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13.2.07

Herança?!

(Publicado em 07.02.2007)

Confesso que tenho os dois pés atrás com esse negócio de artista-novato que é filho de artista-lenda. A primeira coisa que me vem à mente nessas horas é um bando de gente sem talento tentando viver às custas do nome dos pais. A coisa chega ao ponto daquela menina, que é filha da Elis, ter se lançado na carreira artística como uma replicante que almejava ser idêntica à mãe nos mínimos gestos (e no máximo consegue soar risível), e só mesmo à custa de muito marketing multinacional pra conseguir convencer o povão a gastar seus suados trocados num cd — oficial ou genérico, pouco importa, dinheiro jogado fora sempre é dinheiro jogado fora, sejam cinco ou quarenta reais.

Pior ainda é quando rola aquela pretensão de formar um movimento que pretende sacudir o status quo de determinado campo. Os Artistas Reunidos da Trama que o digam: nem mesmo convocando, para suas respectivas bandas de apoio, alguns dos mais seminais instrumentistas da história da música popular, seus discos emplacaram (até o Max de Castro, que havia começado muuuuuuuuuito bem, só fez cair o nível, disco após disco). A filha do Xororó, pelo menos, é mais honesta nesse quesito. Melhor ainda fez a de um outro cantor sertanejo, que, se Deus quiser, muito em breve vai fazer jus à expressão “casou e mudou”, com seu príncipe encantado capixaba.

Se bem que a filha do Ravi Shankar, que nem foi criada pelo pai (separado da mãe há séculos, mas, ainda assim, ele funciona como um poderoso aval para se vender mais de vinte milhões de discos mundo afora), até que tem mantido uma carreira musical simpática, embora não muito inspirada (nada que vá mudar a vida de ninguém, mas pelo menos embala a vidinha no Leblon das novelas do Manoel Carlos).

Claro que nem tudo é assim. Vale lembrar o caso do Veríssimo filho, que morria de medo de escrever, por conta da sombra do Veríssimo pai, e hoje é um dos mais importantes escritores do país. E, já que o assunto desta coluna é literatura, não podemos esquecer o exemplo capixaba do “clã” dos Santos Neves, de onde sempre há garantia de romances da mais alta qualidade. Ok, os exemplos deste parágrafo são exceções, mas pelo menos são exceções que valem muito a pena e até me fazem esquecer de picaretagens como a Maria Rita.

Os Sete Novos, trio formado por dois primos, herdeiros do sangue azul das letras brasileiras (afinal, antes deles, já existem quatro Guimaraens com vaga garantida nos livros de história de nossa literatura) e um “plebeu”, propõe-se, com seus livros de estréia, a sacudir o marasmo da poesia brasileira. Sim, isso soa bastante pretensioso e já me deixaria com os dois pés atrás antes mesmo de folhear os livros. Ainda mais se levarmos em consideração todo o auê em torno dos livro: prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda, orelha assinada pelo José Celso Martinez Corrêa, o trio ser formado por autores egressos dos recitais do Cep 20000... O fato dos “sete” serem apenas três, com idades entre 22 e 27 anos, também colabora para aumentar essa mitologia em torno do grupo. Mas já fico aliviado de saber que o grupo não possui projeto estético definido para “salvar a literatura brasileira”: numa época em que “tudo pode”, todo e qualquer manifesto já soa natimorto. Por conta disso, os Sete Novos (Augusto de Guimaraens Cavalcanti, Domingos Guimaraens e Mariano Marovatto, o “plebeu”) assumem-se como parte de uma geração do “verso pós-utópico” (termo do Haroldo de Campos), cada livro como parte de projetos individuais para se pensar a poesia hoje.

No final das contas, o medo soou infundado: os três livros representam boas estréias literárias, com muito mais acertos do que erros, o que sinaliza a chegada de três autores dos quais ainda ouviremos muito falar. Um livro, em especial, me chamou atenção pela maturidade dos versos, pela sensibilidade extrema e sempre provocativa, qualidade que poucos poetas hoje em dia teimam em cultivar (afinal, a maioria ou cai num formalismo extremo, para disfarçar a falta de assunto, ou exagera na coloquialidade, imitando os clichês da poesia setentista brasileira, constituindo um arremedo pavoroso de nossa tão louvada marginalidade). Estou falando de Poemas para se ler ao meio-dia, de Augusto de Guimaraens Cavalcanti (exatamente o livro com prefácio de Heloísa, orelha do José Celso e escrito pelo mais novo do trio).

Augusto, como disse muito bem Heloísa Buarque em seu prefácio, em lugar de optar entre dois mundos, o da tradição familiar e o da contemporaneidade, “fica tranqüilamente com os dois”. Surrealismo, coloquialidade setentista, ícones da televisão (Sílvio Santos, aqui chamado de “fantasma lindíssimo andando pelas madrugadas dos anos 90”, e o sorriso do William Bonner são assuntos que rendem dois ótimos poemas), Pound, Bob Dylan... todas essas referências coexistem no texto do poeta, que as utiliza como pano de fundo em versos surpreendentes como o do poema “Tatuagem”: “Afogado no vício de pensar estrela e escrever escuro”.

Augusto constrói imagens poderosas, com uma naturalidade que chega a incomodar deliciosamente: “Tirei a pilha do relógio e cravei meu castelo de areia no ar”, diz o último verso de “Ritual”. Ou ainda o jogo entre os dois versos que compõem o pequeno grande poema “Multidão”: Livre para descobrir que a noite é um lago,/ Televisão para assistir estrelas”.

Outros textos transbordam ironia e senso de humor. “Coração”, também composto por dois versos, diz: “É expressamente proibido o rompimento do lacre,/ bem como a abertura do equipamento”. Já em “Alarme”, nos deparamos com as perguntas; “Seu despertador é um choque elétrico?/ Você acorda todo queimado?”

Curiosamente, uma das diversas colagens visuais que ilustram o livro (feitas pelo próprio poeta, bem como a capa) leva como título “Controle remoto organiza a harmonia do mundo”.

Para encerrar, eu destacaria ainda o texto que dá título ao livro, verdadeira ars poetica do fazer literário nesse início de século:

POEMAS PARA SE LER AO MEIO-DIA

(Augusto de Guimaraens Cavalcanti)

Pega a poeira das estrelas e guarda,

remenda, junta e forma outra estrela possível.

(o meio-dia possui estrelas que até a noite desconhece).


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