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29.4.06

Marcha de quarta-feira de cinzas

Erly Vieira Jr
(Publicado em 01.03.2006)

Você já ficou com um nó na garganta e uma vontade de chorar depois de ler algum conto? Não? Pois eu já. Diversas vezes, inclusive. Recentemente, a vontade de chorar veio no meio do Transcol lotado, no alto da Terceira Ponte, após as linhas finais de um conto enviado pelo nosso querido editor Vitor Lopes, texto de autoria de Juan Rulfo (do livro O planalto em chamas), que eu recebi por e-mail, imprimi e, inocentemente, pus-me a ler sentadinho num banco do ônibus em pleno final de tarde, no final de novembro passado.

Juan Rulfo, pra quem não sabe, é um escritor mexicano, nascido em 1917 e falecido em 1986, celebrizado por sua obra Pedro Páramo (1955) e pelos contos de O planalto em chamas (1953), ambos em catálogo no Brasil. Ele também dá nome ao Prêmio de Literatura Latinoamericana e do Caribe, concedido anualmente pelo México e recebido, entre outros, pelos brasileiros Nélida Piñon e Rubem Fonseca, em 1995 e 2003, respectivamente.

O conto em questão chama-se "Es que somos muy pobres". Narrado em primeira pessoa, por um adolescente filho de camponeses de poucos recursos materiais, o conto começa com uma frase que já prenuncia o tom da narrativa: "Aqui todo va de mal em peor". Segue-se o relato da morte de uma tia do personagem, rapidamente eclipsado pela ocorrência de uma chuva interminável, resultando numa inundação que levou toda a recente colheita de cevada da família, além da vaca La Serpentina, único bem que o pai havia tido condições de adquirir para o dote da irmã caçula do protagonista, a menina tacha, de 12 anos. A vaca seria uma chance dela possuir algo que atraísse um bom pretendente, e que a livrasse do destino de suas duas irmãs mais velhas, prostituídas mundo afora. Só essa sinopse digna de um filme do De Sica ou do Rosselini já arrancaria lágrimas do fã de melodramas. Mas o buraco cavado pelo autor pra nos derrubar é muito mais embaixo.

A força da natureza é descrita como algo crescente e irremediável, como as imagens da chuva que não parece acabar nunca e da água do rio, cada vez mais espessa e escura, vista pelos jovens irmãos do alto de um barranco do qual põem-se a contemplar impotentes o seu destino.

Rulfo enclausura seus personagens na circularidade de um tempo que nunca passa, de uma pobreza da qual não há saída, e quando a linha reta e veloz do rio impõe-se sobre esse universo, é pra levar pra bem longe toda e qualquer possibilidade dos personagens escaparem de uma tragicidade presente desde seu nascimento. Tanto que a morte da tia é um dado quase irrelevante no conto: no máximo reafirma o irremediável, presente nos seios nascentes de Tacha, que prometem ser pontudos e fartos como os das duas irmãs "sujas" (o termo é do próprio Rulfo).

E aí que vem o golpe de misericórdia: quando Tacha começa a chorar pela perda de sua vaquinha e é abraçada pelo irmão que em vão tenta consolá-la, seu corpo começa a ser descrito como o próprio rio: ela parece chorar a mesma água suja que corre, e seu soluçar assemelha-se ao barulho da correnteza. O corpo começa a correr em linha reta, em direção ao destino já traçado anteriormente; os seios sobem e descem à medida em que ela chora, como nas palavras do autor, "sin parar, como si de repente comenzaram a hincharse para empezar a trabajar por su perdición".

Depois dessa metáfora mais que cortante que Rulfo constrói durante o conto (e, acreditem, o negócio todo só vai quebrar a gente, de surpresa, no último parágrafo), eu não tinha como esconder as lágrimas escorrendo pelo rosto naquele fim de tarde. Nada mais lindo do que traduzir em palavras coisas que a gente julga indizíveis. Depois dessa, Juan Rulfo passou pro meu rol de prediletos. Abri a janela do Transcol pro vento quente de quase verão secar meu rosto e disfarçar a choradeira. A quarta-feira de cinzas havia chegado mais cedo pra mim, exatamente naquele momento.

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