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5.10.06

Cem anos de Beckett
(Publicado em 26.07.06)

Durante o mês de julho, realizou-se no Rio de Janeiro, no luxuosíssimo Centro Cultural Telemar, o Festival Beckett 100 anos, discutindo e reapresentando a obra deste que talvez seja o grande dramaturgo da segunda metade do século XX. Embora o evento fosse concentrado basicamente nas peças teatrais, radiofônicas e televisivas do autor (além de uma mostra de vídeos, que ocorrerá em agosto no CCBB), muito do que foi debatido e apresentado contribui para um amplo panorama das letras e da filosofia na segunda metade do século XX.
No Brasil, Beckett até hoje é conhecido como "o autor de Esperando Godot", o que nem é a ponta do iceberg da complexa e instigante obra que ele construiu até sua morte, em 1987. Outros preferem incluí-lo no rol do "teatro do absurdo" (culpa do clássico livro do Martin Esslin, que aproximava Beckett de gente como Ionesco, Arrabal, Adamov, na pressa de catalogar o irlandês em alguma escola), embora ele no máximo se aproxime desse grupo pelo estranhamento que seu teatro provoca no espectador, muito embora sua proposta seja bastante diversa do "absurdo".
Caríssimos, Beckett é muito mais que isso, muito mais até do que apenas mais um nome na lista dos ganhadores do Nobel (o que ocorreria em 1969). Sua produção inclui romances que se configuram como verdadeiros pesadelos, como Malone morre (disponível por aí em tradução do Leminski), Molloy e O inominável, além de alguns poemas, o roteiro de um filme (Film, curta-metragem silencioso, realizado em 1964 e estrelado por Buster Keaton) e a já citada produção cênica para teatro, rádio e TV.
Os temas de Beckett comumente se aproximam das impossibilidades e impotências do homem em tentar significar num contexto de esvaziamento de sentido próprio de sua época. Relações humanas e temporais encontram-se totalmente fragilizadas em seus personagens, muitas vezes isolados do mundo exterior de alguma forma: seja na cegueira de diversos de seus personagens, em especial o velho Hamm de Fim de partida(recentemente publicada pela Cosac & Naify), seja Malone em seu leito de morte, ou ainda na inútil espera de Pozzo e Lucky em Esperando Godot. A única saída dos personagens é aceitar a condição do "não saber", essa mesma condição que, como apontou brilhantemente o diretor Rubens Rusche numa palestra sobre as peças radiofônicas de Beckett, dentro do festival citado, seria um ponto de partida para cada artista, esse ser que se vê "obrigado a expressar". Segundo Rusche, o "não sei" de Beckett deu-se aos 40 anos, quando ele começou a falar de si mesmo em suas obras cênicas e literárias.
A própria condição de Malone indica esse confronto com o "não-saber": imobilizado, confinado num quarto, deitado numa cama, Malone espera a morte. Tudo que ele pode fazer é observar, descrever e inventariar os objetos a seu redor. A uma certa altura do romance ele tenta narrar uma estória, mas nada se concretiza: nem personagem, trama, tudo que produz ao escrever provoca-lhe uma profunda aversão. Essa empreitada revela-se vã, como tudo que Malone possa fazer nesse momento de angustiada e tediosa espera.
Em seu Film, Beckett decide acompanhar um sujeito que perambula pelas ruas. O homem é visto de costas pela câmera, impossibilitada de conhecer-lhe o rosto antes da última cena. Curiosamente, embora o filme seja dirigido por Alan Schneider, o verdadeiro autor é Samuel Beckett, que já havia delimitado precisamente as condições de execução do curta já no roteiro.
Em sua palestra, Rusche ainda apontou a importância do silêncio em Beckett, não como negação da palavra, mas como instância da qual ela nasce. Daí a importância das pausas nas interpretações dos atores. Encenar Beckett é um exercício de escuta do silêncio, para tentar presenciar o nascimento da palavra, ainda que ela já nasça totalmente desprovida de significação, natimorta, segundo as diretrizes do universo beckettiano. Dessa forma, todos os elementos em Beckett são importantes, e não dá pra sair por aí fazendo adaptações irresponsável, como simplificações de falas e substituições de personagens cruciais por vozes em off pré-gravadas, totalmente descontextualizadas do momento em que o ator constrói seu gesto de embate corporal com a própria palavra, como muita gente vem fazendo por aí.
Aliás, uma das coisas mais interessantes que foram apresentadas no festival foi justamente uma riquíssima leitura dramática de uma peça radiofônica, chamada Cascando, até então inédita no país. Nesse texto, um personagem, o Abridor (Opener) controla, em cada uma das mãos, uma forma de se comunicar, desconexamente, com o universo: de um lado, uma voz ofegante; do outro, a música. Cabe a ele abrir e fechar as mãos, uma de cada vez, ou as duas ao mesmo tempo, como único ofício possível frente ao confronto desses ruídos com o próprio esvaziamento de significação do mundo. Acompanhei (de olhos fechados, já que a peça foi concebida para transmissão em rádio) o sensacional duelo do Abridor (Rubens Ruschie) frente à voz (Ricardo Blat, irretocável, apresentando um texto dificílimo, numa entonação genial) e um aparelho de som que executava uma música (a versão original da peça, em 1963, contava com uma obra do compositor Marcel Mihalovici). Não foi uma experiência fácil de se atravessar, confesso que doeu um bocado. E, por isso mesmo, foi algo lindo de se presenciar.
Para quem quiser conhecer mais das peças para rádio escritas por Beckett, o site Ubu Web (http://www.ubu.com/sound/beckett.html) possui duas performances em MP3: a própria Cascando, e Words and music, escrita em 1962, e considerada um marco na concepção de peças para execução radiofônica. Vasculhando com calma pela internet, dá pra encontrar o Film para download ou streaming.

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