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13.2.07

Máquina de escrever imagens

Erly Vieira Jr

(Publicado em duas partes: 11 e 18.10.2006)

Caros leitores:

Esta é nossa coluna de número 50. Confesso que eu nem imaginava que minha colaboração aqui no Século Diário iria durar tanto tempo assim. Até porque eu pensei que não teria tanto assunto pra sustentar meses seguidos de coluna, principalmente se a gente for considerar que cada vez menos as pessoas lêem literatura, e que cada vez menos se publica literatura (boa ou ruim) neste país. A própria experiência da leitura há muito teve sua função social transformada de forma radical (aliás, historicamente ela sempre sofreu transformações, esta nem de longe seria a primeira ou a mais profunda, ao menos por enquanto). Uma das minhas primeiras colunas versava sobre a quase impossibilidade de se ler um romance de 400 páginas no frenético cotidiano da contemporaneidade, em meio a tantas tecnologias de conexão permanente, tantas informações simultâneas vindas de todos os lados, reduzindo o tempo da leitura ao mínimo necessário para se atravessar um post de blog ou as quinze/vinte linhas de um texto jornalístico on-line. Ao mesmo tempo, as transformações pela qual a literatura e o mundo têm passado nestes últimos 40 anos, em especial suas interfaces com os diversos suportes, meios de comunicação e linguagens de expressão artística e cultural, configuravam um excitante panorama para se discutir o lugar da ficção, da poesia, da crônica e do ensaio neste início de século. Diante desse quadro todo, tudo seria possível. Inclusive o sucesso ou o insucesso de uma coluna de literatura semanal, num veículo de comunicação on-line em pleno Espírito Santo.

Mas a coluna durou esse tempo todo, com um assunto novo a cada semana. E um número crescente de leitores que, aliás, foi o que mais me espantou nessa história toda. Afinal, o que eu fazia era apenas redigir, sentadinho em frente ao computador, no meu quarto, algumas opiniões (nem tão politicamente corretas assim) acerca de minha experiência tríplice de leitor (a vida inteira), escritor iniciante (muito embora meu primeiro e único livro tenha sido publicado há sete anos) e produtor cultural na área de literatura (em especial, os dois anos e meio da minha vida que passei num órgão público). E nisso já vai quase um ano.

Nesse meio tempo, escrevi muita coisa em primeira pessoa. Afinal, minha função aqui era emitir opiniões, considerações, divagações diversas. Mas quase nunca falei de minha relação com a escrita. Talvez até porque minha produção literária nem seja tão grande assim, e nem seja minha produção artística mais conhecida, uma vez que eu tenha trazido a público, nos últimos anos, muito mais trabalhos audiovisuais que literários. Daí as pessoas jurarem de pé juntos que meu negócio mesmo é o cinema, não a literatura. Como se eu fosse um “cineasta” (que medo dessa palavra!) que vez por outra escreve poesia e prosa. Mas eu prefiro dizer que sou um escritor que vez por outra escreva com a câmera.

E isso meio que se justifica pelo fato de que os quatro filmes e vídeos que até agora eu dirigi ou co-dirigi (todos lançados a partir de 2000, ou seja, posteriores ao meu primeiro livro de poemas) também foram trabalhos que eu escrevi ou co-escrevi (como no caso de Saudosa, um filme dividido meio-a-meio com Fabrício Coradello, e uma das mais prazerosas experiências criativas que já tive). Daí que eu possa me arriscar a falar no desenvolvimento de uma escrita ficcional autoral a partir desses curtas. Aliás, me arrisco mais: eles foram, de certa forma, as molas propulsoras para que eu hoje em dia produza muito mais prosa de ficção do que poesia. A cada filme realizado, mais eu pegava gosto por esse negócio de “contar histórias”, ou melhor, de buscar formas diferentes de “contar histórias”.

O grande barato de escrever pra cinema é justamente o desafio de se criar um texto indicativo, um ponto de partida. Escrever um roteiro, a princípio, não é exatamente “fazer literatura”. Pelo menos não numa concepção mais “tradicional” de literatura. Porque num texto literário, por mais que se possam abrir possibilidades interpretativas para o leitor, o que conta é o trabalho do autor com a linguagem escrita, um desbastar e afiar de arestas entre palavras e frases, um jogar com a língua (e trapaceá-la sempre que possível), uma produção de escritura. Num roteiro, o que está escrito nunca é o resultado definitivo do filme, mas sim um conjunto de linhas mestras que supostamente nortearão a realização desse filme, e que serão discutidas, recriadas e concretizadas a partir de uma série de óticas conjugadas, envolvendo a direção, a produção, fotografia, som, arte, montagem, elenco. O filme, produto final da empreitada cinematográfica, configura-se como um conjunto de recortes espaciais e temporais de uma situação proposta no roteiro. Este, como texto-guia a ser modificado, não se destina ao espectador, mas sim à equipe, às comissões de aprovações de projetos, aos patrocinadores que bancarão os custos.

Através da literatura, cheguei ao cinema (e através dele, retornei à literatura, desta vez escrevendo em prosa). É que o papel e a tinta não eram o suporte definitivo para algumas de minhas estórias (principalmente aquelas em que eu destilava aquela ironia agridoce acerca do cotidiano suburbano que avisto desde moleque da janela do meu quarto), que pediam insistentemente para serem contadas por meio de imagens em movimento. Através do cinema, adquiri o gosto por criar pequenas narrativas em que eu poderia dosar sua duração não mais através da escolha dessa ou daquela palavra ou frase, mas através de enquadramentos e cortes, numa tentativa de conter o tempo entre os dedos, impresso em tiras de celulóide.

A literatura, acredito, é um trabalho solitário, silencioso, cuja nobreza reside em duelar o tempo inteiro com as palavras, num processo de tomada de posição do escritor frente a seu universo. O roteiro cinematográfico permite uma construção conjunta, o que para um escritor-diretor é sempre um desafio a mais. Afinal, você escreve algo para ser interpretado por outros atores, traduzido em enquadramentos, movimentos de câmera, luzes, objetos de cena, cores e construções temporais e sonoras por outros técnicos e artistas, por mais que você, como diretor, dê a palavra final. Essa foi a primeira grande lição que aprendi quando co-dirigi, ao lado do Lizandro Nunes e da Virgínia Jorge, Macabéia (lançado em 2000), minha primeira experiência cinematográfica (ironicamente, um exercício intertextual a partir da personagem clariceana).

E foi daí que surgiu outro dos grandes baratos de se escrever um roteiro, para mim: aceitar o seu caráter de texto provisório. As possibilidades decorrentes ao se escutar uma frase dentro das pausas, ritmos e respirações do personagem são tremendamente excitantes. Na boca do ator, reconstroem-se falas inteiras, percebe-se que aquela expressão que fora escrita e reescrita diversas vezes durante a confecção do roteiro não se adequa no dialeto do personagem, e é hora de mergulhar no instigante processo de encontrar (conjuntamente) a palavra exata que soe natural na fala do ator. Foi aí que eu percebi que a prosa de ficção em muito podia se aproximar do ritmo da fala cotidiana. Digamos que, depois desse filme, eu comecei a me interessar muito mais em escrever contos do que poemas, embora ainda não tivesse certeza do porquê dessa escolha, já que, para mim, essa ficha só viria a cair muito tempo depois.

E quando o imaginário do autor intersecciona-se ao do ator? Lembro-me que, durante os ensaios de Pour Elise (meu segundo curta, lançado em 2004), havia uma fala da personagem vivida por Glecy Coutinho na qual ela recordava sua juventude, sentada num banco de praça, descrevendo os artifícios utilizados nos flertes e paqueras entre rapazes e moças numa cidade de interior em 1953. A locação seria a praça central de Santa Teresa, que pouco mudara nesse meio século. Ora, Glecy tinha exatamente a idade de sua personagem no início dos anos 50, época em que viveu justamente em Santa Teresa. A partir dessa coincidência, ela começou a descrever exatamente a visão que poderia se avistar daquele mesmo banco, meio século antes: o cinema, que ficava ao lado da cadeia municipal, os filmes com Libertad Lamar, em especial Algo flutua sobre água, que levava toda a platéia às lágrimas... Imediatamente, a fala que eu havia escrito para sua personagem foi totalmente descartada e substituída pela descrição (muito mais rica) que Glecy havia me fornecido. Muitas das falas e ações de sua personagem foram reescritas a partir dessa passagem e de outras idéias que foram surgindo durante os ensaios, enriquecendo em muito a personagem. Pour Elise também foi um momento em que pude finalmente incluir, na minha produção audiovisual, a metalinguagem, uma das três coisas (junto com a ironia e a intertextualidade) que são, para mim, as verdadeiras matrizes da criação artística e que, de alguma forma, já se assumiam na minha produção literária.

Mas faltava ainda alguma coisa para que o cinema me satisfizesse da mesma forma que a literatura sempre conseguira. Num debate realizado no Centro Cultural Up, em meados do ano passado, eu declarei que achava que tinha “muito mais liberdade de não ser linear no papel do que com a câmera contando histórias”. Exatamente porque ainda não tinha encontrado uma forma adequada para experimentar essa “liberdade” dentro do universo de “tudo planejadinho, tal qual o roteiro manda”, até então tão presente na minha produção cinematográfica, e que facilmente eu conseguia burlar quando imerso na criação literária.

O passo seguinte, conseqüentemente, foi assumir o improviso como mola propulsora da criação audiovisual. Em Saudosa (2005), pessoas que nunca tinham atuado antes foram convidadas a inventar depoimentos inteiros sobre personagens que jamais existiram. Se em Pour Elise eu tinha pensado em embaralhar (ainda que de forma um tanto desajeitada, hoje reconheço) as fronteiras entre a memória dos personagens e a memória (e o imaginário) dos atores, no tom farsesco de Saudosa a intenção (minha e do Fabrício) era a de tentar eliminar o máximo possível a fronteira entre realidade e ficção, construindo assim um pseudo-documentário quase naïf. E viva à farsa, esse verdadeiro manancial de ironia. Aliás, o Reinaldo Santos Neves é quem não se cansa de repetir que a ironia é a matéria prima da literatura (e, por extensão, de qualquer produção artística digna de nota). E eu assino embaixo. Tanto que, após o Saudosa, eu resolvi assumir que a ironia iria correr sem rédeas em qualquer trabalho audiovisual ou literário que eu viesse a produzir dali por diante.

Semana passada, estreou meu quarto curta, Grinalda, um exercício de improvisação que segue essa linha de confundir realidade e ficção, baseado quase que exclusivamente no depoimento da personagem vivida por Letícia Braga diante das câmeras, como se fosse um testemunhal sensacionalista daqueles anônimos que expõem suas intimidades e frustrações em programas como o da Márcia Goldschmidt ou do Ratinho, extremamente conscientes do potencial explosivo de seus monólogos. Nesse trabalho, realizado e finalizado em vídeo, consegui reduzir a equipe técnica a uma pessoa apenas: eu mesmo. Com isso, pude tentar sentir um pouquinho o que seria fazer da câmera uma espécie de caneta, duelando e provocando a atriz o tempo todo.

A hora da edição, mais do que nos trabalhos anteriores, aproximou-se à condição da reescrita de um texto literário: desbastando os excessos, reordenando as zonas de intensidade no decorrer da narrativa. Confesso que foi uma experiência fabulosa, e fico imaginando como será pegar o papel e a caneta e escrever literatura depois disso tudo. Já adianto que, depois da experiência com Saudosa, há exatamente um ano, eu comecei a escrever alguns contos em primeira pessoa, justamente pelo fato deles poderem “enganar” o leitor com seu tom confessional, fazendo com que ele ponha em questão o caráter ficcional do que é narrado: afinal, toda narrativa em primeira pessoa possibilita ao leitor cogitar se há algo de autobiográfico no texto, e é claro que sempre há um pouco disso numa obra literária (atire a primeira pedra o escritor que discordar disso radicalmente...).

Digamos que esta é a primeira vez em que ponho no papel uma reflexão sobre minha opção dupla de escritor e curta-metragista (palavra que me deixa muito mais confortável do que o sisudo epíteto de “cineasta”), pensando nas semelhanças e diferenças entre as duas experiências. A culpa é da data comemorativa, caros leitores. E eu fiquei parecendo aqueles convidados da festa que, de tão bêbados, acabam alugando os convidados, exaustos da noitada, para contarem os pormenores da sua intimidade. Tudo bem, escrever me inebria tanto, e falar sobre o processo criativo ainda acentua o meu estado delirante, que eu me empolgo assim mesmo só pra lembrar que a festa, meus amigos, nunca termina. Melhor assim, não?


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