<$BlogRSDURL$>

29.4.06

Da arte de lapidar

Erly Vieira Jr
(Publicado em 08.03.2006)

Esta semana fui perguntado, para uma matéria do Século Diário, sobre quais obras capixabas deveriam figurar num rol de livros que todo mundo deveria ler. Na minha listinha, incluí uma obra não muito conhecida, mas bastante apreciada por seus leitores: trata-se de No escuro, armados, único livro de contos de Marcos Tavares, publicado pela coleção Letras Capixabas em 1987.

Recheados de jogos de palavras, neologismos e palavras portmanteau, os textos de Marcos combinam altas doses de nonsense e ironia, em meio a preciosas frases cuja sonoridade em muito as aproxima a versos de um grande poeta. O jogo já começa a partir da epígrafe de Barthes, que abre o livro: "Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz". Ao terminar a leitura dos contos, ficamos fica imaginando o como seria se o autor resolvesse se aventurar pela poesia, trapaceando barthesianamente a própria língua.

A questão é que Marcos publicou esparsamente alguns poemas durante os anos 80, principalmente nas revistas Letra e Imã. Uma pena que esse material encontrava-se meio que oculto, distante até mesmo dos acervos oficiais (leia-se bibliotecas públicas em geral, e as Coleções Especiais da Biblioteca da Ufes, grande salvação da lavoura em se tratando de literatura produzida no Espírito Santo).

Eu disse "encontrava-se", porque o pretérito é o tempo ideal pra situar esse esquecimento apressado. Sim, porque Marcos Tavares finalmente reuniu essa produção em um livro, a ser lançado nas próximas semanas, pela editora Flor&Cultura: trata-se de GEMAGEM (assim mesmo, em caps lock).

Como bem disse Oscar Gama Filho, na orelha de No escuro..., a linguagem de Marcos Tavares é pra ser lida não só nas entrelinhas, "mas também nas entreletras, nas entrepalavras e nas entrefrases". E essas dimensões são tão bem-estruturadas nos poemas graças a um constante exercício de reescritura. Independente de haver poemas que a olhos afobados soem anacrônicos, como os que exploram o apelo visual flertando com o concretismo (ainda que produzidos nos anos 70), o que salta aos olhos é o conjunto de versos lapidados, cuidadosamente posicionados e imprevistos. Tão sedutores quanto os melhores contos de No escuro, armados, como "Auto retrato", "Praça da Esperança" e "Empregos da língua", entre outros.

Exemplo já clássico é "Gema Gemido", incluído em algumas antologias e publicado originalmente na Revista Letra, e que se inicia em grande estilo:"dia a dia, adiado o tardio parto, perto./ festa a floresta porque flore a manhã."

Se Tavares andava sumido faz tempo dos círculos literários da Grande Vitória (desde que foi trabalhar e residir no eixo Guaçuí-Dores do Rio Preto), pelo menos ele manda notícias de vez em quando. Vale lembrar que um conto dele, "Segundo os Sumérios", foi selecionado pelo Edital de Contos 2004 da Secult (e deve sair do ineditismo rapidinho), e que, devezenquandariamente, o escritor ministra alguma oficina literária na região do Caparão. O único deslize de GEMAGEM é a escassez de textos novos (depois de 84, há apenas três poemas), já que o livro deixa uma curiosidade no leitor de saber o que o autor anda escrevendo nos dias de hoje. (Alô, seu Marcos, estamos esperando um novo livro de contos seu em breve, viu?). Ainda assim, ao reunir o grosso da produção semi-inédita do poeta entre 1976 e 1984, GEMAGEM apresenta um excelente exemplo de como a poesia brasileira um dia teve força ímpar (força essa que a gente vive esperando ressurgir na safra atual, tão entretida em circular pelas FLIPs, antologias de blogueiros e cadernos de cultura "zona sul"...).

Comments: Postar um comentário

This page is powered by Blogger. Isn't yours?