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13.2.07

Os mortos estão de volta

(Publicado em 29.11.06)

Dezoito anos depois de sua primeira edição, Os mortos estão no living, único livro de contos de Miguel Marvilla (mais conhecido por sua excelente produção poética), volta às livrarias, com direito a novo projeto gráfico e indicação ao Vest-Ufes 2007.

Desta vez, os “mortos” ressurgem com direito a uma terceira parte (“Faixa-bônus”), que amplia as discussões apresentadas nas duas seções anteriores, “Os mortos” e “Os outros” (no caso, os que não estão mortos, ou que juram não estar). Mais que falar da morte propriamente dita, o livro trabalha com a temática da finitude: fim de um ciclo, de convenções, de liberdades, de relacionamentos afetivos, de pequenas esperanças. Uma sucessão de pequenas “mortes” metafóricas, mesmo quando tudo aponta para o início de uma nova etapa: “A noiva passa, de carro, como para um enterro”, é a frase inicial do primeiro conto, “Três histórias”, que sintetiza com bastante precisão o espírito dessa obra.

Vale lembrar que o livro foi escrito na década de oitenta, o que, no Brasil, significa a contraposição, frente à euforia da abertura política, de um sentimento de ressaca, agravado pelo acelerado processo de individualização que tanto marcou a década. Miguel chega a falar de um niilismo, que se traduz num reconhecimento de situações intransponíveis, congeladas e sua superação, de forma pouco convencional, quase inesperada.

Este não é um livro de contos convencionais. Aqui, Miguel optou por enveredar por uma espécie de prosa poética com fartos recursos oriundos da poesia (o “esteticismo caudaloso” de que fala Paulo Sodré, no posfácio do volume): metáforas, aliteração, sinestesia, trocadilhos semânticos e sonoros, recursos visuais (num texto, a palavra “estilhaços” literalmente se espatifa pela página; noutro conto, a palavra “carcomidas” é propositalmente “apagada” em algumas partes). Segundo Marvilla, a prioridade é muito mais a construção de uma imagem, a construção do sentido, do que o ato de contar uma história. Quando a gente embarca no clima do texto, é hora da estória se estilhaçar: e qualquer parentesco com a experiência da leitura de poesia aqui é totalmente intencional.

Talvez por isso, alguns textos, apesar de curtos, soem árduos ao leitor desavisado, principalmente se ele está acostumado à poesia precisa (e erudita) dos livros posteriores de Marvilla (Sonetos da despaixão e Dédalo). Principalmente se levarmos em consideração o tom de farsa assumido pelo livro todo. Ou você acha que todos esses diálogos nada naturalistas, toda a afetação na descrição de ambientes e situações seriam outra coisa? Em “O vampiro, Deborah”, uma borboleta “atravessa o set”, revelando toda a encenação, anunciada antes por pequenas pistas: “Parece poesia? É poesia” (o conto foi todo construído a partir de trechos de cartas de amor, o que explica quase tudo). Miguel ainda ressalta a profusão de citações aparentemente pedantes como elementos de não-naturalização narrativa. E viva à ironia!

Curiosamente, os dois textos mais impressionantes do livro, dezoito anos depois da primeira publicação, são menos calcados nessa prosa poética, abrindo espaço para um interessantíssimo desenvolvimento da narrativa: em “Maria, Clara, Lia, Suzana”, cada uma das ex-mulheres é simbolicamente arremessada pela janela, num expurgo de memórias dolorosas que se traduz numa impactante imagem, a chuva de cadáveres que incomoda a vizinhança; já no conto que dá título ao livro, em que uma dona-de-casa percebe que finalmente falecera, ainda que tentasse continuar no desempenho de suas funções cotidianas, o sentimento que se espalha pelo leitor é de um doce estarrecimento. Curiosamente, Miguel me relatou que, numa das várias palestras que ele tem dado sobre o livro nas escolas e cursos pré-vestibulares, por conta da indicação para o Vest-Ufes, um estudante secundarista declarou ter-se perguntado, durante a leitura do texto, em qual momento do conto a personagem teria morrido, chegando à conclusão de que ela teria morrido durante a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, tirada do poema “Comunhão”. Tal colocação surpreendeu o autor, por conta do lirismo presente em tal descoberta. Quando ele me relatou, fiquei bastante surpreso: quase duas décadas depois, os “mortos” (e os “outros”) de Miguel Marvilla ainda fazem muito barulho, e incomodam com sua transbordante poesia.


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