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5.10.06

Cadê Teresa?
(Publicado em 20.09.06)

Sobre a escritora Teresa Veiga há informações escassas. Respeitadíssima pela crítica literária portuguesa, Teresa consegue manter-se totalmente avessa à exposição midiática, sem dar entrevistas nem revelar detalhes de sua vida pessoal, numa época em que escritores fazem mais barulho com sua vida pessoal do que com sua obra (neste 2006, os exemplos de J.T. LeRoy e Gunther Grass são os mais visíveis, embora no caso do Gunther a discussão mereça uma coluna inteira, dada sua complexidade). A própria biografia da autora, divulgada pelo site do IPLB (Instituto Português do Livro e das Bibliotecas) dá poucas pistas a respeito da autora, fazendo referências apenas à data de nascimento da autora (1945), às graduações em Direito (1968) e Românicas (1980) e ao exercício da atividade de Conservadora do Registro Civil entre 1975 e 1983. Além disso, sabemos que ela ganhou alguns prêmios literários importantes e publicou os volumes de contos Jacobo e outras histórias (1981), O último amante (1990), História de bela Fria (1992), As enganadas (2003) e o romance A paz doméstica (1999). Desses, As enganadas acaba de ser publicado no Brasil, numa parceria entre a Editora 7Letras e o IPLB.

Melhor assim. Sabendo quase nada sobre a autora, a tarefa de mergulhar na leitura de seu volume de contos recém-publicado é executada com maior liberdade, e cada virada de página propicia uma nova descoberta. O livro reúne três contos longos e bastante densos, todos protagonizados por mulheres que, em dada altura de suas vidas, percebem que foram, de alguma maneira, foram enganadas em alguma de suas crenças fundamentais.

"A morte de um jardineiro" conta a estória da esposa do governador civil, que um belo dia percebe, após a leitura de um livro, que a aparente felicidade de seu casamento era ilusória. Ela tenta manter a normalidade de seu cotidiano, mas a morte do jardineiro que trabalhava em sua residência desencadeia uma série de reações que a fazem assumir a falência matrimonial. Ela decide se retirar para a propriedade de campo do casal, o que provoca no marido a desconfiança vã de que ele o traía com o funcionário - quando na verdade ele reluta em admitir que ele e a esposa eram completamente desconhecidos entre si, apesar de anos de convívio. Teresa escapa das saídas óbvias, conduzindo a narrativa ao redor do vínculo de cumplicidade que se estabelece entre a esposa infeliz e a viúva do jardineiro, numa narrativa que evoca sutilmente o caráter epifânico de uma G.H. lispectoriana (ops, esbarrei no clichê de juntar "epifania" e "Clarice" numa mesma frase, me perdoem...).

"Danças húngaras de Brahms" estrutura-se sobre a desconfiança de uma mãe acerca da orientação sexual de seu único filho, cuja vida íntima é-lhe bastante nebulosa, apesar de residirem na mesma casa. Teresa constrói uma narrativa a partir de uma investigação empreendida pela mãe e por uma amiga, repleta de ansiedade e angústia à medida em que se aproxima a constatação dos fatos. Numa certa altura do conto, empreende-se um longo flashback que remonta à infância da protagonista, revelando-nos os modos masculinos de uma irmã que não lhe envia notícias suas há muitos anos. A narrativa assume-se como delirante, e o leitor é conduzido ao clímax sem perceber os sutis artifícios da autora para estruturar esse denso devaneio.

"Confidência barreirense" é narrado em primeira pessoa. A protagonista também foi, tal qual a autora, Conservadora do Registro Geral. Chegamos a supor, por alguns instantes, que seja uma narrativa baseada em algum episódio real, embora a autora tenha o cuidado de maquiar as datas, situando o episódio quase meio século atrás. Depois da segunda página, pouco importa ao leitor se há ou não verossimilhança com a biografia da autora: o espaço narrativo está tão bem definido que aceitamos embarcar no jogo sem contestar regra alguma. A confidência do episódio revela a ambigüidade moral (mas não ética) da protagonista, e aceitamos ser cúmplices de sua pequena transgressão.

Aliás, aceitamos ser cúmplices dos três episódios, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se também participássemos da oscilação moral a que os personagens estão submetidos quando da revelação dos embustes. O tempo todo a narrativa engana o leitor, que aceita participar do engodo, quem dera se todo engodo fosse assim. E quem dera se toda literatura contemporânea fosse assim. Ao menos estaríamos poupados de nulidades como J. T. LeRoy que, na falta de coisa melhor para escrever, fazem dos factóides de sua biografia matéria-prima de uma narrativa midiática de caráter duvidoso. Teresa Veiga, não. Ela prefere o anonimato, enquanto que seus personagens povoam nossas noites insones e vêm nos visitar a qualquer hora do dia, em qualquer de nossos momentos mais silenciosos. E vêm sem pedir licença, como todo personagem marcante do cotidiano que aflora em nossas lembranças. E o pior é que a gente deixa entrar. Afinal, eles são quase de carne e osso.

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