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29.4.06

Afinal, pra que serve a tal liberdade de expressão?

Erly Vieira Jr
(Publicado em 15.02.2006)

Semana passada só se falava no "absurdo" que eram as violentas reações mulçumanas às charges publicadas pelos jornais europeus. De uma hora pra outra a silenciosa Dinamarca de trasnsgressores essenciais como Dreyer, Dinensen, Andersen e Lars Von Trier tinha se tornado o mártir da vez. O "absurdo" maior, para alguns, não era terem colocado a cabeça do primeiro-ministro dinamarquês a prêmio. Era o tal concurso que o governo iraniano estava promovendo, aberto a charges que satirizassem o Holocausto.

Sinceramente, eu acho que essa foi talvez a única sugestão dotada de algum lampejo de sanidade, em meio a tanta histeria coletiva: era uma chance genial de se devolver uma "afronta" na mesma moeda, provocando os tabus alheios. Isso vale muito mais do que qualquer violência física: a ironia é uma bela arma pra se enfrentar a hipocrisia. E o que mais se viu durante esses últimos quinze dias na Europa e no Oriente Médio foi um festival de hipocrisia capaz de rivalizar com praticamente todos os escândalos políticos brasileiros desses últimos quarenta anos.

Tudo bem que quem está por trás da proposta é a mais perigosa das raposas. O "novo" governo iraniano já deu provas da capacidade de ser pior que Saddam, Khadafi, os Talibãs, Sharon, Bush e Tony Blair juntos. Mas a proposta não deixa de abrir espaço para um saudável debate sobre o que realmente vem a ser a tão defendida "liberdade de expressão", não só na forma de liberdade de imprensa, mas também como direito individual inalienável.

O Holocausto é talvez o grande calcanhar de Aquiles da cultura ocidental contemporânea. Numa época em que quase nada é tabu, a lembrança de um dos mais monstruosos (e documentados, o que o torna mais monstruoso ainda) massacres da história da humanidade é sempre evocada em nome da paz mundial. Ao mostrar os extremos de crueldade em larga escala dos quais o ser humano é capaz, o extermínio de judeus e outras "minorias" durante a Segunda Guerra trouxe-nos incontáveis lições. A arte vez por outra se inspirou nesse episódio para produzir algumas de suas obras mais pungentes (o War Requiem de Benjamim Britten, uma lista infindável de belíssimos filmes e a emocionante literatura de sobreviventes dos campos de concentração, como Primo Levi são os primeiros exemplos que me vêm à mente), além de caça-níqueis de todo tipo (inclusive aquele filme oscarizado do Spielberg e, indiretamente, o filhote dele atualmente em cartaz nos cinemas).

A questão é que hoje o Holocausto é usado, principalmente por Israel, como uma espécie de escudo pra justificar toda e qualquer atitude, não só de defesa, mas também de ataque (incluindo muitas atitudes tão abusivas quanto as dos adversários árabes), esvaziando assim, o significado de algo que deveria servir como uma grande lição para a humanidade. Em lugar de se reaproveitar a triste herança da tragédia para se demonstrar as formas nas quais a esperança e a união de forças podem superar a dor (e a criação do Estado de Israel no início trazia essa marca), faz-se uso dessa situação para alimentar o rancor entre as partes em constante conflito. Uma bola de neve daquelas.

Daí que eu retorno à contribuição que, involuntariamente, o "diabólico" governo iraniano trouxe ao debate do livre-pensar/livre-expressar: só mesmo permitindo à ironia questionar as contradições do discurso social é que podemos resgatar o significado simbólico da dor e de suas cicatrizes. A partir do momento em que os dois lados são alfinetados, continua e intensamente, mas de uma forma saudável, ou seja, abrindo espaço para discussões diversas, as diferenças podem ser confrontadas e resolvidas, ainda que de forma bastante lenta. E esse aprendizado passa pela nossa capacidade de ouvir o "diferente" e aprender com ele, ainda que nós sejamos os "mocinhos" e eles, os "bandidos".

Esta semana eu revi um exemplo que se aproxima do concurso iraniano: nos anos 60, frente aos embargos que os EUA promoviam à Cuba recém-comunista, o cineasta cubano Santiago Alvarez fez um dos mais emocionantes panfletos da época (tanto que deixou de ser panfleto com o passar do tempo, e hoje é reconhecido como uma obra instigante): trata-se do curta-metragem Now!, colagem de imagens de negros norte-americanos sendo torturados pela lei e ordem, e de protestos pela igualdade racial, ao som da canção de protesto (então banida) de Lena Horne. Corria o ano de 1965 e o racismo era a grande pedra no sapato norte-americano de então. Alvarez expôs de forma bastante criativa as contradições da dita "maior democracia ocidental". Coisa que os artistas de hoje deveriam fazer.

Aí você me pergunta: "Essa não é uma coluna de literatura? Cadê a literatura?" Pois é. Falei de política, falei de cinema, expus colocações difíceis de engolir, enquanto que a literatura responde a tantas questões com um incômodo silêncio. Hoje os grandes escritores mundiais são cada vez mais chapa-branca, calando-se frente a questões básicas. Ok, não daria pra se ter uma resposta artística imediata e ao mesmo tempo relevante para o que vivemos agora, mas isso infelizmente não serve como esperança de que o episódio possa produzir uma forte reflexão daqui por diante, a ser traduzida nos próximos anos em livros realmente relevantes. Provavelmente, os artistas de hoje vão se calar, como sempre fazem. Enquanto que Pasolini, Wilde, Primo Levi, Genet, Sade, Maiakovski e outros grandes mestres da arte de "cutucar feridas abertas" são freqüentemente citados como referência pelos autores badalados, os tais "contemporâneos" continuam em cima do muro (excetuando-se os autores oriundos das "minorias", que se respaldam justamente por aliarem sua crítica social à pesquisa estética). Ou seja, os contemporâneos fazem questão de se perderem no tempo. Uma lástima.

Não estou dizendo que a arte deva ser veículo para panfletos. Só acho que abrir a boca de vez em quando faz bem, principalmente se a voz que se pronuncia é a dos que são lidos por milhares ou milhões. Acho que é para isso que, no fim das contas, serve a liberdade de expressão. Senão, a gente corre o risco de, no caso de se iniciar uma Terceira Guerra, o coitado do primeiro-ministro dinamarquês (cujo assassinato desencadearia toda a minha fantasiosa catástrofe futurista) acabar virando nome de alguma banda pop de inspiração retrô daqui a cinqüenta anos. Igualzinho aconteceu ao arquiduque Francisco Ferdinando.

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