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13.2.07

Coisas não-ditas, demônios descontentes e beterrabas

(publicado em 01.11.06)

Nas últimas semanas chegaram às minhas mãos três lançamentos publicados pela 7Letras. Dois livros de poesia e um de contos, todos de autores estreantes, com direito a prefácios e orelhas de expoentes da produção literária contemporânea, constituindo, de certa forma, um curioso recorte da safra nacional deste começo de século, que vez por outra dá sinais de vida inteligente e de pontos de vista instigantes (ok, eu disse “vez por outra”, não disse “quase sempre”...).

A fila sem fim dos demônios descontentes, da publicitária Bruna Beber (carioca nascida em 1984), abre com uma epígrafe (na verdade um verso de canção) da cantora cult Regina Spektor (que já gravou até com os “mudernérrimos” The Strokes) que, de certa forma, dá o tom do livro: “And it breaks my ha-ha-ha-ha-heart”. Seguem-se poemas com títulos absurdos como “John Cage”, “Guess Rô Rô” e “Graciliano Beat”. Ou seja, o diálogo direto e sem cerimônias com a cultura pop (afinal, hoje tudo é passível de assimilação pela cultura pop e transformável em comunidade de orkut, até mesmo as experimentações do Oulipo ou o dodecafonismo) assume-se como um modus operandi na construção de cada poema. “John Cage” encerra com duas estrofes fabulosas, que justificam o título de forma inusitada:

Morreremos

Partiremos

Surgiremos

num palco abandonado

para cantar uma música

e sair

Às vezes, temos um lirismo que me traz uma sensação parecida à de ler certas coisas de Ana Cristina César. Não que ela seja uma influência direta (o texto de Bruna caminha por veredas bastante diversas, inclusive, e é bastante original em vários momentos). A comparação com Ana C., antes que me acusem de forçar a barra, vem pelo fato de que Bruna também é uma autora que traduz seu universo particular com um sarcasmo poucas vezes visto na poesia contemporânea brasileira. Ou seja, é de escritoras assim, acertando ou errando (e nem sempre ela acerta, mas quando acerta, é fabulosa!) que nossa literatura “em-cima-do-muro” precisa. Isso me faz concordar com o que o Paulo Scott diz na orelha do livro; “Bruna tem um mundo Nara Leão dentro dela, sabia?” É, tô sabendo agora...

“Vladimir Maiakovski” é um desses textos (em minúsculas, como no livro):

paulo mendes campos

me transformou

numa nuvem de calças

e quando choro

chovo botões de rosa

Ou ainda “Hyde Park”:

desde o dia em que ouvi o barulho

da porta batendo

fiquei anos sem ouvir barulho

de porta batendo

o médico diz é surdez

eu digo é que nunca mais

abri as portas.

O outro livro de poesias é A casa das coisas que não se dizem, de Michel Klejnberg. Trata-se de um volume de conteúdo irregular, mas recheado de pérolas curtas e afiadas, como “Autopsicografia”: “Quanto a mim, sorrio sempre,/ sempre carreguei um sorriso,/ por saber os meus olhos claros e tristes.” O que talvez me incomode um pouco é o excesso de piadinhas. Um poema chamado “Simples”, composto pelos versos “No meio do caminho tinha uma pedra/ que eu chutei.”, seguido de um “Mais simples” (“No meio do caminho não tinha uma pedra.”) pode impressionar numa primeira leitura, mas a piada perde a graça logo depois. Alguns desses chistes muito me agradam, contudo, como este daqui:

“Um poema sobre as infinitas formas de amar”

— Deita

O terceiro livro é o mais interessante dos três. Trata-se da coletânea de contos O doce vermelho das beterrabas, de João Batista Ferreira (nascido em 1959, gaúcho radicado em São Paulo). O prefácio é do saudoso Caio Fernando Abreu (na verdade, é um trecho de uma coletânea de novos autores paulistas que ainda hoje permanece inédita) e a orelha é de Marcelino Freire. Isso poderia servir como desculpa para tentar trazer um verniz de “relevância” pros contos de João Batista, mas nem precisava, porque os textos são, em sua maioria, irretocáveis (Dos dezessete contos, eu talvez tirasse 3 ou 4 para deixar o livro mais coeso e candidatá-lo ao rol dos livros do ano).

O livro inteiro exala um sentimento de perplexidade bittersweet, uma solidão incomensurável, um estado de “perda de si” nos personagens, e é tudo tão intenso que a gente começa a se questionar se estamos diante do livro de um “estreante”. Mesmo quando os contos lembram um pouco Caio Fernando (sim, João Batista “apareceu” numa oficina literária ministrada por Caio no comecinho dos 90), como a epifania da enorme Júlia, com suas mãos pequenas, em “Leveza”, a narrativa é conduzida de maneira bastante comedida, precisa, despreparando o leitor para o choque com o inevitável de cada um.

Eu disse “despreparando”, e isso pode ser tomado como um elogio: João Batista Ferreira consegue, em diversos momentos, tirar a sensação de conforto do leitor, coloca-lo em choque com as arestas da narrativa, e essa experiência é de uma beleza cada vez mais rara na produção contemporânea, muito mais preocupada em reforçar uma (des)filiação a determinada tribo e a falar do mundinho “quarto-e-sala-na-zona-sul” que cansa a todo mundo que não vive num quarto e sala na Zona Sul do Rio.

“Flor” fala da obsessão de uma filha em repetir, a vida inteira, o desenho de uma flor proposto pelo pai na sua tenra infância, copiando-o nos mínimos detalhes. “Aniversário” consegue, logo nas primeiras linhas, fazer transbordar a riqueza do universo de uma secretária executiva quarentona e solteirona. Do conto que dá título ao livro, talvez o melhor de todos (e desde já um clássico), eu nem vou dizer nada, só vou me limitar a repetir o trecho que o Marcelino Freire cita na orelha do livro:

— Carneirinhos?

— É. Contei quase trinta mil.

— E adormeceu?

— Não. Amanheceu.”

Acho que, depois disso, tenho bem pouco a dizer. Vou ficar aqui, no meu cantinho, aguardando os próximos livros desses autores, cujas estréias valem a pena. Enquanto isso, fica a dica para o Natal: dê O doce vermelho das beterrabas de presente. Nem que seja pra você mesmo(a).


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