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5.10.06

Direito autoral vs. "direitos" do leitor

Vou contar uma estorinha pra vocês. Nem a carochinha seria tão criativa.

Queridos leitores, estava um amigo meu dia desses na casa de outro amigo doutorando em Literatura pela UFF, quando ele comenta da dificuldade em encontrar, nos sebos e bibliotecas das universidades cariocas/fluminenses, um exemplar que fosse de um livro essencial para a escrita de sua tese. Para ser elegante e manter o sigilo, digamos apenas que tratava-se do volume dos diários completos de um importantíssimo mas não muito badalado escritor brasileiro cujo romance mais importante, recheado de incesto, adultério, travestismo e relações familiares deterioradas (numa trama capaz de corar o Manoel Carlos) mereceu uma coluna inteira quando falei da produção brasileira nos últimos 50 anos. Estes Diários estão fora de catálogo há 30 anos, diga-se de passagem. O Amigo nº 1 lembrou ao Amigo nº 2 que, muitos anos atrás, quando era estudante, ele havia lido tal livro, e que havia um exemplar disponível na Biblioteca Central da Ufes. Vendo o brilho nos olhos do Amigo nº 2, aquele brilho de "ainda existe uma luz no fim do túnel", o Amigo nº 1 ofereceu-se para cometer a contravenção de fotocopiar passagens do livro e enviar-lhe via sedex.

Então, o Amigo nº 1 conseguiu o exemplar emprestado com uma estudante da Universidade (os nomes dos envolvidos serão mantidos em sigilo pelo bem de todos nós) e dirigiu-se, feliz da vida, a uma copiadora. Optou por fazer as cópias dentro de uma faculdade, uma vez que o preço das fotocópias em qualquer campus da cidade chega a ser metade do que se cobra dos portões pra fora. Foi à faculdade, relativamente próxima à sua residência. A atendente da xerox veio sorridente, mas seu sorriso logo murchou quando o Amigo nº 1 mostrou as passagens que precisava fotocopiar (digamos que era uma parte substancial do livro). Ela disse que não poderia atendê-lo, porque o total ultrapassava em muito o montante que a lei permitia copiar (os tais 10% do número de páginas). Ele tentou insistir, e ela disse que mesmo assim não daria porque com isso ela infringiria ordens superiores e correria o risco de perder o emprego, e apontou uma câmera de vídeo (afinal, era uma universidade privada, obviamente monitorada em cada canto de suas instalações por razões de segurança). Naquele momento, o Amigo nº 1 deu-se conta de algo inimaginável: as câmeras de segurança monitorando panopticamente se os funcionários estavam saindo da linha. Acho que ele ficou mais chocado ainda quando percebeu que tal procedimento era resquício do que o Foucault chamava de "sociedade disciplinar", e que seus anos de estudo eram capazes de fazê-lo jurar que esse negócio de "sociedade disciplinar" era coisa de um passado vitoriano, que vivíamos já há uns 30 anos o que o Deleuze chamava de "sociedade de controle", tal qual está escrito naquele texto curtinho e visionário que todo ser humano deveria ler, o tal Pós-escrito sobre as sociedades de controle.

Ainda embasbacado com a descoberta dupla (de que não poderia tirar fotocópias e de que o seu mundo real estava atrasado em relação à sua filiação teórico-acadêmica), o Amigo nº 1 tirou as cópias permitidas e voltou pra casa para esboçar um plano que não deixasse o Amigo nº 2 na mão.

No dia seguinte, ele foi à copiadora, e tirou mais 10% do livro. Saiu de lá e começou a abordar os estudantes que passavam do lado de fora. Contou todo o seu drama, disse que não poderia esperar dez dias para tirar as cópias que o Amigo nº 2 precisava, porque a tese dele tinha que ser defendida até dezembro, e com isso obteve a solidariedade de alguns. Essas raras almas caridosas entravam na copiadora, com o livro debaixo do braço, e o dinheiro entregue pelo Amigo nº 1 e tiravam mais dez por cento do volume. Em alguns minutos, o livro estava totalmente copiado.

Ah, esqueci de contar outra coisa. O Amigo nº 1 não podia ser flagrado cometendo tal ato em nenhuma de suas etapas, pois seria um crime. Isso incluía a postagem nos correios. Assim sendo, cada alma caridosa que ajudava tirando cópias em seu nome colocava-as num envelope destinado ao Amigo nº 2 e assinava como remetente. Esses envelopes eram entregues ao Amigo nº 1, que levava tudo ao correio e postava. E foi assim que o Amigo nº 2 recebeu o tal Diário Completo que lhe permitiram terminar sua tese sobre o escritor célebre.

Fim da "melódia" (como diziam os "antigos"): A tese do Amigo nº 2 está sendo elogiada pelos professores do doutorado, dizem que lança novas luzes sobre a obra do escritor, e provavelmente vai ser aprovada com recomendação de publicação e não dou dois anos pra virar livro. Exercício de futurologia da minha parte: esse livro vai circular no meio acadêmico, outros pesquisadores vão se interessar novamente pelo escritor estudado, artigos e papers pipocarão em congressos, livros teóricos e revistas da área, os cadernos de cultura voltarão a citar o escritor e a nova geração pós-blog e pós-orkut vai citá-lo como influência-mor, e isso tudo vai fazer que a obra completa do autor seja relançada. Inclusive os tais diários, que o Amigo nº 1 precisou fotocopiar clandestinamente para o Amigo nº 2 iniciar todo esse processo.

Depois me perguntam o porquê de eu ser tão favorável ao copyleft.

Se as editoras pelo menos reeditassem seus catálogos, eu até acreditaria nessa história de direito autoral à moda antiga. Enquanto isso, o pânico se generaliza: recebi uma chamada para publicação de artigos enviada por uma revista de um importantíssimo programa de pós-graduação que pedia aos autores dos artigos que evitassem citações longas demais, para evitar problemas relativos aos direitos autorais. Depois ninguém entende o porquê do Brasil ter um índice tão baixo de produção científica. Até nisso ela é desestimulada.

Aproveito para lembrar aos leitores que TODO o conteúdo desta coluna está licenciado em Creative Commons (existe inclusive um selo especificando os termos da licença que escolhi na margem superior direita do blog em que arquivo o conteúdo da coluna). Através da licença escolhida para este conteúdo, este material pode ser copiado à vontade, republicado à vontade no meio virtual, desde que citando o autor e que seu uso seja não-comercial. Mais informações sobre a licença Creative Commons, neste endereço ou, eventualmente, na coluna do Gabriel Menotti, toda sexta

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