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13.2.07

Herança?!

(Publicado em 07.02.2007)

Confesso que tenho os dois pés atrás com esse negócio de artista-novato que é filho de artista-lenda. A primeira coisa que me vem à mente nessas horas é um bando de gente sem talento tentando viver às custas do nome dos pais. A coisa chega ao ponto daquela menina, que é filha da Elis, ter se lançado na carreira artística como uma replicante que almejava ser idêntica à mãe nos mínimos gestos (e no máximo consegue soar risível), e só mesmo à custa de muito marketing multinacional pra conseguir convencer o povão a gastar seus suados trocados num cd — oficial ou genérico, pouco importa, dinheiro jogado fora sempre é dinheiro jogado fora, sejam cinco ou quarenta reais.

Pior ainda é quando rola aquela pretensão de formar um movimento que pretende sacudir o status quo de determinado campo. Os Artistas Reunidos da Trama que o digam: nem mesmo convocando, para suas respectivas bandas de apoio, alguns dos mais seminais instrumentistas da história da música popular, seus discos emplacaram (até o Max de Castro, que havia começado muuuuuuuuuito bem, só fez cair o nível, disco após disco). A filha do Xororó, pelo menos, é mais honesta nesse quesito. Melhor ainda fez a de um outro cantor sertanejo, que, se Deus quiser, muito em breve vai fazer jus à expressão “casou e mudou”, com seu príncipe encantado capixaba.

Se bem que a filha do Ravi Shankar, que nem foi criada pelo pai (separado da mãe há séculos, mas, ainda assim, ele funciona como um poderoso aval para se vender mais de vinte milhões de discos mundo afora), até que tem mantido uma carreira musical simpática, embora não muito inspirada (nada que vá mudar a vida de ninguém, mas pelo menos embala a vidinha no Leblon das novelas do Manoel Carlos).

Claro que nem tudo é assim. Vale lembrar o caso do Veríssimo filho, que morria de medo de escrever, por conta da sombra do Veríssimo pai, e hoje é um dos mais importantes escritores do país. E, já que o assunto desta coluna é literatura, não podemos esquecer o exemplo capixaba do “clã” dos Santos Neves, de onde sempre há garantia de romances da mais alta qualidade. Ok, os exemplos deste parágrafo são exceções, mas pelo menos são exceções que valem muito a pena e até me fazem esquecer de picaretagens como a Maria Rita.

Os Sete Novos, trio formado por dois primos, herdeiros do sangue azul das letras brasileiras (afinal, antes deles, já existem quatro Guimaraens com vaga garantida nos livros de história de nossa literatura) e um “plebeu”, propõe-se, com seus livros de estréia, a sacudir o marasmo da poesia brasileira. Sim, isso soa bastante pretensioso e já me deixaria com os dois pés atrás antes mesmo de folhear os livros. Ainda mais se levarmos em consideração todo o auê em torno dos livro: prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda, orelha assinada pelo José Celso Martinez Corrêa, o trio ser formado por autores egressos dos recitais do Cep 20000... O fato dos “sete” serem apenas três, com idades entre 22 e 27 anos, também colabora para aumentar essa mitologia em torno do grupo. Mas já fico aliviado de saber que o grupo não possui projeto estético definido para “salvar a literatura brasileira”: numa época em que “tudo pode”, todo e qualquer manifesto já soa natimorto. Por conta disso, os Sete Novos (Augusto de Guimaraens Cavalcanti, Domingos Guimaraens e Mariano Marovatto, o “plebeu”) assumem-se como parte de uma geração do “verso pós-utópico” (termo do Haroldo de Campos), cada livro como parte de projetos individuais para se pensar a poesia hoje.

No final das contas, o medo soou infundado: os três livros representam boas estréias literárias, com muito mais acertos do que erros, o que sinaliza a chegada de três autores dos quais ainda ouviremos muito falar. Um livro, em especial, me chamou atenção pela maturidade dos versos, pela sensibilidade extrema e sempre provocativa, qualidade que poucos poetas hoje em dia teimam em cultivar (afinal, a maioria ou cai num formalismo extremo, para disfarçar a falta de assunto, ou exagera na coloquialidade, imitando os clichês da poesia setentista brasileira, constituindo um arremedo pavoroso de nossa tão louvada marginalidade). Estou falando de Poemas para se ler ao meio-dia, de Augusto de Guimaraens Cavalcanti (exatamente o livro com prefácio de Heloísa, orelha do José Celso e escrito pelo mais novo do trio).

Augusto, como disse muito bem Heloísa Buarque em seu prefácio, em lugar de optar entre dois mundos, o da tradição familiar e o da contemporaneidade, “fica tranqüilamente com os dois”. Surrealismo, coloquialidade setentista, ícones da televisão (Sílvio Santos, aqui chamado de “fantasma lindíssimo andando pelas madrugadas dos anos 90”, e o sorriso do William Bonner são assuntos que rendem dois ótimos poemas), Pound, Bob Dylan... todas essas referências coexistem no texto do poeta, que as utiliza como pano de fundo em versos surpreendentes como o do poema “Tatuagem”: “Afogado no vício de pensar estrela e escrever escuro”.

Augusto constrói imagens poderosas, com uma naturalidade que chega a incomodar deliciosamente: “Tirei a pilha do relógio e cravei meu castelo de areia no ar”, diz o último verso de “Ritual”. Ou ainda o jogo entre os dois versos que compõem o pequeno grande poema “Multidão”: Livre para descobrir que a noite é um lago,/ Televisão para assistir estrelas”.

Outros textos transbordam ironia e senso de humor. “Coração”, também composto por dois versos, diz: “É expressamente proibido o rompimento do lacre,/ bem como a abertura do equipamento”. Já em “Alarme”, nos deparamos com as perguntas; “Seu despertador é um choque elétrico?/ Você acorda todo queimado?”

Curiosamente, uma das diversas colagens visuais que ilustram o livro (feitas pelo próprio poeta, bem como a capa) leva como título “Controle remoto organiza a harmonia do mundo”.

Para encerrar, eu destacaria ainda o texto que dá título ao livro, verdadeira ars poetica do fazer literário nesse início de século:

POEMAS PARA SE LER AO MEIO-DIA

(Augusto de Guimaraens Cavalcanti)

Pega a poeira das estrelas e guarda,

remenda, junta e forma outra estrela possível.

(o meio-dia possui estrelas que até a noite desconhece).


Passando o bastão adiante

(Publicado em 14.02.07)

Caros leitores,

Nem sei como começar, sempre fui péssimo em despedidas, até porque eu nem encaro desta vez como se fosse uma despedida. Prefiro dizer, aliás, que é uma mudança (totalmente voluntária) de rumos. É que, depois de sessenta e uma colunas (quer dizer, cinqüenta e sete, afinal eu coloquei um poema e três contos inéditos no meio disso tudo), acho que eu esgotei um pouco o que eu tinha a dizer sobre esse vastíssimo assunto que é a literatura.

As duas ou três coisas que eu acredito que saiba sobre ela, pelo visto, funcionaram bem mais do que eu esperava. Fiquei até bastante assustado quando percebi que este espaço era lido — e bastante lido. Pude constatar isso durante o II Seminário sobre o autor capixaba, ocasião em que encontrei muita gente interessante que me parava pelos corredores do IC2 para dizer que acompanhava, semanal ou esporadicamente, a coluna. Cheguei a ficar todo bobo quando um texto que eu escrevi aqui, com algumas impressões rápidas sobre Kitty aos 22, do Reinaldo Santos Neves, foi convidado pelo professor Wilberth Salgueiro para fazer parte de uma mesa-redonda sobre o livro. E quando eu recebi um e-mail dizendo que a Deny Gomes não só havia citado a coluna em sua fala durante o Seminário, mas que também era assídua leitora deste espaço, eu fiquei profundamente emocionado, embora um pouco preocupado com a responsabilidade de ser lido por gente tão importante como a Deny.

Durante pouco mais de um ano, vocês leitores puderam acompanhar uma série de discussões sobre o estatuto da literatura na “tão falada contemporaneidade”, desde a reconfiguração da atividade da leitura no corre-corre cotidiano até o exercício da escrita proporcionado pelos blogs e sites literários, ou ainda as comemorações pelos 400 anos do Dom Quixote. Pudemos acompanhar o lançamento de alguns títulos importantes no cenário capixaba, e resgatar alguns nomes (locais ou nacionais) que urgentemente precisam ser reeditados para as novas gerações de leitores. Vez por outra eu ainda encontrava espaço para falar de algum autor ou livro do meu rol de prediletos, quase sempre nomes não tão badalados (Boris Vian, Bioy Casares, Dino Buzatti, Juan Rulfo...), mas de importância incontestável na formação literária de muita gente boa por aí. Sobrava até tempo para fazer uma breve perseguiçãozinha à dublê de escritora Bruna Surfistinha (alguém ainda se lembra dela? Ah, esses hypes...) e aos escritores novos “badaladinhos” que insistem em copiar descaradamente Bukowski e todos os beatniks, como se isso fosse a última moda em Paris...

Poder compartilhar todos esses pontos de vista com vocês realmente me proporcionou um enorme prazer. Mas agora eu acho que devo passar o bastão a outra pessoa. Para trazer outros pontos de vista, e até mesmo discordar de tudo que eu escrevi antes, mas sempre colocando lenha na fogueira quando o assunto é literatura. Afinal, que graça teria se todo mundo pensasse igual?

A partir da semana que vem, quem assume a coluna de literatura é o escritor Carlos Calenti Trindade, dono de um texto sempre instigante. Duas semanas atrás, uma pequena amostra foi publicada neste espaço, enquanto eu estava de férias. Eu até então só conhecia alguns de seus textos ficcionais, muito bons por sinal, mas fiquei bastante empolgado com o artigo sobre o Vonnegut. Confesso que mal posso esperar para ler os artigos seguintes.

E aí vocês me perguntam: e você, Erly, vai para onde? Oras, eu continuo aqui. Só mudo o dia e o assunto. Toda terça-feira, vocês poderão conferir algumas impressões apressadas sobre outra de minhas grandes paixões: as artes visuais (artes plásticas, vídeo, performance e afins). A minha idéia é discutir um pouco sobre a produção local nessas áreas, a partir de textos dedicados a uma obra ou ao conjunto de trabalhos de um determinado artista. Digamos que é uma espécie de diário de bordo, rememorando alguns episódios que marcaram o circuito das artes visuais capixabas nos últimos oito ou dez anos, e acompanhando os próximos desdobramentos.

Como eu não sou artista plástico, o meu enfoque será baseado na minha experiência como espectador. Ok, um espectador privilegiado, porque eu pretendo trazer, em cada texto, o resultado de um questionamento junto ao artista sobre a experiência estética que essa obra proporciona. Sempre que possível, haverá uma entrevista ou um bate-papo com o autor, referente às obras sobre as quais escreverei. Espero que o resultado seja interessante. Afinal, eu lancei o desafio, o editor topou e agora eu vou ter que me virar para cumprir a expectativa. Pelo menos, vai ser um mergulho interessante nesse universo.

Pra quem quiser reler os textos publicados durante o tempo em que eu tomei conta deste pitoresco recanto, vale lembrar que o arquivo está publicado no blog http://estarsendotersido.blogspot.com. Tá tudinho lá, com direito a uma licença Creative Commons, que permite copiar à vontade, para uso não-comercial, desde que não se altere o conteúdo dos textos. Porque eu sou e sempre serei favorável a toda e qualquer flexibilização de direitos autorais. Copyleft, pra sempre.

Bom, é isso. Eu queria ter contado alguma longa estória que encantasse a todos, talvez seria uma forma interessante de encerrar esse capítulo da nossa pequena epopéia, mas como eu não sou Sherazade, eu prefiro recomendar a todos que continuem a ler, e ler muito, toda literatura boa que passar pelas mãos de vocês. Porque livro bom é aquele que causa aquele incômodo que a gente sabe muito bem o que é, aquela “pulga atrás da orelha” que nos transforma todo por dentro e que faz da gente pessoas cada vez mais interessadas e interessantes. Nada melhor que ouvir (e, vez por outra, contar) estórias, né?

É isso aí!


O fantástico universo de Bioy Casares

(Publicado em 06.12.06)

Aos poucos, o argentino Adolfo Bioy Casares deixa de ser considerado no Brasil uma nota de rodapé na literatura mundial. Em lugar de lançar mão dos usuais clichês “escritor amigo de Borges” ou “autor de uma obra só” (como se referem a ele os mais apressados, considerando apenas A invenção de Morel como ponto relevante de sua obra), cada vez mais o leitor brasileiro pode ter conhecimento da força do texto literário desse que foi um dos maiores ficcionistas do século XX. A publicação de seus livros pela editora Cosac & Naify, com direito a um projeto gráfico e encadernação de alto nível, em muito contribui para reavivar a importância de Casares.

Desta vez, as prateleiras das nossas livrarias recebem “Histórias fantásticas”, coletânea originalmente publicada em 1972 (e pela primeira vez disponível em tradução para o português), reunindo catorze contos, escritos entre 1944 e 1969. Temas como a suspensão do tempo, a invenção de máquinas que modifiquem a realidade, a materialização do pensamento e o estranhamento frente a banalidade cotidiana dão a tônica desses relatos.

Aqui, podemos perceber com nitidez o que Borges queria dizer ao afirmar que Bioy Casares era um escritor situado acima do debate que opõe os antigos aos modernos, e não somente pelas referências que tanto remetem à cultura antiga (Cartago, pigmeus), à tradição ocidental (principalmente a Europa romântica) e uma certa perplexidade frente à ciência moderna (o conto “Os entusiasmos” dialoga diretamente com o desejo de imortalidade da Invenção de Morel). Em diversos textos, há também um interessante diálogo com uma forma de narrativa ficcional curta anterior ao século XX: a maioria dos relatos inicia-se em primeira pessoa, como se o narrador contasse uma anedota, sempre com uma introdução que contextualiza a origem sócio-cultural desse narrador e sua relação com o episódio ou personagem a ser melhor destrinchado nas páginas seguintes: é sempre uma história introdutória que o fez recordar um antigo e inexplicável episódio, em torno do qual orbitará a narrativa. Só nessa introdução, vão três, quatro páginas — ou mais, como o narrador preparasse o leitor com amenidades, de modo a tentar minimizar o impacto do episódio narrado, quase sempre de natureza sobrenatural ou fantástica. Esse tipo de estrutura é bem comum nos contos longos até o século XIX, e pouco usada pela modernidade da primeira metade do século XX. Contudo, Bioy Casares consegue extrair dela um resultado fascinante: primeiro, ele não minimiza o impacto do relato fantástico (pelo contrário, ele ressalta o estranhamento que ele provoca, recontextualizado na banalidade do cotidiano de seu relatante), potencializando-o; por outro lado, ele consegue a façanha de contar, em muitos momentos, duas estórias em uma, optando por abandonar a primeira numa bifurcação do texto, e optar pelo relato sobrenatural propriamente dito — ainda assim, a primeira trama, interrompida, revela-se, ao final do conto, quase tão perturbador quanto o segundo enredo, de modo que resta ao leitor perguntar-se como continua a primeira estória, quais as implicações que ela traz ao narrador e a seus personagens: um estranhamento digno do melhor da literatura do século XX, atingido aqui por caminhos pouco usuais. Exemplo disso é o conto “A serva alheia”, que trata da redução do corpo humano através de rituais praticados por tribos da África Equatorial (eu, particularmente, terminei o conto querendo saber o que tinha acontecido à pobre Tatá, da primeira parte do relato...). Ou seja, nos textos de Bioy Casares, a linearidade quase que teimosa é apenas aparente, um subterfúgio para desencadear uma pluralidade narrativa que se desdobra no imaginário do leitor.

Outra característica desse volume é o uso do ciúme e da paixão como força motriz para a instalação do fantástico. “Em memória de Paulina”, conto que abre o volume, e talvez o que soe mais familiar ao leitor de A invenção de Morel, em especial pelo tom da narrativa (e pelo desfecho, em que o narrador compartilha conosco de suas hipóteses acerca do ocorrido), trata de uma constatação amarga (a de que a amada nunca realmente amou o protagonista) que só nos é apresentada após uma densa descrição de uma situação de suspensão do fluxo do tempo (e da projeção de fantasmas). Já “Moscas e aranhas” trabalha com uma situação de sonhos provocados no personagem principal, para conduzir a um surpreendente desfecho movido por uma paixão que ao leitor soa como totalmente inesperada, mas que se torna plausível com poucas linhas de texto (aliás, concisão é um dos maiores méritos de Bioy Casares, diga-se de passagem). “O lado da sombra” é uma narrativa obsessiva (no mesmo sentido que “O abacaxi de ferro”, de Eden Phillpots é um relato obsessivo) que mistura real e imaginário dentro das suposições confusas de um homem subitamente atacado pelo ciúme e por uma inesperada ruína.

Em outros momentos, Casares trabalha com uma refinadíssima ironia, para tentar dar conta desse sentimento de perplexidade frente ao que não se pode explicar com argumentos meramente racionais. “O grande serafim” fala de um grupo de hóspedes de uma pousada litorânea que continuam a viver suas pequenas intrigas burguesas e suas miudezas do dia-a-dia, ainda que o fim do mundo faça-se presente com uma série de hecatombes (o mar que aprodece, o chão fica quente, as águas termais brotam cada vez mais com alta concentração de enxofre, notícias estranhas chegam pelo rádio). “A passageira de primeira classe”, conto de 1969, é um relato sobre a impotência (travestida em desdém) de uma decadente aristocracia frente aos passageiros da segunda classe, que em muito se aproxima do embate entre os “velhos” amedrontados e inerciais e os jovens raivosos e violentos do romance “Diário da guerra do porco” (publicado no mesmo ano em que o conto foi escrito).

Mas o mais impressionante dos contos deste volume é o que mais se aproxima dos textos do “amigo de toda vida” Jorge Luis Borges: trata-se de “A trama celeste”, cujo mistério envolvendo mundos paralelos é desvendado aos poucos, com ênfase na reação de seus protagonistas, e posto em questão com o cínico desfecho proposto pelo narrador. Nesse relato, que transpira erudição nas intertextualidades inesperadas com textos de Louis-Auguste Blanqui e Cícero, o tom da narrativa é sempre comedido, sofisticado, reservando uma série de pequenas surpresas quase que a cada parágrafo. O leitor começa a especular acerca da verdadeira chave do enigma, num conto que soa intrigante mais de seis décadas depois de sua publicação original. Instigante, como costumam ser os textos de Bioy Casares — instigante ao ponto de causar-nos uma perplexidade das mais intensas, sem, contudo, desviar a atenção do leitor do desejo inicial de desvendar o relato, de devorá-lo compulsivamente até o final.

Está aí um autor que deu uma grande lição ao século XX: é possível sim, estar atento ao espírito de sua época, fragmentário, multifacetado, sem renegar as formas tradicionais de literatura. Contudo, não é um reacionarismo: trata-se de uma sutil implosão da tradição, de modo a confundir seus estilhaços com os da modernidade de forma tão intrincada que, ao leitor apressado, soará como se, aparentemente, estivesse tudo bem, tudo intacto, de tão bem colados que os cacos estão, muito embora a cola que os une deixe um gosto de estranhamento e desconforto no ar. Isso pra mim, é uma prova de absoluta sintonia com a modernidade.


Os mortos estão de volta

(Publicado em 29.11.06)

Dezoito anos depois de sua primeira edição, Os mortos estão no living, único livro de contos de Miguel Marvilla (mais conhecido por sua excelente produção poética), volta às livrarias, com direito a novo projeto gráfico e indicação ao Vest-Ufes 2007.

Desta vez, os “mortos” ressurgem com direito a uma terceira parte (“Faixa-bônus”), que amplia as discussões apresentadas nas duas seções anteriores, “Os mortos” e “Os outros” (no caso, os que não estão mortos, ou que juram não estar). Mais que falar da morte propriamente dita, o livro trabalha com a temática da finitude: fim de um ciclo, de convenções, de liberdades, de relacionamentos afetivos, de pequenas esperanças. Uma sucessão de pequenas “mortes” metafóricas, mesmo quando tudo aponta para o início de uma nova etapa: “A noiva passa, de carro, como para um enterro”, é a frase inicial do primeiro conto, “Três histórias”, que sintetiza com bastante precisão o espírito dessa obra.

Vale lembrar que o livro foi escrito na década de oitenta, o que, no Brasil, significa a contraposição, frente à euforia da abertura política, de um sentimento de ressaca, agravado pelo acelerado processo de individualização que tanto marcou a década. Miguel chega a falar de um niilismo, que se traduz num reconhecimento de situações intransponíveis, congeladas e sua superação, de forma pouco convencional, quase inesperada.

Este não é um livro de contos convencionais. Aqui, Miguel optou por enveredar por uma espécie de prosa poética com fartos recursos oriundos da poesia (o “esteticismo caudaloso” de que fala Paulo Sodré, no posfácio do volume): metáforas, aliteração, sinestesia, trocadilhos semânticos e sonoros, recursos visuais (num texto, a palavra “estilhaços” literalmente se espatifa pela página; noutro conto, a palavra “carcomidas” é propositalmente “apagada” em algumas partes). Segundo Marvilla, a prioridade é muito mais a construção de uma imagem, a construção do sentido, do que o ato de contar uma história. Quando a gente embarca no clima do texto, é hora da estória se estilhaçar: e qualquer parentesco com a experiência da leitura de poesia aqui é totalmente intencional.

Talvez por isso, alguns textos, apesar de curtos, soem árduos ao leitor desavisado, principalmente se ele está acostumado à poesia precisa (e erudita) dos livros posteriores de Marvilla (Sonetos da despaixão e Dédalo). Principalmente se levarmos em consideração o tom de farsa assumido pelo livro todo. Ou você acha que todos esses diálogos nada naturalistas, toda a afetação na descrição de ambientes e situações seriam outra coisa? Em “O vampiro, Deborah”, uma borboleta “atravessa o set”, revelando toda a encenação, anunciada antes por pequenas pistas: “Parece poesia? É poesia” (o conto foi todo construído a partir de trechos de cartas de amor, o que explica quase tudo). Miguel ainda ressalta a profusão de citações aparentemente pedantes como elementos de não-naturalização narrativa. E viva à ironia!

Curiosamente, os dois textos mais impressionantes do livro, dezoito anos depois da primeira publicação, são menos calcados nessa prosa poética, abrindo espaço para um interessantíssimo desenvolvimento da narrativa: em “Maria, Clara, Lia, Suzana”, cada uma das ex-mulheres é simbolicamente arremessada pela janela, num expurgo de memórias dolorosas que se traduz numa impactante imagem, a chuva de cadáveres que incomoda a vizinhança; já no conto que dá título ao livro, em que uma dona-de-casa percebe que finalmente falecera, ainda que tentasse continuar no desempenho de suas funções cotidianas, o sentimento que se espalha pelo leitor é de um doce estarrecimento. Curiosamente, Miguel me relatou que, numa das várias palestras que ele tem dado sobre o livro nas escolas e cursos pré-vestibulares, por conta da indicação para o Vest-Ufes, um estudante secundarista declarou ter-se perguntado, durante a leitura do texto, em qual momento do conto a personagem teria morrido, chegando à conclusão de que ela teria morrido durante a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, tirada do poema “Comunhão”. Tal colocação surpreendeu o autor, por conta do lirismo presente em tal descoberta. Quando ele me relatou, fiquei bastante surpreso: quase duas décadas depois, os “mortos” (e os “outros”) de Miguel Marvilla ainda fazem muito barulho, e incomodam com sua transbordante poesia.


“Dele é a mão que cria...”

(Publicado em 22.11.06)


A fala clássica do romance A ilha do Dr. Moreau, ensinada pelo cientista a seus ani-homens (“Dele é a mão que cria. Dele é a mão que pune”) ganha novos contornos a partir do romance de Octavio Aragão, que herda de H. G. Wells muito mais que apenas seu título. Ao criar um interessantíssimo romance de ficção científica que assume a intertextualidade e a apropriação de personagens e práticas oriundos tanto das obras clássicas do gênero quanto da realidade tal qual a conhecemos (ou supomos conhecer), o autor apresenta um trabalho que em muito conquistará leitores para o filão nacional do gênero, quase sempre relegado à preconceituosa condição de literatura menor.

Aragão aventura-se num terreno pouco explorado na literatura nacional: a ficção alternativa, aquela que propõe uma nova ordem de acontecimentos históricos, influenciados por desfechos de eventos cruciais ocorridos de forma bem diversa da nossa realidade (como, por exemplo, se os aliados perdessem a guerra), ocasionando profundas transformações em nossa civilização, não só em termos tecnológicos, mas até mesmo no equilíbrio das forças geopolíticas.

Apesar desse gênero ser pouco contemplado pela produção nacional, a efervescência de tópicos em comunidades de Orkut, voltadas à ficção e à história alternativas e à ucronia comprova a existência de um vasto público potencial para esse tipo de literatura. Apenas a título de curiosidade, os “historiadores-especuladores” até dedicaram posts do tipo “Que teria acontecido se Roberto Jefferson não tivesse denunciado o mensalão?” ou “e se os EUA tivessem se aliado ao Irã em lugar do Iraque?” — e um bem-humorado post inclusive ironiza o “futuro” planejado pelos textos de sci-fi dos anos 50-60 para este começo de século, ressaltando que o fato dos tão sonhados “carros voadores” nunca terem se tornado realidade nos poupou de uma série de ataques terroristas suicidas em arranha-céus, no pior estilo “11 de setembro”.

Mas deixemos de lado o Orkut e voltemos à literatura, que é o nosso assunto principal. Octavio demonstra uma grande familiaridade com a prática da ficção alternativa: afinal, ele é o mentor do premiado Projeto Intempol (http://www.intempol.com.br), que começou como site e hoje se desdobra em livros, RPG e HQs envolvendo vários criadores nacionais em torno de um universo de viagens no tempo em que atua uma polícia temporal praticante do melhor “jeitinho” brasileiro.

Contudo, o que menos se vê em A mão que cria é esse “jeitinho”. Estamos aqui diante de um interessante quebra-cabeças, que se desenrola numa realidade paralela em que Júlio Verne (aqui, amigo pessoal de Dom Pedro II) seria eleito o primeiro presidente da França, conduzindo a nação à dianteira da supremacia tecnológica mundial. A geração de uma nova espécie biológica pela Fundação Moreau, mais resistente que a humana, mesclando genes de homem e de golfinho, e a (frágil) aliança entre os “homens-peixe” (embora golfinhos sejam mamíferos, o nome popular da nova “raça” acabou sendo esse, diz o livro) e os humanos para enfrentarem os “desmortos” (e aí o nome George Grecco, uma deliciosa referência ao diretor George Romero, mestre dos filmes de zumbis, me arrancou gargalhadas em pleno 507 lotado) revela uma série de nuances a respeito da ambígua relação entre os três lados do combate. Aqui, tantas são as mãos que criam e as que punem, de modo que esses papéis muitas vezes se confundem, enriquecendo em muito a experiência da leitura.

Só essa trama bem construída e bastante imaginativa já valeria o livro (tá certo que o autor poderia ter explorado melhor alguns elementos, como o primeiro filho de Leonard McKenzie), mas duas outras qualidades merecem ser ressaltadas: em primeiro lugar, as referências a diversos textos e fatos (ficcionais ou reais) que habitam o imaginário cultural ocidental; em seguida, a construção narrativa, muito bem dosada, com os capítulos sendo divididos de maneira precisa, nos pontos cruciais da trama, alternando o foco narrativo em cada segmento, e permitindo ao leitor deliciar-se com a montagem do quebra-cabeças à medida em que cada informação-chave é revelada, em doses muito bem calculadas. Afinal, nesse tipo de literatura, o domínio do suspense é um elemento tão fundamental quanto a construção de atmosferas detalhadas de cada realidade imaginada. De certa forma, é isso que reforça o estilo e o trabalho com a linguagem presentes na escrita de ficção científica (uma literatura na qual os malabarismos sintáticos são menos importantes que a criação de um labirinto narrativo de complexidade suficiente para convencer o leitor). E esse é um dos grandes trunfos do livro de Octavio Aragão. A mão que cria é daqueles livros que a gente termina de ler cada capítulo e retorna ao anterior para perceber que os fragmentos de informações anteriormente apresentados (e completados com as nossas suposições) na verdade apontavam para outros desfechos (e é um jogo bastante interessante esse de tentar supor os desfechos, descobri que a suposição estava errada e partir para outra especulação).

Dá até vontade de conhecer o autor, não dá? E se eu disser que ele atualmente reside aqui em Vitória mesmo, e que é professor do departamento de Design da Ufes? E que vai lançar esse livro no dia 28, na Livraria Huapaya? Não, não estou fazendo minha própria ficção alternativa no final desta coluna. Basta passar por lá e conferir essa rara amostra de ficção científica nacional — aliás, o livro define-se como a primeira aventura brasileira no ramo da ficção alternativa. Espero que esse seja o ato inaugural de mais uma tradição na prosa nacional: afinal, a ficção científica (bem como a literatura fantástica, alvo de uma das minhas primeiras colunas, publicada em 18 de janeiro de 2006) há muito deixou de ser considerada um gênero literário menor. Júlio Verne (depois dessa leitura, estou convencido de que ele teria sido um brilhante presidente da França, diga-se de passagem, hehehehe) que o diga.


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