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29.4.06

Contos fantásticos no labirinto de Borges e outras narrativas fantásticas
Erly Vieira Jr
(Publicado em 18.01.06)

Borges ainda hoje me intriga, e muito. Ele tira meu sono, e ironicamente, me dá muito prazer nisso. Seria o autor do livro que eu levaria para uma ilha deserta, para poder sonhar ao final de cada conto. Talvez ele supriria a solidão que a ilha me proporcionaria (por isso mesmo, espero jamais ter que ir para uma ilha deserta, muito menos sozinho).

É curioso perceber que muito da obra de um dos mais importantes autores do século XX fundamenta-se a partir do diálogo com gêneros bastante subestimados e, por isso mesmo, considerados menores dentro dos cânones da literatura mundial: a literatura fantástica e a narrativa policial-detetivesca. Borges trava declaradamente um diálogo permanente entre obras fundamentais da literatura universal (Homero, Cervantes, Shakespeare, Kafka, As Mil e uma noites) e uma extensa lista de autores bem menos cotados, como Chesterton, Quincey, Stevenson, Wells, entre outros. Ou seja: além de produzir textos fundamentais, Borges ainda acaba servindo como uma espécie de porta de entrada para esses autores todos ? e é aí que a gente descobre que o argentino tem razão, que a obra desses caras é fascinante e que quem tá errado é a meia dúzia de Harold Blooms que passa seus dias elegendo e cultivando seus restritíssimos e incompletos cânones literários.

A antologia organizada por Bráulio Tavares, Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, lançada recentemente pela Casa da Palavra, permite ao leitor conhecer um pouco mais do parentesco entre os contos borgeanos e uma série de escritores, muitos inclusive esquecidos pelo tempo ou relegados ao segundo ou terceiro plano da crítica literária ? só para constar, dos dezoito presentes na antologia, apenas Poe e Kafka figuram ao lado de Borges nos tais cânones. Tavares nos apresenta uma série de contos de mistério e fantasia, escritos por autores que, em sua maioria, influenciaram o escritor argentino, alguns inclusive reunidos em antologias organizadas por Borges e seu incansável parceiro Bioy Casares, como Chesterton, León Bloy, May Sinclair, O. Henry e Eillery Queen.

Alguns contos bem que poderiam ter sido escritos pelo próprio Borges, como o obsessivo relato presente em "O abacaxi de ferro", de Eden Phillipots, ou a interminável busca pela mitológica terra de Carcassone, no conto homônimo de Lord Dunsany. O mais borgeano dos contos reunidos, na minha opinião, talvez tenha sido o único que Borges não tenha lido: trata-se de "A livraria", publicado por Nelson Bond em 1941 (e traduzido por José Paulo Paes para o português ainda nos anos 50), contemporâneo dos primeiros contos do argentino e que aborda um tema muito próximo aos de seus textos: uma livraria de livros não-escritos, apenas sonhados e jamais executados por seus autores.

Outros textos serviram de inspiração confessa para textos fundamentais de Borges: nessa antologia, temos a oportunidade de ler um pouco conhecido conto de H. G. Wells, "O ovo de cristal", constantemente citado como a verdadeira fonte de inspiração para os textos "O aleph" e "O Zahir". Também podemos aqui conferir o conto que deu origem a uma lenda urbana de grande popularidade na época da Primeira Guerra Mundial, os Anjos de Mons (aquela estória em que São Jorge mandou seus anjos para defenderem um pequeno contigente inglês do iminente massacre alemão, fazendo os milhares de soldados adversários tombarem um a um com suas flechas invisíveis): trata-se do conto "Os arqueiros", do hoje esquecido Arthur Machen.

Um outro conto assombroso (perdoem-me o trocadilho!) é uma narrativa fantástica escrita pelo Infante D. Juan Manuel há quase 700 anos (e erroneamente atribuída a Borges): "El brujo postergado", que impressiona por sua concepção extremamente ousada de uma temporalidade flexível, coisa que só habitaria o imaginário ocidental pra valer a partir da Relatividade de Einstein.

O livro ainda conta com um excelente ensaio de Tavares em suas páginas finais (afinal, ele revela o desfecho de contos de suspense, daí estar situado apenas ao final da leitura do volume), aproximando os contos reunidos com as temáticas mais constantes no trabalho de Borges, e que nos traz uma bela metáfora: pensar a obra do argentino como uma longa rua, e os textos da antologia como "ruas transversais que se conectam com ela em diferentes pontos". Um livro obrigatório, pra figurar na estante ao lado dos quatro volumes das Obras Completas de Borges.

A Casa da Palavra também relançou este ano outra coletânea organizada por Tavares, desta vez voltada para a literatura fantástica produzida no Brasil: Páginas de Sombra resgata obras quase esquecidas de Orígenes Lessa, do capixaba Adelpho Monjardim, e de Berilo Neves (este, num inspiradíssimo conto sobre uma misteriosa doença que varreria todas as mulheres do mundo, deixando apenas uma sobrevivente e instalando o caos), ao lado de contos bastante conhecidos de Lygia Fagundes Telles, Murilo Rubião e Machado de Assis e autores que se dedicaram a fundo no gênero fantástico, como André Carneiro, Heloisa Seixas e Carlos Emílio Corrêa Lima (sentimos a falta, justamente, do próprio Bráulio Tavares, referência obrigatória no gênero aqui no Brasil).

Mas o texto que mais me chamou a atenção, no meio dessa gente toda, é o que abre o livro: "Flor, telefone, moça", de Carlos Drummond de Andrade, sobre uma jovem que passa a receber telefonemas de uma voz misteriosa, exigindo que ela devolva a flor que roubara de um túmulo. Drummond, com muita ironia, humor e alguma dor, narra uma estória de pura poesia em apenas cinco páginas, e cujo desfecho, fugindo totalmente do gênero fantástico, nos inunda daquele tipo de melancolia boa que faz a gente querer sair por aí assobiando uma canção triste, porém belíssima.

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