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13.2.07

O fantástico universo de Bioy Casares

(Publicado em 06.12.06)

Aos poucos, o argentino Adolfo Bioy Casares deixa de ser considerado no Brasil uma nota de rodapé na literatura mundial. Em lugar de lançar mão dos usuais clichês “escritor amigo de Borges” ou “autor de uma obra só” (como se referem a ele os mais apressados, considerando apenas A invenção de Morel como ponto relevante de sua obra), cada vez mais o leitor brasileiro pode ter conhecimento da força do texto literário desse que foi um dos maiores ficcionistas do século XX. A publicação de seus livros pela editora Cosac & Naify, com direito a um projeto gráfico e encadernação de alto nível, em muito contribui para reavivar a importância de Casares.

Desta vez, as prateleiras das nossas livrarias recebem “Histórias fantásticas”, coletânea originalmente publicada em 1972 (e pela primeira vez disponível em tradução para o português), reunindo catorze contos, escritos entre 1944 e 1969. Temas como a suspensão do tempo, a invenção de máquinas que modifiquem a realidade, a materialização do pensamento e o estranhamento frente a banalidade cotidiana dão a tônica desses relatos.

Aqui, podemos perceber com nitidez o que Borges queria dizer ao afirmar que Bioy Casares era um escritor situado acima do debate que opõe os antigos aos modernos, e não somente pelas referências que tanto remetem à cultura antiga (Cartago, pigmeus), à tradição ocidental (principalmente a Europa romântica) e uma certa perplexidade frente à ciência moderna (o conto “Os entusiasmos” dialoga diretamente com o desejo de imortalidade da Invenção de Morel). Em diversos textos, há também um interessante diálogo com uma forma de narrativa ficcional curta anterior ao século XX: a maioria dos relatos inicia-se em primeira pessoa, como se o narrador contasse uma anedota, sempre com uma introdução que contextualiza a origem sócio-cultural desse narrador e sua relação com o episódio ou personagem a ser melhor destrinchado nas páginas seguintes: é sempre uma história introdutória que o fez recordar um antigo e inexplicável episódio, em torno do qual orbitará a narrativa. Só nessa introdução, vão três, quatro páginas — ou mais, como o narrador preparasse o leitor com amenidades, de modo a tentar minimizar o impacto do episódio narrado, quase sempre de natureza sobrenatural ou fantástica. Esse tipo de estrutura é bem comum nos contos longos até o século XIX, e pouco usada pela modernidade da primeira metade do século XX. Contudo, Bioy Casares consegue extrair dela um resultado fascinante: primeiro, ele não minimiza o impacto do relato fantástico (pelo contrário, ele ressalta o estranhamento que ele provoca, recontextualizado na banalidade do cotidiano de seu relatante), potencializando-o; por outro lado, ele consegue a façanha de contar, em muitos momentos, duas estórias em uma, optando por abandonar a primeira numa bifurcação do texto, e optar pelo relato sobrenatural propriamente dito — ainda assim, a primeira trama, interrompida, revela-se, ao final do conto, quase tão perturbador quanto o segundo enredo, de modo que resta ao leitor perguntar-se como continua a primeira estória, quais as implicações que ela traz ao narrador e a seus personagens: um estranhamento digno do melhor da literatura do século XX, atingido aqui por caminhos pouco usuais. Exemplo disso é o conto “A serva alheia”, que trata da redução do corpo humano através de rituais praticados por tribos da África Equatorial (eu, particularmente, terminei o conto querendo saber o que tinha acontecido à pobre Tatá, da primeira parte do relato...). Ou seja, nos textos de Bioy Casares, a linearidade quase que teimosa é apenas aparente, um subterfúgio para desencadear uma pluralidade narrativa que se desdobra no imaginário do leitor.

Outra característica desse volume é o uso do ciúme e da paixão como força motriz para a instalação do fantástico. “Em memória de Paulina”, conto que abre o volume, e talvez o que soe mais familiar ao leitor de A invenção de Morel, em especial pelo tom da narrativa (e pelo desfecho, em que o narrador compartilha conosco de suas hipóteses acerca do ocorrido), trata de uma constatação amarga (a de que a amada nunca realmente amou o protagonista) que só nos é apresentada após uma densa descrição de uma situação de suspensão do fluxo do tempo (e da projeção de fantasmas). Já “Moscas e aranhas” trabalha com uma situação de sonhos provocados no personagem principal, para conduzir a um surpreendente desfecho movido por uma paixão que ao leitor soa como totalmente inesperada, mas que se torna plausível com poucas linhas de texto (aliás, concisão é um dos maiores méritos de Bioy Casares, diga-se de passagem). “O lado da sombra” é uma narrativa obsessiva (no mesmo sentido que “O abacaxi de ferro”, de Eden Phillpots é um relato obsessivo) que mistura real e imaginário dentro das suposições confusas de um homem subitamente atacado pelo ciúme e por uma inesperada ruína.

Em outros momentos, Casares trabalha com uma refinadíssima ironia, para tentar dar conta desse sentimento de perplexidade frente ao que não se pode explicar com argumentos meramente racionais. “O grande serafim” fala de um grupo de hóspedes de uma pousada litorânea que continuam a viver suas pequenas intrigas burguesas e suas miudezas do dia-a-dia, ainda que o fim do mundo faça-se presente com uma série de hecatombes (o mar que aprodece, o chão fica quente, as águas termais brotam cada vez mais com alta concentração de enxofre, notícias estranhas chegam pelo rádio). “A passageira de primeira classe”, conto de 1969, é um relato sobre a impotência (travestida em desdém) de uma decadente aristocracia frente aos passageiros da segunda classe, que em muito se aproxima do embate entre os “velhos” amedrontados e inerciais e os jovens raivosos e violentos do romance “Diário da guerra do porco” (publicado no mesmo ano em que o conto foi escrito).

Mas o mais impressionante dos contos deste volume é o que mais se aproxima dos textos do “amigo de toda vida” Jorge Luis Borges: trata-se de “A trama celeste”, cujo mistério envolvendo mundos paralelos é desvendado aos poucos, com ênfase na reação de seus protagonistas, e posto em questão com o cínico desfecho proposto pelo narrador. Nesse relato, que transpira erudição nas intertextualidades inesperadas com textos de Louis-Auguste Blanqui e Cícero, o tom da narrativa é sempre comedido, sofisticado, reservando uma série de pequenas surpresas quase que a cada parágrafo. O leitor começa a especular acerca da verdadeira chave do enigma, num conto que soa intrigante mais de seis décadas depois de sua publicação original. Instigante, como costumam ser os textos de Bioy Casares — instigante ao ponto de causar-nos uma perplexidade das mais intensas, sem, contudo, desviar a atenção do leitor do desejo inicial de desvendar o relato, de devorá-lo compulsivamente até o final.

Está aí um autor que deu uma grande lição ao século XX: é possível sim, estar atento ao espírito de sua época, fragmentário, multifacetado, sem renegar as formas tradicionais de literatura. Contudo, não é um reacionarismo: trata-se de uma sutil implosão da tradição, de modo a confundir seus estilhaços com os da modernidade de forma tão intrincada que, ao leitor apressado, soará como se, aparentemente, estivesse tudo bem, tudo intacto, de tão bem colados que os cacos estão, muito embora a cola que os une deixe um gosto de estranhamento e desconforto no ar. Isso pra mim, é uma prova de absoluta sintonia com a modernidade.


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