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13.2.07

Herança?!

(Publicado em 07.02.2007)

Confesso que tenho os dois pés atrás com esse negócio de artista-novato que é filho de artista-lenda. A primeira coisa que me vem à mente nessas horas é um bando de gente sem talento tentando viver às custas do nome dos pais. A coisa chega ao ponto daquela menina, que é filha da Elis, ter se lançado na carreira artística como uma replicante que almejava ser idêntica à mãe nos mínimos gestos (e no máximo consegue soar risível), e só mesmo à custa de muito marketing multinacional pra conseguir convencer o povão a gastar seus suados trocados num cd — oficial ou genérico, pouco importa, dinheiro jogado fora sempre é dinheiro jogado fora, sejam cinco ou quarenta reais.

Pior ainda é quando rola aquela pretensão de formar um movimento que pretende sacudir o status quo de determinado campo. Os Artistas Reunidos da Trama que o digam: nem mesmo convocando, para suas respectivas bandas de apoio, alguns dos mais seminais instrumentistas da história da música popular, seus discos emplacaram (até o Max de Castro, que havia começado muuuuuuuuuito bem, só fez cair o nível, disco após disco). A filha do Xororó, pelo menos, é mais honesta nesse quesito. Melhor ainda fez a de um outro cantor sertanejo, que, se Deus quiser, muito em breve vai fazer jus à expressão “casou e mudou”, com seu príncipe encantado capixaba.

Se bem que a filha do Ravi Shankar, que nem foi criada pelo pai (separado da mãe há séculos, mas, ainda assim, ele funciona como um poderoso aval para se vender mais de vinte milhões de discos mundo afora), até que tem mantido uma carreira musical simpática, embora não muito inspirada (nada que vá mudar a vida de ninguém, mas pelo menos embala a vidinha no Leblon das novelas do Manoel Carlos).

Claro que nem tudo é assim. Vale lembrar o caso do Veríssimo filho, que morria de medo de escrever, por conta da sombra do Veríssimo pai, e hoje é um dos mais importantes escritores do país. E, já que o assunto desta coluna é literatura, não podemos esquecer o exemplo capixaba do “clã” dos Santos Neves, de onde sempre há garantia de romances da mais alta qualidade. Ok, os exemplos deste parágrafo são exceções, mas pelo menos são exceções que valem muito a pena e até me fazem esquecer de picaretagens como a Maria Rita.

Os Sete Novos, trio formado por dois primos, herdeiros do sangue azul das letras brasileiras (afinal, antes deles, já existem quatro Guimaraens com vaga garantida nos livros de história de nossa literatura) e um “plebeu”, propõe-se, com seus livros de estréia, a sacudir o marasmo da poesia brasileira. Sim, isso soa bastante pretensioso e já me deixaria com os dois pés atrás antes mesmo de folhear os livros. Ainda mais se levarmos em consideração todo o auê em torno dos livro: prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda, orelha assinada pelo José Celso Martinez Corrêa, o trio ser formado por autores egressos dos recitais do Cep 20000... O fato dos “sete” serem apenas três, com idades entre 22 e 27 anos, também colabora para aumentar essa mitologia em torno do grupo. Mas já fico aliviado de saber que o grupo não possui projeto estético definido para “salvar a literatura brasileira”: numa época em que “tudo pode”, todo e qualquer manifesto já soa natimorto. Por conta disso, os Sete Novos (Augusto de Guimaraens Cavalcanti, Domingos Guimaraens e Mariano Marovatto, o “plebeu”) assumem-se como parte de uma geração do “verso pós-utópico” (termo do Haroldo de Campos), cada livro como parte de projetos individuais para se pensar a poesia hoje.

No final das contas, o medo soou infundado: os três livros representam boas estréias literárias, com muito mais acertos do que erros, o que sinaliza a chegada de três autores dos quais ainda ouviremos muito falar. Um livro, em especial, me chamou atenção pela maturidade dos versos, pela sensibilidade extrema e sempre provocativa, qualidade que poucos poetas hoje em dia teimam em cultivar (afinal, a maioria ou cai num formalismo extremo, para disfarçar a falta de assunto, ou exagera na coloquialidade, imitando os clichês da poesia setentista brasileira, constituindo um arremedo pavoroso de nossa tão louvada marginalidade). Estou falando de Poemas para se ler ao meio-dia, de Augusto de Guimaraens Cavalcanti (exatamente o livro com prefácio de Heloísa, orelha do José Celso e escrito pelo mais novo do trio).

Augusto, como disse muito bem Heloísa Buarque em seu prefácio, em lugar de optar entre dois mundos, o da tradição familiar e o da contemporaneidade, “fica tranqüilamente com os dois”. Surrealismo, coloquialidade setentista, ícones da televisão (Sílvio Santos, aqui chamado de “fantasma lindíssimo andando pelas madrugadas dos anos 90”, e o sorriso do William Bonner são assuntos que rendem dois ótimos poemas), Pound, Bob Dylan... todas essas referências coexistem no texto do poeta, que as utiliza como pano de fundo em versos surpreendentes como o do poema “Tatuagem”: “Afogado no vício de pensar estrela e escrever escuro”.

Augusto constrói imagens poderosas, com uma naturalidade que chega a incomodar deliciosamente: “Tirei a pilha do relógio e cravei meu castelo de areia no ar”, diz o último verso de “Ritual”. Ou ainda o jogo entre os dois versos que compõem o pequeno grande poema “Multidão”: Livre para descobrir que a noite é um lago,/ Televisão para assistir estrelas”.

Outros textos transbordam ironia e senso de humor. “Coração”, também composto por dois versos, diz: “É expressamente proibido o rompimento do lacre,/ bem como a abertura do equipamento”. Já em “Alarme”, nos deparamos com as perguntas; “Seu despertador é um choque elétrico?/ Você acorda todo queimado?”

Curiosamente, uma das diversas colagens visuais que ilustram o livro (feitas pelo próprio poeta, bem como a capa) leva como título “Controle remoto organiza a harmonia do mundo”.

Para encerrar, eu destacaria ainda o texto que dá título ao livro, verdadeira ars poetica do fazer literário nesse início de século:

POEMAS PARA SE LER AO MEIO-DIA

(Augusto de Guimaraens Cavalcanti)

Pega a poeira das estrelas e guarda,

remenda, junta e forma outra estrela possível.

(o meio-dia possui estrelas que até a noite desconhece).


Passando o bastão adiante

(Publicado em 14.02.07)

Caros leitores,

Nem sei como começar, sempre fui péssimo em despedidas, até porque eu nem encaro desta vez como se fosse uma despedida. Prefiro dizer, aliás, que é uma mudança (totalmente voluntária) de rumos. É que, depois de sessenta e uma colunas (quer dizer, cinqüenta e sete, afinal eu coloquei um poema e três contos inéditos no meio disso tudo), acho que eu esgotei um pouco o que eu tinha a dizer sobre esse vastíssimo assunto que é a literatura.

As duas ou três coisas que eu acredito que saiba sobre ela, pelo visto, funcionaram bem mais do que eu esperava. Fiquei até bastante assustado quando percebi que este espaço era lido — e bastante lido. Pude constatar isso durante o II Seminário sobre o autor capixaba, ocasião em que encontrei muita gente interessante que me parava pelos corredores do IC2 para dizer que acompanhava, semanal ou esporadicamente, a coluna. Cheguei a ficar todo bobo quando um texto que eu escrevi aqui, com algumas impressões rápidas sobre Kitty aos 22, do Reinaldo Santos Neves, foi convidado pelo professor Wilberth Salgueiro para fazer parte de uma mesa-redonda sobre o livro. E quando eu recebi um e-mail dizendo que a Deny Gomes não só havia citado a coluna em sua fala durante o Seminário, mas que também era assídua leitora deste espaço, eu fiquei profundamente emocionado, embora um pouco preocupado com a responsabilidade de ser lido por gente tão importante como a Deny.

Durante pouco mais de um ano, vocês leitores puderam acompanhar uma série de discussões sobre o estatuto da literatura na “tão falada contemporaneidade”, desde a reconfiguração da atividade da leitura no corre-corre cotidiano até o exercício da escrita proporcionado pelos blogs e sites literários, ou ainda as comemorações pelos 400 anos do Dom Quixote. Pudemos acompanhar o lançamento de alguns títulos importantes no cenário capixaba, e resgatar alguns nomes (locais ou nacionais) que urgentemente precisam ser reeditados para as novas gerações de leitores. Vez por outra eu ainda encontrava espaço para falar de algum autor ou livro do meu rol de prediletos, quase sempre nomes não tão badalados (Boris Vian, Bioy Casares, Dino Buzatti, Juan Rulfo...), mas de importância incontestável na formação literária de muita gente boa por aí. Sobrava até tempo para fazer uma breve perseguiçãozinha à dublê de escritora Bruna Surfistinha (alguém ainda se lembra dela? Ah, esses hypes...) e aos escritores novos “badaladinhos” que insistem em copiar descaradamente Bukowski e todos os beatniks, como se isso fosse a última moda em Paris...

Poder compartilhar todos esses pontos de vista com vocês realmente me proporcionou um enorme prazer. Mas agora eu acho que devo passar o bastão a outra pessoa. Para trazer outros pontos de vista, e até mesmo discordar de tudo que eu escrevi antes, mas sempre colocando lenha na fogueira quando o assunto é literatura. Afinal, que graça teria se todo mundo pensasse igual?

A partir da semana que vem, quem assume a coluna de literatura é o escritor Carlos Calenti Trindade, dono de um texto sempre instigante. Duas semanas atrás, uma pequena amostra foi publicada neste espaço, enquanto eu estava de férias. Eu até então só conhecia alguns de seus textos ficcionais, muito bons por sinal, mas fiquei bastante empolgado com o artigo sobre o Vonnegut. Confesso que mal posso esperar para ler os artigos seguintes.

E aí vocês me perguntam: e você, Erly, vai para onde? Oras, eu continuo aqui. Só mudo o dia e o assunto. Toda terça-feira, vocês poderão conferir algumas impressões apressadas sobre outra de minhas grandes paixões: as artes visuais (artes plásticas, vídeo, performance e afins). A minha idéia é discutir um pouco sobre a produção local nessas áreas, a partir de textos dedicados a uma obra ou ao conjunto de trabalhos de um determinado artista. Digamos que é uma espécie de diário de bordo, rememorando alguns episódios que marcaram o circuito das artes visuais capixabas nos últimos oito ou dez anos, e acompanhando os próximos desdobramentos.

Como eu não sou artista plástico, o meu enfoque será baseado na minha experiência como espectador. Ok, um espectador privilegiado, porque eu pretendo trazer, em cada texto, o resultado de um questionamento junto ao artista sobre a experiência estética que essa obra proporciona. Sempre que possível, haverá uma entrevista ou um bate-papo com o autor, referente às obras sobre as quais escreverei. Espero que o resultado seja interessante. Afinal, eu lancei o desafio, o editor topou e agora eu vou ter que me virar para cumprir a expectativa. Pelo menos, vai ser um mergulho interessante nesse universo.

Pra quem quiser reler os textos publicados durante o tempo em que eu tomei conta deste pitoresco recanto, vale lembrar que o arquivo está publicado no blog http://estarsendotersido.blogspot.com. Tá tudinho lá, com direito a uma licença Creative Commons, que permite copiar à vontade, para uso não-comercial, desde que não se altere o conteúdo dos textos. Porque eu sou e sempre serei favorável a toda e qualquer flexibilização de direitos autorais. Copyleft, pra sempre.

Bom, é isso. Eu queria ter contado alguma longa estória que encantasse a todos, talvez seria uma forma interessante de encerrar esse capítulo da nossa pequena epopéia, mas como eu não sou Sherazade, eu prefiro recomendar a todos que continuem a ler, e ler muito, toda literatura boa que passar pelas mãos de vocês. Porque livro bom é aquele que causa aquele incômodo que a gente sabe muito bem o que é, aquela “pulga atrás da orelha” que nos transforma todo por dentro e que faz da gente pessoas cada vez mais interessadas e interessantes. Nada melhor que ouvir (e, vez por outra, contar) estórias, né?

É isso aí!


O fantástico universo de Bioy Casares

(Publicado em 06.12.06)

Aos poucos, o argentino Adolfo Bioy Casares deixa de ser considerado no Brasil uma nota de rodapé na literatura mundial. Em lugar de lançar mão dos usuais clichês “escritor amigo de Borges” ou “autor de uma obra só” (como se referem a ele os mais apressados, considerando apenas A invenção de Morel como ponto relevante de sua obra), cada vez mais o leitor brasileiro pode ter conhecimento da força do texto literário desse que foi um dos maiores ficcionistas do século XX. A publicação de seus livros pela editora Cosac & Naify, com direito a um projeto gráfico e encadernação de alto nível, em muito contribui para reavivar a importância de Casares.

Desta vez, as prateleiras das nossas livrarias recebem “Histórias fantásticas”, coletânea originalmente publicada em 1972 (e pela primeira vez disponível em tradução para o português), reunindo catorze contos, escritos entre 1944 e 1969. Temas como a suspensão do tempo, a invenção de máquinas que modifiquem a realidade, a materialização do pensamento e o estranhamento frente a banalidade cotidiana dão a tônica desses relatos.

Aqui, podemos perceber com nitidez o que Borges queria dizer ao afirmar que Bioy Casares era um escritor situado acima do debate que opõe os antigos aos modernos, e não somente pelas referências que tanto remetem à cultura antiga (Cartago, pigmeus), à tradição ocidental (principalmente a Europa romântica) e uma certa perplexidade frente à ciência moderna (o conto “Os entusiasmos” dialoga diretamente com o desejo de imortalidade da Invenção de Morel). Em diversos textos, há também um interessante diálogo com uma forma de narrativa ficcional curta anterior ao século XX: a maioria dos relatos inicia-se em primeira pessoa, como se o narrador contasse uma anedota, sempre com uma introdução que contextualiza a origem sócio-cultural desse narrador e sua relação com o episódio ou personagem a ser melhor destrinchado nas páginas seguintes: é sempre uma história introdutória que o fez recordar um antigo e inexplicável episódio, em torno do qual orbitará a narrativa. Só nessa introdução, vão três, quatro páginas — ou mais, como o narrador preparasse o leitor com amenidades, de modo a tentar minimizar o impacto do episódio narrado, quase sempre de natureza sobrenatural ou fantástica. Esse tipo de estrutura é bem comum nos contos longos até o século XIX, e pouco usada pela modernidade da primeira metade do século XX. Contudo, Bioy Casares consegue extrair dela um resultado fascinante: primeiro, ele não minimiza o impacto do relato fantástico (pelo contrário, ele ressalta o estranhamento que ele provoca, recontextualizado na banalidade do cotidiano de seu relatante), potencializando-o; por outro lado, ele consegue a façanha de contar, em muitos momentos, duas estórias em uma, optando por abandonar a primeira numa bifurcação do texto, e optar pelo relato sobrenatural propriamente dito — ainda assim, a primeira trama, interrompida, revela-se, ao final do conto, quase tão perturbador quanto o segundo enredo, de modo que resta ao leitor perguntar-se como continua a primeira estória, quais as implicações que ela traz ao narrador e a seus personagens: um estranhamento digno do melhor da literatura do século XX, atingido aqui por caminhos pouco usuais. Exemplo disso é o conto “A serva alheia”, que trata da redução do corpo humano através de rituais praticados por tribos da África Equatorial (eu, particularmente, terminei o conto querendo saber o que tinha acontecido à pobre Tatá, da primeira parte do relato...). Ou seja, nos textos de Bioy Casares, a linearidade quase que teimosa é apenas aparente, um subterfúgio para desencadear uma pluralidade narrativa que se desdobra no imaginário do leitor.

Outra característica desse volume é o uso do ciúme e da paixão como força motriz para a instalação do fantástico. “Em memória de Paulina”, conto que abre o volume, e talvez o que soe mais familiar ao leitor de A invenção de Morel, em especial pelo tom da narrativa (e pelo desfecho, em que o narrador compartilha conosco de suas hipóteses acerca do ocorrido), trata de uma constatação amarga (a de que a amada nunca realmente amou o protagonista) que só nos é apresentada após uma densa descrição de uma situação de suspensão do fluxo do tempo (e da projeção de fantasmas). Já “Moscas e aranhas” trabalha com uma situação de sonhos provocados no personagem principal, para conduzir a um surpreendente desfecho movido por uma paixão que ao leitor soa como totalmente inesperada, mas que se torna plausível com poucas linhas de texto (aliás, concisão é um dos maiores méritos de Bioy Casares, diga-se de passagem). “O lado da sombra” é uma narrativa obsessiva (no mesmo sentido que “O abacaxi de ferro”, de Eden Phillpots é um relato obsessivo) que mistura real e imaginário dentro das suposições confusas de um homem subitamente atacado pelo ciúme e por uma inesperada ruína.

Em outros momentos, Casares trabalha com uma refinadíssima ironia, para tentar dar conta desse sentimento de perplexidade frente ao que não se pode explicar com argumentos meramente racionais. “O grande serafim” fala de um grupo de hóspedes de uma pousada litorânea que continuam a viver suas pequenas intrigas burguesas e suas miudezas do dia-a-dia, ainda que o fim do mundo faça-se presente com uma série de hecatombes (o mar que aprodece, o chão fica quente, as águas termais brotam cada vez mais com alta concentração de enxofre, notícias estranhas chegam pelo rádio). “A passageira de primeira classe”, conto de 1969, é um relato sobre a impotência (travestida em desdém) de uma decadente aristocracia frente aos passageiros da segunda classe, que em muito se aproxima do embate entre os “velhos” amedrontados e inerciais e os jovens raivosos e violentos do romance “Diário da guerra do porco” (publicado no mesmo ano em que o conto foi escrito).

Mas o mais impressionante dos contos deste volume é o que mais se aproxima dos textos do “amigo de toda vida” Jorge Luis Borges: trata-se de “A trama celeste”, cujo mistério envolvendo mundos paralelos é desvendado aos poucos, com ênfase na reação de seus protagonistas, e posto em questão com o cínico desfecho proposto pelo narrador. Nesse relato, que transpira erudição nas intertextualidades inesperadas com textos de Louis-Auguste Blanqui e Cícero, o tom da narrativa é sempre comedido, sofisticado, reservando uma série de pequenas surpresas quase que a cada parágrafo. O leitor começa a especular acerca da verdadeira chave do enigma, num conto que soa intrigante mais de seis décadas depois de sua publicação original. Instigante, como costumam ser os textos de Bioy Casares — instigante ao ponto de causar-nos uma perplexidade das mais intensas, sem, contudo, desviar a atenção do leitor do desejo inicial de desvendar o relato, de devorá-lo compulsivamente até o final.

Está aí um autor que deu uma grande lição ao século XX: é possível sim, estar atento ao espírito de sua época, fragmentário, multifacetado, sem renegar as formas tradicionais de literatura. Contudo, não é um reacionarismo: trata-se de uma sutil implosão da tradição, de modo a confundir seus estilhaços com os da modernidade de forma tão intrincada que, ao leitor apressado, soará como se, aparentemente, estivesse tudo bem, tudo intacto, de tão bem colados que os cacos estão, muito embora a cola que os une deixe um gosto de estranhamento e desconforto no ar. Isso pra mim, é uma prova de absoluta sintonia com a modernidade.


Os mortos estão de volta

(Publicado em 29.11.06)

Dezoito anos depois de sua primeira edição, Os mortos estão no living, único livro de contos de Miguel Marvilla (mais conhecido por sua excelente produção poética), volta às livrarias, com direito a novo projeto gráfico e indicação ao Vest-Ufes 2007.

Desta vez, os “mortos” ressurgem com direito a uma terceira parte (“Faixa-bônus”), que amplia as discussões apresentadas nas duas seções anteriores, “Os mortos” e “Os outros” (no caso, os que não estão mortos, ou que juram não estar). Mais que falar da morte propriamente dita, o livro trabalha com a temática da finitude: fim de um ciclo, de convenções, de liberdades, de relacionamentos afetivos, de pequenas esperanças. Uma sucessão de pequenas “mortes” metafóricas, mesmo quando tudo aponta para o início de uma nova etapa: “A noiva passa, de carro, como para um enterro”, é a frase inicial do primeiro conto, “Três histórias”, que sintetiza com bastante precisão o espírito dessa obra.

Vale lembrar que o livro foi escrito na década de oitenta, o que, no Brasil, significa a contraposição, frente à euforia da abertura política, de um sentimento de ressaca, agravado pelo acelerado processo de individualização que tanto marcou a década. Miguel chega a falar de um niilismo, que se traduz num reconhecimento de situações intransponíveis, congeladas e sua superação, de forma pouco convencional, quase inesperada.

Este não é um livro de contos convencionais. Aqui, Miguel optou por enveredar por uma espécie de prosa poética com fartos recursos oriundos da poesia (o “esteticismo caudaloso” de que fala Paulo Sodré, no posfácio do volume): metáforas, aliteração, sinestesia, trocadilhos semânticos e sonoros, recursos visuais (num texto, a palavra “estilhaços” literalmente se espatifa pela página; noutro conto, a palavra “carcomidas” é propositalmente “apagada” em algumas partes). Segundo Marvilla, a prioridade é muito mais a construção de uma imagem, a construção do sentido, do que o ato de contar uma história. Quando a gente embarca no clima do texto, é hora da estória se estilhaçar: e qualquer parentesco com a experiência da leitura de poesia aqui é totalmente intencional.

Talvez por isso, alguns textos, apesar de curtos, soem árduos ao leitor desavisado, principalmente se ele está acostumado à poesia precisa (e erudita) dos livros posteriores de Marvilla (Sonetos da despaixão e Dédalo). Principalmente se levarmos em consideração o tom de farsa assumido pelo livro todo. Ou você acha que todos esses diálogos nada naturalistas, toda a afetação na descrição de ambientes e situações seriam outra coisa? Em “O vampiro, Deborah”, uma borboleta “atravessa o set”, revelando toda a encenação, anunciada antes por pequenas pistas: “Parece poesia? É poesia” (o conto foi todo construído a partir de trechos de cartas de amor, o que explica quase tudo). Miguel ainda ressalta a profusão de citações aparentemente pedantes como elementos de não-naturalização narrativa. E viva à ironia!

Curiosamente, os dois textos mais impressionantes do livro, dezoito anos depois da primeira publicação, são menos calcados nessa prosa poética, abrindo espaço para um interessantíssimo desenvolvimento da narrativa: em “Maria, Clara, Lia, Suzana”, cada uma das ex-mulheres é simbolicamente arremessada pela janela, num expurgo de memórias dolorosas que se traduz numa impactante imagem, a chuva de cadáveres que incomoda a vizinhança; já no conto que dá título ao livro, em que uma dona-de-casa percebe que finalmente falecera, ainda que tentasse continuar no desempenho de suas funções cotidianas, o sentimento que se espalha pelo leitor é de um doce estarrecimento. Curiosamente, Miguel me relatou que, numa das várias palestras que ele tem dado sobre o livro nas escolas e cursos pré-vestibulares, por conta da indicação para o Vest-Ufes, um estudante secundarista declarou ter-se perguntado, durante a leitura do texto, em qual momento do conto a personagem teria morrido, chegando à conclusão de que ela teria morrido durante a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, tirada do poema “Comunhão”. Tal colocação surpreendeu o autor, por conta do lirismo presente em tal descoberta. Quando ele me relatou, fiquei bastante surpreso: quase duas décadas depois, os “mortos” (e os “outros”) de Miguel Marvilla ainda fazem muito barulho, e incomodam com sua transbordante poesia.


“Dele é a mão que cria...”

(Publicado em 22.11.06)


A fala clássica do romance A ilha do Dr. Moreau, ensinada pelo cientista a seus ani-homens (“Dele é a mão que cria. Dele é a mão que pune”) ganha novos contornos a partir do romance de Octavio Aragão, que herda de H. G. Wells muito mais que apenas seu título. Ao criar um interessantíssimo romance de ficção científica que assume a intertextualidade e a apropriação de personagens e práticas oriundos tanto das obras clássicas do gênero quanto da realidade tal qual a conhecemos (ou supomos conhecer), o autor apresenta um trabalho que em muito conquistará leitores para o filão nacional do gênero, quase sempre relegado à preconceituosa condição de literatura menor.

Aragão aventura-se num terreno pouco explorado na literatura nacional: a ficção alternativa, aquela que propõe uma nova ordem de acontecimentos históricos, influenciados por desfechos de eventos cruciais ocorridos de forma bem diversa da nossa realidade (como, por exemplo, se os aliados perdessem a guerra), ocasionando profundas transformações em nossa civilização, não só em termos tecnológicos, mas até mesmo no equilíbrio das forças geopolíticas.

Apesar desse gênero ser pouco contemplado pela produção nacional, a efervescência de tópicos em comunidades de Orkut, voltadas à ficção e à história alternativas e à ucronia comprova a existência de um vasto público potencial para esse tipo de literatura. Apenas a título de curiosidade, os “historiadores-especuladores” até dedicaram posts do tipo “Que teria acontecido se Roberto Jefferson não tivesse denunciado o mensalão?” ou “e se os EUA tivessem se aliado ao Irã em lugar do Iraque?” — e um bem-humorado post inclusive ironiza o “futuro” planejado pelos textos de sci-fi dos anos 50-60 para este começo de século, ressaltando que o fato dos tão sonhados “carros voadores” nunca terem se tornado realidade nos poupou de uma série de ataques terroristas suicidas em arranha-céus, no pior estilo “11 de setembro”.

Mas deixemos de lado o Orkut e voltemos à literatura, que é o nosso assunto principal. Octavio demonstra uma grande familiaridade com a prática da ficção alternativa: afinal, ele é o mentor do premiado Projeto Intempol (http://www.intempol.com.br), que começou como site e hoje se desdobra em livros, RPG e HQs envolvendo vários criadores nacionais em torno de um universo de viagens no tempo em que atua uma polícia temporal praticante do melhor “jeitinho” brasileiro.

Contudo, o que menos se vê em A mão que cria é esse “jeitinho”. Estamos aqui diante de um interessante quebra-cabeças, que se desenrola numa realidade paralela em que Júlio Verne (aqui, amigo pessoal de Dom Pedro II) seria eleito o primeiro presidente da França, conduzindo a nação à dianteira da supremacia tecnológica mundial. A geração de uma nova espécie biológica pela Fundação Moreau, mais resistente que a humana, mesclando genes de homem e de golfinho, e a (frágil) aliança entre os “homens-peixe” (embora golfinhos sejam mamíferos, o nome popular da nova “raça” acabou sendo esse, diz o livro) e os humanos para enfrentarem os “desmortos” (e aí o nome George Grecco, uma deliciosa referência ao diretor George Romero, mestre dos filmes de zumbis, me arrancou gargalhadas em pleno 507 lotado) revela uma série de nuances a respeito da ambígua relação entre os três lados do combate. Aqui, tantas são as mãos que criam e as que punem, de modo que esses papéis muitas vezes se confundem, enriquecendo em muito a experiência da leitura.

Só essa trama bem construída e bastante imaginativa já valeria o livro (tá certo que o autor poderia ter explorado melhor alguns elementos, como o primeiro filho de Leonard McKenzie), mas duas outras qualidades merecem ser ressaltadas: em primeiro lugar, as referências a diversos textos e fatos (ficcionais ou reais) que habitam o imaginário cultural ocidental; em seguida, a construção narrativa, muito bem dosada, com os capítulos sendo divididos de maneira precisa, nos pontos cruciais da trama, alternando o foco narrativo em cada segmento, e permitindo ao leitor deliciar-se com a montagem do quebra-cabeças à medida em que cada informação-chave é revelada, em doses muito bem calculadas. Afinal, nesse tipo de literatura, o domínio do suspense é um elemento tão fundamental quanto a construção de atmosferas detalhadas de cada realidade imaginada. De certa forma, é isso que reforça o estilo e o trabalho com a linguagem presentes na escrita de ficção científica (uma literatura na qual os malabarismos sintáticos são menos importantes que a criação de um labirinto narrativo de complexidade suficiente para convencer o leitor). E esse é um dos grandes trunfos do livro de Octavio Aragão. A mão que cria é daqueles livros que a gente termina de ler cada capítulo e retorna ao anterior para perceber que os fragmentos de informações anteriormente apresentados (e completados com as nossas suposições) na verdade apontavam para outros desfechos (e é um jogo bastante interessante esse de tentar supor os desfechos, descobri que a suposição estava errada e partir para outra especulação).

Dá até vontade de conhecer o autor, não dá? E se eu disser que ele atualmente reside aqui em Vitória mesmo, e que é professor do departamento de Design da Ufes? E que vai lançar esse livro no dia 28, na Livraria Huapaya? Não, não estou fazendo minha própria ficção alternativa no final desta coluna. Basta passar por lá e conferir essa rara amostra de ficção científica nacional — aliás, o livro define-se como a primeira aventura brasileira no ramo da ficção alternativa. Espero que esse seja o ato inaugural de mais uma tradição na prosa nacional: afinal, a ficção científica (bem como a literatura fantástica, alvo de uma das minhas primeiras colunas, publicada em 18 de janeiro de 2006) há muito deixou de ser considerada um gênero literário menor. Júlio Verne (depois dessa leitura, estou convencido de que ele teria sido um brilhante presidente da França, diga-se de passagem, hehehehe) que o diga.


A devassidão nossa de cada dia

(Publicado em 08.11.06)

Por conta da segunda edição do Poesia e prazer: Sarau de Literatura erótica e pornográfica, que acontece nesta quinta, dia 09 de novembro, a partir das 20 horas na Livraria Huapaya, eu recebi o pacote com os três primeiros volumes da Coleção Devassa. A coleção, numa parceria entre a Azougue Editorial e a cultuadíssima Cervejaria Devassa pretende apresentar ao leitor (ao sugestivo preço de 29 reais e 69 centavos cada volume) um belo apanhado da literatura erótica, e logo de cara traz três títulos bastante curiosos: O deliciosamente libertino Manual de boas maneiras para meninas, de Pierre Louis; as aventuras da porn star Patty Diphusa, de Pedro Almodóvar (desta vez reeditado com quatro histórias inéditas no Brasil); e Eu sou uma lésbica (originalmente publicado como folhetim na revista Status, em 1980), de Cassandra Rios. O caráter saudosista das revistas e livros eróticos baratos vendidos em bancas nas décadas de 70-80 inclusive, é assumido (numa releitura “luxuosa”) no projeto gráfico da coleção: livros em formato “quase de bolso”, com capas ao mesmo tempo modernas e retrô (ilustradas com pin ups num delicioso pastiche da pop art sessentista com algo de Zéfiro), e miolo em papel Reciclato, cuja cor remete ao papel jornal das publicações eróticas de banca, mas com um durabilidade muuuuuuuito maior e sem o clássico risco de oxidação das páginas (após algum tempo) que os leitores de antigamente conheciam muito bem. Sem contar que as traduções são impecáveis, e que inexistem aqui os célebres erros de revisão dos livrinhos de sacanagem de antigamente.

Como o assunto dos livros era basicamente sexo, nem preciso dizer que foram os três lidos de uma tacada só, né? E é curioso perceber as diferentes abordagens do tema presentes nesses volumes, produzidos originalmente em contextos históricos e sócio-culturais tão diversos entre si. Claro que o que mais aproxima os três livros é o objetivo previsto no próprio press release da coleção: explorar as relações entre voyeurismo e imaginação. E é aí que os três volumes assumem sua diversidade, em grande estilo.

Vou começar pelo Manual de boas maneiras para meninas, por sinal, o mais interessante dos três textos. Escrito por Pierre Louÿs (autor de um outro livro que daria origem ao genial filme de Buñuel, Esse obscuro objeto do desejo) durante a Primeira Guerra Mundial (e publicado postumamente), o livro é um divertidíssimo compêndio de etiqueta libertina capaz de corar o leitor contemporâneo. Trata-se de um autor que circulava com grande liberdade pelas rodas literárias parisienses do final do século XIX e início do século passado, respeitado por gente como Éluard, Mallarmé e André Gide, seu amigo pessoal. Ele ainda fundaria, em 1891, a revista La Conque, que publicaria diversos desses autores. E vale lembrar que Claude Debussy compôs alguns temas inspirados em textos de Louÿs, conforme o prefácio à edição brasileira, assinado por seu tradutor, Bernardo Esteves. Ou seja, estamos diante do texto de um autor em perfeita sintonia com o espírito anárquico da nascente modernidade.

A produção assumidamente pervertida de Louÿs foi mantida afastada dos olhos do grande público até sua morte, e ironicamente é a face mais festejada de sua obra até hoje. Muitas passagens do livro lembram o delicioso moralismo às avessas d’A Filosofia na Alcova de Sade, acrescido de altas doses de cinismo: afinal, Louÿs fez o favor de catalogar os principais costumes da aristocracia francesa da Belle Époque e subvertê-los totalmente, emitindo observações altamente sarcásticas acerca da hipocrisia burguesa de uma vida duplamente articulada, casta na aparência e altamente permissiva nos seus subterrâneos.

Os capítulos ensinam as regras de uma “etiqueta sexual” a ser aplicada irrestritamente nos diversos lugares freqüentados pelas “boas” meninas do início do século XX (a sala de aula, o baile, o confessionário, o parque, o museu, os Champs-Elysées, o clube, o hotel, o campo) e com pessoas dos mais diversos níveis hierárquicos (familiares, serviçais, amigos, amigas, amantes, amantes de suas mães, velhos e até mesmo com o Presidente da República). A melhor seção é a última, intitulada “Nunca diga... Diga...”, que ensina uma série de eufemismos pervertidos que dão vontade de reler todos os puros e clássicos livros canônicos, apenas pela pueril diversão de tentar identificar duplos sentidos na fala dos personagens.

Vou mostrar três ou quatro passagens do livro (as mais leves que eu encontrei), só pra dar o gostinho:

“Não suba no pedestal das estátuas atigas para se servir de seus membros viris. Não é permitido tocar nas obras de arte, nem com a mão, nem com o rabo”. (No Museu)

“Em qualquer circunstância, virar as costas a um idoso é uma atitue considerada indelicada. Entretanto, uma menina nua que apresenta a sua bunda a um velho safado não corre o risco de ser repreendida”. (Na cama com um velho)

“Nunca diga: ‘Tenho doze consolos na gaveta’. Diga: ‘Nunca fico entediada sozinha’.” (Nunca diga... Diga...)

“Nunca diga: ‘O pau dele é muito grande para a minha boca’. Diga: ‘Sinto-me pequena quando converso com ele’.” (Nunca diga... Diga...)

Perto do revival libertino proposto por Louÿs, Cassandra Rios parece fichinha. A publicação em livro do folhetim “Eu sou uma lésbica”, contudo, cumpre a função de apresentar ao leitor deste início de século uma das mais controversas autoras brasileiras. Cassandra (pseudônimo de Odete Rios), começou a publicar suas histórias de alto teor homoerótico (feminino) ainda em 1948, aos dezesseis anos. Nas décadas de 60 e 70, ao mesmo tempo que a ditadura militar censurava seus inúmeros livros, ela quebrava recordes de tiragem: em 1970 já havia vendido mais de um milhão de exemplares, número que se ampliava constantemente, graças a uma vendagem anual de 300 mil exemplares (marca que só seria superada nos anos noventa por aquele mago fajuto cujo nome eu me recuso a digitar ou pronunciar). Todo mundo lia Cassandra nos anos de chumbo, das donas de casa aos estudantes, das domésticas aos magistrados, todos degustavam best-sellers como “Tessa, a gata” e “Nicoleta Ninfeta”, ainda que muitas vezes às escondidas (Bethânia era tão fã que, ao estrear o show “Drama”, em 1973, incluiu a escritora na lista de convidados da apresentação de estréia, como relata o diretor do espetáculo, Antônio Bivar, em entrevista ao site “Trópico”).

Rival de Adelaide Carraro, outra best-seller pornográfica dos anos 70 (e que hoje é mais conhecida pela simplória série O Estudante, cujo primeiro volume, aquele que todo mundo leu, tem as célebres “parte azul” e “parte negra”), Cassandra era uma figura controversa. Era perseguida pela direita, que a tachava de imoral e pervertida, e pela esquerda, que a considerava conservadora — realmente, Sou uma lésbica tem muito mais um tom de culpa do que de libertação, e sua narradora em primeira pessoa mais parece aqueles homossexuais dos filmes hollywoodianos dos anos 40-50 que, ao final dos filmes, ou acabavam no hospício ou na cadeia, como assassinos, ou ainda cometiam suicídio). Numa de suas entrevistas, dada em 2001, poucos meses antes de morrer, para a revista TPM, Odete (afinal, ela deixou de ser Cassandra no momento em que encontrou a religião) afirma que Cassandra Rios é conservadora e moralista. E o livro deixa essa impressão.

Cultuada pelos gays e lésbicas da época, e defendida até por Jorge Amado, ela era convidada a aparecer nos programas de TV, tamanha a sua popularidade, ao mesmo tempo em que era presa e humilhada, como nesse depoimento publicado no livro Flores e Cassis:

“Até bofetada de delegado, na cara, levei. O que mais temiam? Já não estava eu proibida? Hoje entendo. Ruminavam que eu precisava ser algemada, amordaçada, enxovalhada de todas as humilhações, desacreditada na minha conduta moral, para denegrirem meu talento e consagrarem suas aleivosas pessoas! Verdade que, na época, assim diziam, só eu vendia! O público consumidor via, só nas páginas dos meus livros, gente com as quais hoje cruzam nas ruas, livres, sem ter que disfarçar e pagar pelo que nasceram.”

Tornou-se célebre uma de suas frases, que resume essa condição de polemista: ''Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada''. O universo da autora em muito encontra-se distante do hedonismo das pornochancadas de Galante, Mossy e Ody Fraga, produzidas na mesma década, e hoje tão deliciosamente cultuadas (por falar nisso, algum de vocês já viu a divertíssima comédia erótica estrelada por Mossy em terras capixabas em pleno 1975, Quando as mulheres querem provas?). Talvez por isso, a publicação de Cassandra na Coleção Devassa tenha mais uma importância em recolocar o nome da autora na ordem do dia das Letras Brasileiras (uma vez que ela, inexplicavelmente, é ignorada pela academia) e, quem sabe, possibilitar a reedição de outras de suas obras outrora badaladíssimas. ignorada pela academia) e, quem sabe, permitir a reediçetras Brasileiras (uma vez que ela, inexplicavelmente, ue ou terminavam

Patty Diphusa, ao lado de Fogo nas entranhas (publicado em 2000 pela Dantes, e atualmente fora de catálogo), é essencial para compreendermos a Movida Madrileña, na qual se originou o autor dos textos, o espanhol Pedro Almodóvar, figura capital na sensibilidade artística mundial nos últimos 25 anos. Afinal, se hoje o cineasta promove um dos mais sólidos conjuntos de obra audiovisual da atualidade, com suas precisas incursões melodramáticas pelo universos das relações familiares, devemos levar em consideração toda uma trajetória que se inicia no final da década de 70, em filmes, quadrinhos, fotonovelas e contos de alto teor subversivo, repletos de erotismo, promiscuidade, drogas e irreverência. E, se os filmes do início de sua carreira hoje oferecem pistas preciosas para o entendimento de suas obras recentes, o mesmo pode se dizer de seus textos mordazes e ácidos.Afinal, suas personagens deste início de século nada mais são que jovens da Movida, lidando com os dilemas éticos e morais da vindoura meia-idade.

Ah, você nunca ouviu falar da Movida? Nem de Alaska (ainda hoje um nome essencial na música pop espanhola), Aviador Dro, Fanny McNamara e tantos outros nomes? Tudo bem, eu entendo que nosso preconceito pequeno-burguês brazuca nos impede de prestar atenção em quase tudo que venha dos países de língua espanhola. Por isso mesmo que Patty Diphusa em muito contribui para apresentar esse universo de excessos e experimentações, essa espécie de Factory espanhola que nem mesmo Andy Warhol, mentor intelectual da Factory original novaiorquina dos 60s, conseguia digerir — e isso, Almodóvar deixa muito claro no ótimo “Prólogo” da coletânea. Esse texto, bem como todos os contos do livro (e filmes como Labirinto de paixões, Pepi Luci y Bom e Que fiz eu para merecer isso?), apresenta um underground cuja efervescência reprocessava ícones culturais não só oriundos do universo Warhol-Paul Morrisey, como os filmes de alta voltagem erótica estrelados por Joe Dalessandro, mas também Divine, Holly Goligthly e a sempre fabulosa Dorothy Parker.

Nas palavras de Pedro, temos aqui uma garota “com tanto desejo de viver que nunca dorme, ingênua, terna e grotesca, invejosa e narcisista, amiga de todo mundo e de todos os prazeres e sempre disposta a ver o melhor lado das coisas. Alguém que, refletindo apenas sobre a superfície das situações, acaba obtendo o melhor delas. Patty foge da solidão e de si mesma e faz isso com muito humor e bom senso”.

Os quatro contos escritos nos anos 90 ampliam a dimensão da personagem, reapresentando-a de forma deliciosamente deslocada na ressaca da utopia de sua geração, abrindo caminho para que Almodóvar explorasse esse universo a partir dos filmes A flor do meu segredo e Carne trêmula, verdadeiros divisores de água de sua obra artística. O diálogo estabelecido entre o envolvimento ardente com um taxista em “Um quilo de mariscos” (de 1984) e a sexualidade do filho desse taxista em “Bi” (1993) é bastante emblemático dessa transição.

A Coleção Devassa apresenta, com esse primeiro lote de lançamentos, um convite irresistível ao mergulho na literatura erótica. Eu, se fosse você, não recusava. Inclusive, aproveite pra aparecer no Sarau de quinta na Huapaya (com direito a poesia, performances e outras coisas mais, numa curadoria de Fabrício Noronha e Raoni Huapaya). O prazer será todo seu e de quem mais quiser, eu tenho certeza.


Coisas não-ditas, demônios descontentes e beterrabas

(publicado em 01.11.06)

Nas últimas semanas chegaram às minhas mãos três lançamentos publicados pela 7Letras. Dois livros de poesia e um de contos, todos de autores estreantes, com direito a prefácios e orelhas de expoentes da produção literária contemporânea, constituindo, de certa forma, um curioso recorte da safra nacional deste começo de século, que vez por outra dá sinais de vida inteligente e de pontos de vista instigantes (ok, eu disse “vez por outra”, não disse “quase sempre”...).

A fila sem fim dos demônios descontentes, da publicitária Bruna Beber (carioca nascida em 1984), abre com uma epígrafe (na verdade um verso de canção) da cantora cult Regina Spektor (que já gravou até com os “mudernérrimos” The Strokes) que, de certa forma, dá o tom do livro: “And it breaks my ha-ha-ha-ha-heart”. Seguem-se poemas com títulos absurdos como “John Cage”, “Guess Rô Rô” e “Graciliano Beat”. Ou seja, o diálogo direto e sem cerimônias com a cultura pop (afinal, hoje tudo é passível de assimilação pela cultura pop e transformável em comunidade de orkut, até mesmo as experimentações do Oulipo ou o dodecafonismo) assume-se como um modus operandi na construção de cada poema. “John Cage” encerra com duas estrofes fabulosas, que justificam o título de forma inusitada:

Morreremos

Partiremos

Surgiremos

num palco abandonado

para cantar uma música

e sair

Às vezes, temos um lirismo que me traz uma sensação parecida à de ler certas coisas de Ana Cristina César. Não que ela seja uma influência direta (o texto de Bruna caminha por veredas bastante diversas, inclusive, e é bastante original em vários momentos). A comparação com Ana C., antes que me acusem de forçar a barra, vem pelo fato de que Bruna também é uma autora que traduz seu universo particular com um sarcasmo poucas vezes visto na poesia contemporânea brasileira. Ou seja, é de escritoras assim, acertando ou errando (e nem sempre ela acerta, mas quando acerta, é fabulosa!) que nossa literatura “em-cima-do-muro” precisa. Isso me faz concordar com o que o Paulo Scott diz na orelha do livro; “Bruna tem um mundo Nara Leão dentro dela, sabia?” É, tô sabendo agora...

“Vladimir Maiakovski” é um desses textos (em minúsculas, como no livro):

paulo mendes campos

me transformou

numa nuvem de calças

e quando choro

chovo botões de rosa

Ou ainda “Hyde Park”:

desde o dia em que ouvi o barulho

da porta batendo

fiquei anos sem ouvir barulho

de porta batendo

o médico diz é surdez

eu digo é que nunca mais

abri as portas.

O outro livro de poesias é A casa das coisas que não se dizem, de Michel Klejnberg. Trata-se de um volume de conteúdo irregular, mas recheado de pérolas curtas e afiadas, como “Autopsicografia”: “Quanto a mim, sorrio sempre,/ sempre carreguei um sorriso,/ por saber os meus olhos claros e tristes.” O que talvez me incomode um pouco é o excesso de piadinhas. Um poema chamado “Simples”, composto pelos versos “No meio do caminho tinha uma pedra/ que eu chutei.”, seguido de um “Mais simples” (“No meio do caminho não tinha uma pedra.”) pode impressionar numa primeira leitura, mas a piada perde a graça logo depois. Alguns desses chistes muito me agradam, contudo, como este daqui:

“Um poema sobre as infinitas formas de amar”

— Deita

O terceiro livro é o mais interessante dos três. Trata-se da coletânea de contos O doce vermelho das beterrabas, de João Batista Ferreira (nascido em 1959, gaúcho radicado em São Paulo). O prefácio é do saudoso Caio Fernando Abreu (na verdade, é um trecho de uma coletânea de novos autores paulistas que ainda hoje permanece inédita) e a orelha é de Marcelino Freire. Isso poderia servir como desculpa para tentar trazer um verniz de “relevância” pros contos de João Batista, mas nem precisava, porque os textos são, em sua maioria, irretocáveis (Dos dezessete contos, eu talvez tirasse 3 ou 4 para deixar o livro mais coeso e candidatá-lo ao rol dos livros do ano).

O livro inteiro exala um sentimento de perplexidade bittersweet, uma solidão incomensurável, um estado de “perda de si” nos personagens, e é tudo tão intenso que a gente começa a se questionar se estamos diante do livro de um “estreante”. Mesmo quando os contos lembram um pouco Caio Fernando (sim, João Batista “apareceu” numa oficina literária ministrada por Caio no comecinho dos 90), como a epifania da enorme Júlia, com suas mãos pequenas, em “Leveza”, a narrativa é conduzida de maneira bastante comedida, precisa, despreparando o leitor para o choque com o inevitável de cada um.

Eu disse “despreparando”, e isso pode ser tomado como um elogio: João Batista Ferreira consegue, em diversos momentos, tirar a sensação de conforto do leitor, coloca-lo em choque com as arestas da narrativa, e essa experiência é de uma beleza cada vez mais rara na produção contemporânea, muito mais preocupada em reforçar uma (des)filiação a determinada tribo e a falar do mundinho “quarto-e-sala-na-zona-sul” que cansa a todo mundo que não vive num quarto e sala na Zona Sul do Rio.

“Flor” fala da obsessão de uma filha em repetir, a vida inteira, o desenho de uma flor proposto pelo pai na sua tenra infância, copiando-o nos mínimos detalhes. “Aniversário” consegue, logo nas primeiras linhas, fazer transbordar a riqueza do universo de uma secretária executiva quarentona e solteirona. Do conto que dá título ao livro, talvez o melhor de todos (e desde já um clássico), eu nem vou dizer nada, só vou me limitar a repetir o trecho que o Marcelino Freire cita na orelha do livro:

— Carneirinhos?

— É. Contei quase trinta mil.

— E adormeceu?

— Não. Amanheceu.”

Acho que, depois disso, tenho bem pouco a dizer. Vou ficar aqui, no meu cantinho, aguardando os próximos livros desses autores, cujas estréias valem a pena. Enquanto isso, fica a dica para o Natal: dê O doce vermelho das beterrabas de presente. Nem que seja pra você mesmo(a).


Máquina de escrever imagens

Erly Vieira Jr

(Publicado em duas partes: 11 e 18.10.2006)

Caros leitores:

Esta é nossa coluna de número 50. Confesso que eu nem imaginava que minha colaboração aqui no Século Diário iria durar tanto tempo assim. Até porque eu pensei que não teria tanto assunto pra sustentar meses seguidos de coluna, principalmente se a gente for considerar que cada vez menos as pessoas lêem literatura, e que cada vez menos se publica literatura (boa ou ruim) neste país. A própria experiência da leitura há muito teve sua função social transformada de forma radical (aliás, historicamente ela sempre sofreu transformações, esta nem de longe seria a primeira ou a mais profunda, ao menos por enquanto). Uma das minhas primeiras colunas versava sobre a quase impossibilidade de se ler um romance de 400 páginas no frenético cotidiano da contemporaneidade, em meio a tantas tecnologias de conexão permanente, tantas informações simultâneas vindas de todos os lados, reduzindo o tempo da leitura ao mínimo necessário para se atravessar um post de blog ou as quinze/vinte linhas de um texto jornalístico on-line. Ao mesmo tempo, as transformações pela qual a literatura e o mundo têm passado nestes últimos 40 anos, em especial suas interfaces com os diversos suportes, meios de comunicação e linguagens de expressão artística e cultural, configuravam um excitante panorama para se discutir o lugar da ficção, da poesia, da crônica e do ensaio neste início de século. Diante desse quadro todo, tudo seria possível. Inclusive o sucesso ou o insucesso de uma coluna de literatura semanal, num veículo de comunicação on-line em pleno Espírito Santo.

Mas a coluna durou esse tempo todo, com um assunto novo a cada semana. E um número crescente de leitores que, aliás, foi o que mais me espantou nessa história toda. Afinal, o que eu fazia era apenas redigir, sentadinho em frente ao computador, no meu quarto, algumas opiniões (nem tão politicamente corretas assim) acerca de minha experiência tríplice de leitor (a vida inteira), escritor iniciante (muito embora meu primeiro e único livro tenha sido publicado há sete anos) e produtor cultural na área de literatura (em especial, os dois anos e meio da minha vida que passei num órgão público). E nisso já vai quase um ano.

Nesse meio tempo, escrevi muita coisa em primeira pessoa. Afinal, minha função aqui era emitir opiniões, considerações, divagações diversas. Mas quase nunca falei de minha relação com a escrita. Talvez até porque minha produção literária nem seja tão grande assim, e nem seja minha produção artística mais conhecida, uma vez que eu tenha trazido a público, nos últimos anos, muito mais trabalhos audiovisuais que literários. Daí as pessoas jurarem de pé juntos que meu negócio mesmo é o cinema, não a literatura. Como se eu fosse um “cineasta” (que medo dessa palavra!) que vez por outra escreve poesia e prosa. Mas eu prefiro dizer que sou um escritor que vez por outra escreva com a câmera.

E isso meio que se justifica pelo fato de que os quatro filmes e vídeos que até agora eu dirigi ou co-dirigi (todos lançados a partir de 2000, ou seja, posteriores ao meu primeiro livro de poemas) também foram trabalhos que eu escrevi ou co-escrevi (como no caso de Saudosa, um filme dividido meio-a-meio com Fabrício Coradello, e uma das mais prazerosas experiências criativas que já tive). Daí que eu possa me arriscar a falar no desenvolvimento de uma escrita ficcional autoral a partir desses curtas. Aliás, me arrisco mais: eles foram, de certa forma, as molas propulsoras para que eu hoje em dia produza muito mais prosa de ficção do que poesia. A cada filme realizado, mais eu pegava gosto por esse negócio de “contar histórias”, ou melhor, de buscar formas diferentes de “contar histórias”.

O grande barato de escrever pra cinema é justamente o desafio de se criar um texto indicativo, um ponto de partida. Escrever um roteiro, a princípio, não é exatamente “fazer literatura”. Pelo menos não numa concepção mais “tradicional” de literatura. Porque num texto literário, por mais que se possam abrir possibilidades interpretativas para o leitor, o que conta é o trabalho do autor com a linguagem escrita, um desbastar e afiar de arestas entre palavras e frases, um jogar com a língua (e trapaceá-la sempre que possível), uma produção de escritura. Num roteiro, o que está escrito nunca é o resultado definitivo do filme, mas sim um conjunto de linhas mestras que supostamente nortearão a realização desse filme, e que serão discutidas, recriadas e concretizadas a partir de uma série de óticas conjugadas, envolvendo a direção, a produção, fotografia, som, arte, montagem, elenco. O filme, produto final da empreitada cinematográfica, configura-se como um conjunto de recortes espaciais e temporais de uma situação proposta no roteiro. Este, como texto-guia a ser modificado, não se destina ao espectador, mas sim à equipe, às comissões de aprovações de projetos, aos patrocinadores que bancarão os custos.

Através da literatura, cheguei ao cinema (e através dele, retornei à literatura, desta vez escrevendo em prosa). É que o papel e a tinta não eram o suporte definitivo para algumas de minhas estórias (principalmente aquelas em que eu destilava aquela ironia agridoce acerca do cotidiano suburbano que avisto desde moleque da janela do meu quarto), que pediam insistentemente para serem contadas por meio de imagens em movimento. Através do cinema, adquiri o gosto por criar pequenas narrativas em que eu poderia dosar sua duração não mais através da escolha dessa ou daquela palavra ou frase, mas através de enquadramentos e cortes, numa tentativa de conter o tempo entre os dedos, impresso em tiras de celulóide.

A literatura, acredito, é um trabalho solitário, silencioso, cuja nobreza reside em duelar o tempo inteiro com as palavras, num processo de tomada de posição do escritor frente a seu universo. O roteiro cinematográfico permite uma construção conjunta, o que para um escritor-diretor é sempre um desafio a mais. Afinal, você escreve algo para ser interpretado por outros atores, traduzido em enquadramentos, movimentos de câmera, luzes, objetos de cena, cores e construções temporais e sonoras por outros técnicos e artistas, por mais que você, como diretor, dê a palavra final. Essa foi a primeira grande lição que aprendi quando co-dirigi, ao lado do Lizandro Nunes e da Virgínia Jorge, Macabéia (lançado em 2000), minha primeira experiência cinematográfica (ironicamente, um exercício intertextual a partir da personagem clariceana).

E foi daí que surgiu outro dos grandes baratos de se escrever um roteiro, para mim: aceitar o seu caráter de texto provisório. As possibilidades decorrentes ao se escutar uma frase dentro das pausas, ritmos e respirações do personagem são tremendamente excitantes. Na boca do ator, reconstroem-se falas inteiras, percebe-se que aquela expressão que fora escrita e reescrita diversas vezes durante a confecção do roteiro não se adequa no dialeto do personagem, e é hora de mergulhar no instigante processo de encontrar (conjuntamente) a palavra exata que soe natural na fala do ator. Foi aí que eu percebi que a prosa de ficção em muito podia se aproximar do ritmo da fala cotidiana. Digamos que, depois desse filme, eu comecei a me interessar muito mais em escrever contos do que poemas, embora ainda não tivesse certeza do porquê dessa escolha, já que, para mim, essa ficha só viria a cair muito tempo depois.

E quando o imaginário do autor intersecciona-se ao do ator? Lembro-me que, durante os ensaios de Pour Elise (meu segundo curta, lançado em 2004), havia uma fala da personagem vivida por Glecy Coutinho na qual ela recordava sua juventude, sentada num banco de praça, descrevendo os artifícios utilizados nos flertes e paqueras entre rapazes e moças numa cidade de interior em 1953. A locação seria a praça central de Santa Teresa, que pouco mudara nesse meio século. Ora, Glecy tinha exatamente a idade de sua personagem no início dos anos 50, época em que viveu justamente em Santa Teresa. A partir dessa coincidência, ela começou a descrever exatamente a visão que poderia se avistar daquele mesmo banco, meio século antes: o cinema, que ficava ao lado da cadeia municipal, os filmes com Libertad Lamar, em especial Algo flutua sobre água, que levava toda a platéia às lágrimas... Imediatamente, a fala que eu havia escrito para sua personagem foi totalmente descartada e substituída pela descrição (muito mais rica) que Glecy havia me fornecido. Muitas das falas e ações de sua personagem foram reescritas a partir dessa passagem e de outras idéias que foram surgindo durante os ensaios, enriquecendo em muito a personagem. Pour Elise também foi um momento em que pude finalmente incluir, na minha produção audiovisual, a metalinguagem, uma das três coisas (junto com a ironia e a intertextualidade) que são, para mim, as verdadeiras matrizes da criação artística e que, de alguma forma, já se assumiam na minha produção literária.

Mas faltava ainda alguma coisa para que o cinema me satisfizesse da mesma forma que a literatura sempre conseguira. Num debate realizado no Centro Cultural Up, em meados do ano passado, eu declarei que achava que tinha “muito mais liberdade de não ser linear no papel do que com a câmera contando histórias”. Exatamente porque ainda não tinha encontrado uma forma adequada para experimentar essa “liberdade” dentro do universo de “tudo planejadinho, tal qual o roteiro manda”, até então tão presente na minha produção cinematográfica, e que facilmente eu conseguia burlar quando imerso na criação literária.

O passo seguinte, conseqüentemente, foi assumir o improviso como mola propulsora da criação audiovisual. Em Saudosa (2005), pessoas que nunca tinham atuado antes foram convidadas a inventar depoimentos inteiros sobre personagens que jamais existiram. Se em Pour Elise eu tinha pensado em embaralhar (ainda que de forma um tanto desajeitada, hoje reconheço) as fronteiras entre a memória dos personagens e a memória (e o imaginário) dos atores, no tom farsesco de Saudosa a intenção (minha e do Fabrício) era a de tentar eliminar o máximo possível a fronteira entre realidade e ficção, construindo assim um pseudo-documentário quase naïf. E viva à farsa, esse verdadeiro manancial de ironia. Aliás, o Reinaldo Santos Neves é quem não se cansa de repetir que a ironia é a matéria prima da literatura (e, por extensão, de qualquer produção artística digna de nota). E eu assino embaixo. Tanto que, após o Saudosa, eu resolvi assumir que a ironia iria correr sem rédeas em qualquer trabalho audiovisual ou literário que eu viesse a produzir dali por diante.

Semana passada, estreou meu quarto curta, Grinalda, um exercício de improvisação que segue essa linha de confundir realidade e ficção, baseado quase que exclusivamente no depoimento da personagem vivida por Letícia Braga diante das câmeras, como se fosse um testemunhal sensacionalista daqueles anônimos que expõem suas intimidades e frustrações em programas como o da Márcia Goldschmidt ou do Ratinho, extremamente conscientes do potencial explosivo de seus monólogos. Nesse trabalho, realizado e finalizado em vídeo, consegui reduzir a equipe técnica a uma pessoa apenas: eu mesmo. Com isso, pude tentar sentir um pouquinho o que seria fazer da câmera uma espécie de caneta, duelando e provocando a atriz o tempo todo.

A hora da edição, mais do que nos trabalhos anteriores, aproximou-se à condição da reescrita de um texto literário: desbastando os excessos, reordenando as zonas de intensidade no decorrer da narrativa. Confesso que foi uma experiência fabulosa, e fico imaginando como será pegar o papel e a caneta e escrever literatura depois disso tudo. Já adianto que, depois da experiência com Saudosa, há exatamente um ano, eu comecei a escrever alguns contos em primeira pessoa, justamente pelo fato deles poderem “enganar” o leitor com seu tom confessional, fazendo com que ele ponha em questão o caráter ficcional do que é narrado: afinal, toda narrativa em primeira pessoa possibilita ao leitor cogitar se há algo de autobiográfico no texto, e é claro que sempre há um pouco disso numa obra literária (atire a primeira pedra o escritor que discordar disso radicalmente...).

Digamos que esta é a primeira vez em que ponho no papel uma reflexão sobre minha opção dupla de escritor e curta-metragista (palavra que me deixa muito mais confortável do que o sisudo epíteto de “cineasta”), pensando nas semelhanças e diferenças entre as duas experiências. A culpa é da data comemorativa, caros leitores. E eu fiquei parecendo aqueles convidados da festa que, de tão bêbados, acabam alugando os convidados, exaustos da noitada, para contarem os pormenores da sua intimidade. Tudo bem, escrever me inebria tanto, e falar sobre o processo criativo ainda acentua o meu estado delirante, que eu me empolgo assim mesmo só pra lembrar que a festa, meus amigos, nunca termina. Melhor assim, não?


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