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29.4.06

Onze livros a redescobrir (parte 2 de 3)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 05.04.2006)

Mais quatro títulos injustamente esquecidos no rol dos "fora-do-cânone". Desta vez, três "obras menores" (não pra mim) de autores maiores, e um romance semi-esquecido de um poeta célebre.

Pilatos
Quase todo mundo prefere o livro que marcou o retorno do Cony à literatura, depois de 23 anos de silêncio, o autobiográfico Quase memória. E eu tenho que concordar com o Cony: qualquer um escreveria um Quase memória, mas só ele poderia escrever algo como Pilatos, aliás, seu livro predileto. Publicado em 1973, foi concebido para ser um ponto final na obra do autor (tanto que ele ficou esse tempo todo sem escrever ou publicar) e é uma história bastante perturbadora. É a história de um homem sem nome que teve o pau (não, a palavra "pênis" não condiz com o livro, vou usar "pau" mesmo) decepado num acidente e, ao decidir que a vida só valeria a pena se pudesse carregá-lo, ainda que murcho, ao seu lado (num vidro de compota com iodo e álcool). Tem passagens cômicas, mas a gente ri é de nervoso, afinal, é uma grande metáfora sobre a vulnerabilidade humana que faz do humor apenas um atalho para mergulharmos na tristeza e amargor desse universo, recheado de personagens fellinianos (como o mendigo Sic Transit, ou a equipe de cinema que aluga o vidro de compota para usá-lo como divindade num filme bicho-grilo). Entre mendigos, o protagonista assume-se como um nada, e o livro faz o leitor também se sentir tão castrado quanto o personagem frente a cada situação. Podemos até questionar a importância do Cony como escritor, dizer que sua produção 60/70 está datada, ou que a tão festejada série de livros pós-1997 aos poucos foi se reduzindo à previsibilidade do fardão da ABL e às crônicas para Ana Maria Braga, mas não podemos deixar de lado essa obra que, nas palavras do autor, estava, naquele momento, dando uma banana "à política e à literatura". Anti-engajado e antiliterário, o livro continua atemporal e, melhor de tudo, libertador.

Água viva
Clarice é talvez o nome mais cultuado na literatura brasileira. A frase "Eu amo Clarice Lispector" é proferida por gente de todo tipo, e eu já perdi a conta de amigos e conhecidos que têm a obra completa da autora em suas estantes, reluzentes como verdadeiros objetos de culto. A palavra "epifania" acabou virando clichê literário por conta desse culto desesperado que fez da escritora uma espécie de rainha das citações: blogueiros, psicanalistas, teóricos literários, artistas, deleuzianos em geral, discípulos de Suely Rolnik, devotos da perplexidade, gente que quer escrever sobre qualquer assunto de forma "poética" e insuportavelmente adjetivada dana a citar Clarice como se fosse a cura para todo mal. Água viva, com seu monólogo caleidoscópico em tom de confidência, virou uma espécie de bíblia para toda e qualquer citação "epifânica". A aura de culto é reforçada por um marketing do tipo "Cazuza leu esse livro 111 vezes" ou pelos depoimentos de leitores que dizem não conseguir largar "esse livro que mexe comigo", que empacam na leitura de um parágrafo, retornam páginas anteriores para sentir melhor o texto, perdem noites de sono tentando entender Clarice. Se, algum dia você encontrar um exemplar à venda no sebo (digo "se" porque esse tipo de livro quem compra só se desfaz depois de morto, se não pedir pra ser enterrado junto com o exemplar), repare bem: as margens estarão repletas de anotações, divagações, e o texto estará quase que totalmente sublinhado. Exatamente por esses motivos todos, Água viva merece ser redescoberto. Para deixar esse duvidoso status de "devoção religiosa talibã" e ocupar seu merecido lugar como um dos mais instigantes livros já escritos nesse país, sem as costumeiras histerias de fãs. Clarice não merece ser lida porque é quase uma divindade inatingível, inefável, inatacável. Ela merece ser lida porque é uma escritora de primeira grandeza, como Machado de Assis, Mário de Andrade e Guimarães Rosa foram. E já é muita coisa um país de apenas 500 anos de idade ter produzido quatro prosadores de primeira grandeza, não acham? E, pelamordedeus, vamos para de ficar arrotando por aí que o principal personagem dos livros de Clarice "é a linguagem". Pra mim isso não é elogio algum, soa muito mais como um grilhão pra tornar toda boa literatura uma escrava dos artigos de linguagem enfeitada e conteúdo zero.

Fundador
Nélida Piñon é um caso à parte na nossa literatura. Talvez eu arrisque a incluí-la junto aos quatro grandes que acabei de citar. Afinal, ela já ganhou quase todos os prêmios literários possíveis dentro e fora do país (incluindo o Juan Rulfo e o Príncipe de Astúrias, e não duvido se um dia ela levar um Nobel também), sem contar o alto grau de pesquisa de linguagem em todos os seus livros. Alguém decidiu que a obra-mor da autora é a República dos sonhos, de 1985. Nada contra o livro, que realmente é fascinante, mas a questão é que pouco se comenta sobre seus outros livros, muitos de igual grandeza. Fundador, publicado em 1969 (e ganhador do Walmap, na época o mais importante prêmio literário do país), navega pelo mítico, pelo heróico, pelo fantástico para construir um mundo mágico, fabuloso e sagrado, que poderia ser aproximado à própria América. Pode não ser nem um pouco realista, totalmente imaginado, mas raramente encontramos personagens tão profundos e instigantes como a Monja e o Fundador.

Ninho de cobras
Vou usar as palavras de Stuart Evans, do The Times, citado por Antônio Olinto, para descrever esse livro: "Uma raposa se perde no centro de Maceió, cidade principal de Alagoas, no Nordeste do Brasil. O animal é visto, reconhecido, confundido com um cachorro, desconsiderado por muita gente até que é morto violentamente a pauladas. Torna-se, assim, a raposa, o elo deste romance bravio, soberbamente bem construído em que as vidas, preocupações, obsessões de um professor presunçoso, uma prostituta, uma bondosa freira de hospital e um anônimo escritor de cartas venenosas (que permanece sem identificação) obliqua e sutilmente se ligam ao suicídio de um Alexandre Viana, cidadão comum, razoavelmente bem respeitado."
Confesso que não entendo porque esse livro de Lêdo Ivo, encontra-se fora de catálogo (reza a lenda que foi reeditado em 2001, mas não vi nem sombra dessa edição por aí). O autor fez 80 anos em 2004, mas só destacaram sua poesia, e quase não se menciona esse romance (de 1973, mesmo ano de Pilatos e Água viva), a não ser em duvidosos estudos teóricos que disfarçam, sob a égide redentora da exegese, as manifestações dos egos agigantados de ensaístas que juram que escrever complicado e enfeitado é interpretar uma obra literária/artística. O grande lance do livro é que a epopéia da raposa (que não é de Esopo) cresce a cada mudança de foco narrativo, capítulo por capítulo e tira o tapete do leitor tantas vezes seguidas que a gente começa a achar natural cair tantas vezes seguidas sem saber onde fica o fundo. Tinha que cair no vestibular, durante pelo menos uma década inteira, pra fazer parte permanentemente do nosso imaginário popular, como aconteceu com A hora da estrela, Mário de Andrade, Guimarães Rosa.

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