelo menos uma dúzia de "grandes obras" que ainda não chegaram à meia-idade. Clássicos do nosso tempo, poderíamos dizer. A questão é que mais da metade da sua lista não bateria com a minha, ou com a do seu amigo, pai, mãe, namorado(a), amante, colega de trabalho ou com a lista do pessoal do futebol de domingo na praia. Idiossincrasias imperariam de rol para rol, obviamente. Até porque, se Rosa, junto com Clarice, são os marcos iniciais da nossa prosa "contemporânea", também são os pontos finais do cânone. Depois deles, nada mais é incluído de forma unânime no rol das obras essenciais (até porque faz parte da "contemporaneidade" uma certa recusa aos cânones em prol da diversidade e da polifonia). Pode até entrar na lista de todos os críticos e estudiosos um livro ou conto de algum desses autores ou dos de gerações anteriores, publicados depois de 56 (como A hora da estrela ou A terceira margem do rio), mas não vai haver muita coisa a citar sem causar controvérsias depois desses. Pense no seu professor de literatura do ensino médio (no meu tempo, 2º Grau): com certeza, ele não avançava muito depois desses autores, pra não cair na areia movediça de citar apenas seus autores prediletos dos últimos 20 anos. E aí sobra pro leitor apenas aceitar o ofício de garimpeiro e tentar procurar as pepitas (que não são poucas) dentre uma miríade de autores desse último meio século.

Não que não haja livros "poderosos" de lá pra cá. Assim, de cabeça, eu citaria Crônica da Casa Assassinada, Feliz ano novo, A guerra conjugal, O coronel e o lobisomem, Avalovara, A festa, Um copo de cólera, Lavoura Arcaica, Ninho de cobras, Pilatos... ops, mal comecei e já fui capaz de citar dez. Sem contar os autores que me fariam ficar em dúvida sobre escolher apenas um de seus livros: Lygia, Nélida, Hilda Hilst, Campos de Carvalho, Dalton Trevisan, Pedro Nava, Murilo Rubião... Como podem ver, é uma lista bastante pessoal, ainda que vocês concordem com parte desses nomes.

Até que se fôssemos falar de poesia, a coisa seria mais fácil. Depois da Geração de 45, de Cabral e do Concretismo, poderíamos nos centrar em alguns ismos, como o Tropicalismo, a Poesia-Práxis, a literatura marginal setentista... Sem contar aquelas vozes dissonantes, que não se enquadram em movimento algum, mas cujo conjunto da obra aparece com tamanha força que é impossível não enxergá-las: Ferreira Gullar, Adélia Prado, Hilda Hilst, Manoel de Barros, Ana C. (se bem que os dois últimos estão longe de ser unanimidades)...

Mas quando a gente fala da prosa, a coisa toma outra forma. Da década de 60 pra cá, a pluralidade de estilos e de experimentos, e a opção por explorar com força outros gêneros além do romance (conto, crônica, memórias, híbridos) fizeram com que surgissem muitos livros importantes, alguns bem lidos, outros quase desconhecidos. Vez por outra, a capa da Bravo resgata algum autor do período, redescoberto através do relançamento de sua obra completa por alguma editora caça-níqueis. E assim vamos vivendo, desconhecendo a maioria das tentativas bem-sucedidas de se desbravar a prosa contemporânea brasileira, reforçando ou recusando a herança que Clarice e Rosa deixaram por aí.

Nas próximas colunas, tentarei apresentar alguns desses livros e autores, como se fosse um diário de bordo. Pra variar, será uma lista passional e incompleta. Mas é a minha contribuição para a arte de botar lenha na fogueira. Aceito sugestões de autores e títulos que, caso eu não tenha lido ainda, devorarei com o maior prazer. Tentarei evitar a geração 90-00, até porque ainda é muito cedo pra gente avaliar a produção desse pessoal (o melhor é ler e deixar-se levar pelo texto, como bons leitores). Vou me concentrar em obras publicadas há pelo menos 10 ou 20 anos. Até porque fazer julgamentos apressados não dão em muita coisa: se, exatos vinte anos atrás, essa viagem pelas últimas décadas fosse empreendida, Lya Luft estaria fácil no rol dos autores promissores, dado o grau de experimentalismo do texto, ainda assim acessível ao leitor médio (eu li As parceiras, de 1980, e posso afirmar sem medo que gostei). Experimentem, se tiverem estômago, ler as bobagens best-seller que a autora publica hoje. Nem sombra dos livros do começo dos anos 80. E por aí vai.
O que eu espero é que essa "jornada" através de livros e autores sirva pra ampliar a discussão, mais que eleger esse ou aquele livro acima dos outros. É muito mais o relato da peneira pessoal de um leitor apaixonado do que a sisudez de um pseudo-crítico wannabe. Mas garanto que vai ser um bom entretenimento. Peguem suas canoas e preparem-se para a travessia que, pra não fugir à regra, também traz suas lemniscatas depois da última palavra... Até semana que vem!

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