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13.2.07

“Dele é a mão que cria...”

(Publicado em 22.11.06)


A fala clássica do romance A ilha do Dr. Moreau, ensinada pelo cientista a seus ani-homens (“Dele é a mão que cria. Dele é a mão que pune”) ganha novos contornos a partir do romance de Octavio Aragão, que herda de H. G. Wells muito mais que apenas seu título. Ao criar um interessantíssimo romance de ficção científica que assume a intertextualidade e a apropriação de personagens e práticas oriundos tanto das obras clássicas do gênero quanto da realidade tal qual a conhecemos (ou supomos conhecer), o autor apresenta um trabalho que em muito conquistará leitores para o filão nacional do gênero, quase sempre relegado à preconceituosa condição de literatura menor.

Aragão aventura-se num terreno pouco explorado na literatura nacional: a ficção alternativa, aquela que propõe uma nova ordem de acontecimentos históricos, influenciados por desfechos de eventos cruciais ocorridos de forma bem diversa da nossa realidade (como, por exemplo, se os aliados perdessem a guerra), ocasionando profundas transformações em nossa civilização, não só em termos tecnológicos, mas até mesmo no equilíbrio das forças geopolíticas.

Apesar desse gênero ser pouco contemplado pela produção nacional, a efervescência de tópicos em comunidades de Orkut, voltadas à ficção e à história alternativas e à ucronia comprova a existência de um vasto público potencial para esse tipo de literatura. Apenas a título de curiosidade, os “historiadores-especuladores” até dedicaram posts do tipo “Que teria acontecido se Roberto Jefferson não tivesse denunciado o mensalão?” ou “e se os EUA tivessem se aliado ao Irã em lugar do Iraque?” — e um bem-humorado post inclusive ironiza o “futuro” planejado pelos textos de sci-fi dos anos 50-60 para este começo de século, ressaltando que o fato dos tão sonhados “carros voadores” nunca terem se tornado realidade nos poupou de uma série de ataques terroristas suicidas em arranha-céus, no pior estilo “11 de setembro”.

Mas deixemos de lado o Orkut e voltemos à literatura, que é o nosso assunto principal. Octavio demonstra uma grande familiaridade com a prática da ficção alternativa: afinal, ele é o mentor do premiado Projeto Intempol (http://www.intempol.com.br), que começou como site e hoje se desdobra em livros, RPG e HQs envolvendo vários criadores nacionais em torno de um universo de viagens no tempo em que atua uma polícia temporal praticante do melhor “jeitinho” brasileiro.

Contudo, o que menos se vê em A mão que cria é esse “jeitinho”. Estamos aqui diante de um interessante quebra-cabeças, que se desenrola numa realidade paralela em que Júlio Verne (aqui, amigo pessoal de Dom Pedro II) seria eleito o primeiro presidente da França, conduzindo a nação à dianteira da supremacia tecnológica mundial. A geração de uma nova espécie biológica pela Fundação Moreau, mais resistente que a humana, mesclando genes de homem e de golfinho, e a (frágil) aliança entre os “homens-peixe” (embora golfinhos sejam mamíferos, o nome popular da nova “raça” acabou sendo esse, diz o livro) e os humanos para enfrentarem os “desmortos” (e aí o nome George Grecco, uma deliciosa referência ao diretor George Romero, mestre dos filmes de zumbis, me arrancou gargalhadas em pleno 507 lotado) revela uma série de nuances a respeito da ambígua relação entre os três lados do combate. Aqui, tantas são as mãos que criam e as que punem, de modo que esses papéis muitas vezes se confundem, enriquecendo em muito a experiência da leitura.

Só essa trama bem construída e bastante imaginativa já valeria o livro (tá certo que o autor poderia ter explorado melhor alguns elementos, como o primeiro filho de Leonard McKenzie), mas duas outras qualidades merecem ser ressaltadas: em primeiro lugar, as referências a diversos textos e fatos (ficcionais ou reais) que habitam o imaginário cultural ocidental; em seguida, a construção narrativa, muito bem dosada, com os capítulos sendo divididos de maneira precisa, nos pontos cruciais da trama, alternando o foco narrativo em cada segmento, e permitindo ao leitor deliciar-se com a montagem do quebra-cabeças à medida em que cada informação-chave é revelada, em doses muito bem calculadas. Afinal, nesse tipo de literatura, o domínio do suspense é um elemento tão fundamental quanto a construção de atmosferas detalhadas de cada realidade imaginada. De certa forma, é isso que reforça o estilo e o trabalho com a linguagem presentes na escrita de ficção científica (uma literatura na qual os malabarismos sintáticos são menos importantes que a criação de um labirinto narrativo de complexidade suficiente para convencer o leitor). E esse é um dos grandes trunfos do livro de Octavio Aragão. A mão que cria é daqueles livros que a gente termina de ler cada capítulo e retorna ao anterior para perceber que os fragmentos de informações anteriormente apresentados (e completados com as nossas suposições) na verdade apontavam para outros desfechos (e é um jogo bastante interessante esse de tentar supor os desfechos, descobri que a suposição estava errada e partir para outra especulação).

Dá até vontade de conhecer o autor, não dá? E se eu disser que ele atualmente reside aqui em Vitória mesmo, e que é professor do departamento de Design da Ufes? E que vai lançar esse livro no dia 28, na Livraria Huapaya? Não, não estou fazendo minha própria ficção alternativa no final desta coluna. Basta passar por lá e conferir essa rara amostra de ficção científica nacional — aliás, o livro define-se como a primeira aventura brasileira no ramo da ficção alternativa. Espero que esse seja o ato inaugural de mais uma tradição na prosa nacional: afinal, a ficção científica (bem como a literatura fantástica, alvo de uma das minhas primeiras colunas, publicada em 18 de janeiro de 2006) há muito deixou de ser considerada um gênero literário menor. Júlio Verne (depois dessa leitura, estou convencido de que ele teria sido um brilhante presidente da França, diga-se de passagem, hehehehe) que o diga.


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