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13.2.07

A devassidão nossa de cada dia

(Publicado em 08.11.06)

Por conta da segunda edição do Poesia e prazer: Sarau de Literatura erótica e pornográfica, que acontece nesta quinta, dia 09 de novembro, a partir das 20 horas na Livraria Huapaya, eu recebi o pacote com os três primeiros volumes da Coleção Devassa. A coleção, numa parceria entre a Azougue Editorial e a cultuadíssima Cervejaria Devassa pretende apresentar ao leitor (ao sugestivo preço de 29 reais e 69 centavos cada volume) um belo apanhado da literatura erótica, e logo de cara traz três títulos bastante curiosos: O deliciosamente libertino Manual de boas maneiras para meninas, de Pierre Louis; as aventuras da porn star Patty Diphusa, de Pedro Almodóvar (desta vez reeditado com quatro histórias inéditas no Brasil); e Eu sou uma lésbica (originalmente publicado como folhetim na revista Status, em 1980), de Cassandra Rios. O caráter saudosista das revistas e livros eróticos baratos vendidos em bancas nas décadas de 70-80 inclusive, é assumido (numa releitura “luxuosa”) no projeto gráfico da coleção: livros em formato “quase de bolso”, com capas ao mesmo tempo modernas e retrô (ilustradas com pin ups num delicioso pastiche da pop art sessentista com algo de Zéfiro), e miolo em papel Reciclato, cuja cor remete ao papel jornal das publicações eróticas de banca, mas com um durabilidade muuuuuuuito maior e sem o clássico risco de oxidação das páginas (após algum tempo) que os leitores de antigamente conheciam muito bem. Sem contar que as traduções são impecáveis, e que inexistem aqui os célebres erros de revisão dos livrinhos de sacanagem de antigamente.

Como o assunto dos livros era basicamente sexo, nem preciso dizer que foram os três lidos de uma tacada só, né? E é curioso perceber as diferentes abordagens do tema presentes nesses volumes, produzidos originalmente em contextos históricos e sócio-culturais tão diversos entre si. Claro que o que mais aproxima os três livros é o objetivo previsto no próprio press release da coleção: explorar as relações entre voyeurismo e imaginação. E é aí que os três volumes assumem sua diversidade, em grande estilo.

Vou começar pelo Manual de boas maneiras para meninas, por sinal, o mais interessante dos três textos. Escrito por Pierre Louÿs (autor de um outro livro que daria origem ao genial filme de Buñuel, Esse obscuro objeto do desejo) durante a Primeira Guerra Mundial (e publicado postumamente), o livro é um divertidíssimo compêndio de etiqueta libertina capaz de corar o leitor contemporâneo. Trata-se de um autor que circulava com grande liberdade pelas rodas literárias parisienses do final do século XIX e início do século passado, respeitado por gente como Éluard, Mallarmé e André Gide, seu amigo pessoal. Ele ainda fundaria, em 1891, a revista La Conque, que publicaria diversos desses autores. E vale lembrar que Claude Debussy compôs alguns temas inspirados em textos de Louÿs, conforme o prefácio à edição brasileira, assinado por seu tradutor, Bernardo Esteves. Ou seja, estamos diante do texto de um autor em perfeita sintonia com o espírito anárquico da nascente modernidade.

A produção assumidamente pervertida de Louÿs foi mantida afastada dos olhos do grande público até sua morte, e ironicamente é a face mais festejada de sua obra até hoje. Muitas passagens do livro lembram o delicioso moralismo às avessas d’A Filosofia na Alcova de Sade, acrescido de altas doses de cinismo: afinal, Louÿs fez o favor de catalogar os principais costumes da aristocracia francesa da Belle Époque e subvertê-los totalmente, emitindo observações altamente sarcásticas acerca da hipocrisia burguesa de uma vida duplamente articulada, casta na aparência e altamente permissiva nos seus subterrâneos.

Os capítulos ensinam as regras de uma “etiqueta sexual” a ser aplicada irrestritamente nos diversos lugares freqüentados pelas “boas” meninas do início do século XX (a sala de aula, o baile, o confessionário, o parque, o museu, os Champs-Elysées, o clube, o hotel, o campo) e com pessoas dos mais diversos níveis hierárquicos (familiares, serviçais, amigos, amigas, amantes, amantes de suas mães, velhos e até mesmo com o Presidente da República). A melhor seção é a última, intitulada “Nunca diga... Diga...”, que ensina uma série de eufemismos pervertidos que dão vontade de reler todos os puros e clássicos livros canônicos, apenas pela pueril diversão de tentar identificar duplos sentidos na fala dos personagens.

Vou mostrar três ou quatro passagens do livro (as mais leves que eu encontrei), só pra dar o gostinho:

“Não suba no pedestal das estátuas atigas para se servir de seus membros viris. Não é permitido tocar nas obras de arte, nem com a mão, nem com o rabo”. (No Museu)

“Em qualquer circunstância, virar as costas a um idoso é uma atitue considerada indelicada. Entretanto, uma menina nua que apresenta a sua bunda a um velho safado não corre o risco de ser repreendida”. (Na cama com um velho)

“Nunca diga: ‘Tenho doze consolos na gaveta’. Diga: ‘Nunca fico entediada sozinha’.” (Nunca diga... Diga...)

“Nunca diga: ‘O pau dele é muito grande para a minha boca’. Diga: ‘Sinto-me pequena quando converso com ele’.” (Nunca diga... Diga...)

Perto do revival libertino proposto por Louÿs, Cassandra Rios parece fichinha. A publicação em livro do folhetim “Eu sou uma lésbica”, contudo, cumpre a função de apresentar ao leitor deste início de século uma das mais controversas autoras brasileiras. Cassandra (pseudônimo de Odete Rios), começou a publicar suas histórias de alto teor homoerótico (feminino) ainda em 1948, aos dezesseis anos. Nas décadas de 60 e 70, ao mesmo tempo que a ditadura militar censurava seus inúmeros livros, ela quebrava recordes de tiragem: em 1970 já havia vendido mais de um milhão de exemplares, número que se ampliava constantemente, graças a uma vendagem anual de 300 mil exemplares (marca que só seria superada nos anos noventa por aquele mago fajuto cujo nome eu me recuso a digitar ou pronunciar). Todo mundo lia Cassandra nos anos de chumbo, das donas de casa aos estudantes, das domésticas aos magistrados, todos degustavam best-sellers como “Tessa, a gata” e “Nicoleta Ninfeta”, ainda que muitas vezes às escondidas (Bethânia era tão fã que, ao estrear o show “Drama”, em 1973, incluiu a escritora na lista de convidados da apresentação de estréia, como relata o diretor do espetáculo, Antônio Bivar, em entrevista ao site “Trópico”).

Rival de Adelaide Carraro, outra best-seller pornográfica dos anos 70 (e que hoje é mais conhecida pela simplória série O Estudante, cujo primeiro volume, aquele que todo mundo leu, tem as célebres “parte azul” e “parte negra”), Cassandra era uma figura controversa. Era perseguida pela direita, que a tachava de imoral e pervertida, e pela esquerda, que a considerava conservadora — realmente, Sou uma lésbica tem muito mais um tom de culpa do que de libertação, e sua narradora em primeira pessoa mais parece aqueles homossexuais dos filmes hollywoodianos dos anos 40-50 que, ao final dos filmes, ou acabavam no hospício ou na cadeia, como assassinos, ou ainda cometiam suicídio). Numa de suas entrevistas, dada em 2001, poucos meses antes de morrer, para a revista TPM, Odete (afinal, ela deixou de ser Cassandra no momento em que encontrou a religião) afirma que Cassandra Rios é conservadora e moralista. E o livro deixa essa impressão.

Cultuada pelos gays e lésbicas da época, e defendida até por Jorge Amado, ela era convidada a aparecer nos programas de TV, tamanha a sua popularidade, ao mesmo tempo em que era presa e humilhada, como nesse depoimento publicado no livro Flores e Cassis:

“Até bofetada de delegado, na cara, levei. O que mais temiam? Já não estava eu proibida? Hoje entendo. Ruminavam que eu precisava ser algemada, amordaçada, enxovalhada de todas as humilhações, desacreditada na minha conduta moral, para denegrirem meu talento e consagrarem suas aleivosas pessoas! Verdade que, na época, assim diziam, só eu vendia! O público consumidor via, só nas páginas dos meus livros, gente com as quais hoje cruzam nas ruas, livres, sem ter que disfarçar e pagar pelo que nasceram.”

Tornou-se célebre uma de suas frases, que resume essa condição de polemista: ''Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada''. O universo da autora em muito encontra-se distante do hedonismo das pornochancadas de Galante, Mossy e Ody Fraga, produzidas na mesma década, e hoje tão deliciosamente cultuadas (por falar nisso, algum de vocês já viu a divertíssima comédia erótica estrelada por Mossy em terras capixabas em pleno 1975, Quando as mulheres querem provas?). Talvez por isso, a publicação de Cassandra na Coleção Devassa tenha mais uma importância em recolocar o nome da autora na ordem do dia das Letras Brasileiras (uma vez que ela, inexplicavelmente, é ignorada pela academia) e, quem sabe, possibilitar a reedição de outras de suas obras outrora badaladíssimas. ignorada pela academia) e, quem sabe, permitir a reediçetras Brasileiras (uma vez que ela, inexplicavelmente, ue ou terminavam

Patty Diphusa, ao lado de Fogo nas entranhas (publicado em 2000 pela Dantes, e atualmente fora de catálogo), é essencial para compreendermos a Movida Madrileña, na qual se originou o autor dos textos, o espanhol Pedro Almodóvar, figura capital na sensibilidade artística mundial nos últimos 25 anos. Afinal, se hoje o cineasta promove um dos mais sólidos conjuntos de obra audiovisual da atualidade, com suas precisas incursões melodramáticas pelo universos das relações familiares, devemos levar em consideração toda uma trajetória que se inicia no final da década de 70, em filmes, quadrinhos, fotonovelas e contos de alto teor subversivo, repletos de erotismo, promiscuidade, drogas e irreverência. E, se os filmes do início de sua carreira hoje oferecem pistas preciosas para o entendimento de suas obras recentes, o mesmo pode se dizer de seus textos mordazes e ácidos.Afinal, suas personagens deste início de século nada mais são que jovens da Movida, lidando com os dilemas éticos e morais da vindoura meia-idade.

Ah, você nunca ouviu falar da Movida? Nem de Alaska (ainda hoje um nome essencial na música pop espanhola), Aviador Dro, Fanny McNamara e tantos outros nomes? Tudo bem, eu entendo que nosso preconceito pequeno-burguês brazuca nos impede de prestar atenção em quase tudo que venha dos países de língua espanhola. Por isso mesmo que Patty Diphusa em muito contribui para apresentar esse universo de excessos e experimentações, essa espécie de Factory espanhola que nem mesmo Andy Warhol, mentor intelectual da Factory original novaiorquina dos 60s, conseguia digerir — e isso, Almodóvar deixa muito claro no ótimo “Prólogo” da coletânea. Esse texto, bem como todos os contos do livro (e filmes como Labirinto de paixões, Pepi Luci y Bom e Que fiz eu para merecer isso?), apresenta um underground cuja efervescência reprocessava ícones culturais não só oriundos do universo Warhol-Paul Morrisey, como os filmes de alta voltagem erótica estrelados por Joe Dalessandro, mas também Divine, Holly Goligthly e a sempre fabulosa Dorothy Parker.

Nas palavras de Pedro, temos aqui uma garota “com tanto desejo de viver que nunca dorme, ingênua, terna e grotesca, invejosa e narcisista, amiga de todo mundo e de todos os prazeres e sempre disposta a ver o melhor lado das coisas. Alguém que, refletindo apenas sobre a superfície das situações, acaba obtendo o melhor delas. Patty foge da solidão e de si mesma e faz isso com muito humor e bom senso”.

Os quatro contos escritos nos anos 90 ampliam a dimensão da personagem, reapresentando-a de forma deliciosamente deslocada na ressaca da utopia de sua geração, abrindo caminho para que Almodóvar explorasse esse universo a partir dos filmes A flor do meu segredo e Carne trêmula, verdadeiros divisores de água de sua obra artística. O diálogo estabelecido entre o envolvimento ardente com um taxista em “Um quilo de mariscos” (de 1984) e a sexualidade do filho desse taxista em “Bi” (1993) é bastante emblemático dessa transição.

A Coleção Devassa apresenta, com esse primeiro lote de lançamentos, um convite irresistível ao mergulho na literatura erótica. Eu, se fosse você, não recusava. Inclusive, aproveite pra aparecer no Sarau de quinta na Huapaya (com direito a poesia, performances e outras coisas mais, numa curadoria de Fabrício Noronha e Raoni Huapaya). O prazer será todo seu e de quem mais quiser, eu tenho certeza.


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