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5.10.06

Metáforas náuticas
(Publicado em 23.08.06)

Em seu ensaio "Metáforas náuticas", Walnice Galvão busca traçar um paralelo entre as alusões ao universo marítimo em "Desenredo" e a própria construção narrativa do conto de Guimarães Rosa. Para isso, ela parte de um breve inventário das imagens do mar na literatura brasileira, a partir de seu registro mais insólito, "porque o mais seco": o sertão.

Esse mapa ligeiro vai da diversidade de recursos utilizada por Euclides de Cunha em Os sertões (anamnese, analogia com paisagens costeiras, comparação dos movimentos grupais com fenômenos marinhos, a expressão "o sertão vai virar mar") à leitura proposta por Graciliano Ramos (de que tais alusões presentes na língua do sertanejo seriam fixações da fala dos navegantes portugueses) e chega ao universo de Rosa, em que o sertão é, em suas diversas acepções, o cenário principal, seja como configuração geográfica, projeção psicológica, ou a partir da oposição ao universo urbano.

Mas é a partir da oposição sertão/oceano, ou melhor, do par seco/úmido que Walnice constrói sua análise, centrando-se no conto "Desenredo", em que o paciente sertanejo Jó Joaquim reinventa o passado equívoco, levando os personagens a acreditarem que nunca houvera um passado de infidelidades, crimes e maus comportamentos em sua relação conjugal.

Walnice destaca uma série de procedimentos adotados por Rosa em "Desenredo", como o uso de neologismos, termos raros, sintagmas ousados e recriações de expressões populares. Ela centra sua análise, contudo no levantamento de uma série de "alusões oceânicas", como nos provérbios "proferidos como comentários do narrador às peripécias da narrativa" (p.123): "voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento" (reelaborado a partir do "de vento e popa"), "todo abismo é navegável a barquinhos de papel" e "a bonança nada tem a ver com a tempestade". A essas alusões, são acrescidas outras referências à umidade ("sutil como uma colher de chá", "afogado de tifo", "o trágico não vem a conta-gotas", "no frágio da barca", "claro como água suja").

Esse acúmulo de "imagens do úmido", ainda segundo Walnice, justifica-se por um elaboradíssimo jogo iniciado pela referência sutil a Ulisses, arquétipo do navegador, e sua conjugação entre sabedoria e loucura, quando do início do processo de desenredo adotado por Jó Joaquim. Esse jogo, que evoca a equiparação entre existência humana e odisséia, evita a metáfora de travessia, tão cara a Grande sertão: veredas, e opera em outras instâncias - seja na fusão do "sedentário" e do "marinheiro" ("aquele que traz as boas novas") operada no narrador, seja na reinvenção do sertanejo, "que narra a honra em outro líquido, o sangue" (p. 127), estereótipo também desenredado nesse conto em que a reinvenção não é apenas do episódio amoroso vivido por Jó Joaquim.

Assim, por sucessivos "desenredos" nos diversos níveis do discurso, Rosa, segundo Walnice, constrói sua fábula, "pondo-a em ata" e apontando para novas possibilidades de significação.

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