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26.5.06

Certas coisas que o colunista acha que deve dizer

Erly Vieira Jr
(Publicado em 17.05.2006)

Eu disse que só o prefácio de Kitty aos 22: Divertimento, novo romance do Reinaldo Santos Neves (O quê? Você ainda não leu?!?) dava sozinho assunto para uma coluna. Aliás, o livro, em lugar de um mero e burocrático prefácio, tem um texto de abertura, intitulado "Certas coisas que o autor acha que deve dizer", que apresenta uma série de considerações sobre a gênese do romance, e sobre o processo de produção. Além de satisfazer a curiosidade do leitor (que, ao final da leitura, retorna ao texto introdutório para confirmar as expectativas apresentadas nessas páginas iniciais), as tais "Certas coisas..." de Reinaldo são uma aula de como escrever um romance de primeira linha.
Logo de cara, somos informados que um sonho originou uma cena (crucial) do livro. Uma cena em que uma moça faz a descoberta do silêncio. Ora, isso já é motivo para um romance. Mas o sonho, que dava um livro sozinho, aqui só deu uma única cena. Como diz Reinaldo: "Tive de me virar para descobrir o resto da história e poder contá-la. Fiz, parece-me, o que costumam fazer os paleontólogos que reconstituem o esqueleto de um animal a partir de um único osso: reconstituí o romance a partir de uma única cena" (pág.8).
O livro começou a ser escrito em julho, e em outubro já tinha uma primeira versão circulando entre familiares e amigos. O processo de pesquisa é descrito pelo autor nos seguintes termos, ainda na página 8:
"Como procedi? A personagem era e havia que ser jovem; o mundo era e havia que ser o mundo dos jovens de hoje. Então procurei-os onde estavam ao meu alcance: nos blogs disponíveis na Internet. Ali fiz meu trabalho de pesquisa e dali extraí informações sobre a minha personagem e sobre o seu mundo: material suficiente para criar o cenário do romance e imaginar a mentalidade dos personagens e para produzir a linguagem narrativa. Batizei a personagem de Kitty - boa parte dos jovens de hoje usa diminutivos em inglês à guisa de apelidos. Daí, Kitty. A gatinha Hello Kitty, portanto, não é causa, mas conseqüência dessa escolha."
Mas o mais fascinante disso tudo é a construção de uma cidade para a personagem: Mic (ou Mictown ou Mictória) é uma transfiguração ficcional de Vitória, acrescida de elementos que pudessem servir à estória (a universidade católica e a Victoria Fashion Week) e trocando o nome de ruas e logradouros, na vida real batizadas porcamente pelos vereadores, mas no livro poeticamente renomeadas. Mesmo que a cidade seja uma recriação, o que importa é que o ethos da juventude da qual Kitty faz parte está lá. Assim como a Vitória do final dos anos 70 escapa das linhas de As mãos no fogo e ganha vida durante a leitura (ou a Vitória dos 80 em Sueli), a ilha deste começo-de -século está todinha nas páginas do Divertimento, com toda intensidade e urgência, muito mais viva e pulsante do que em muita letra "modernosa" de raggae e rock locais.
Os itens de consumo citados no livro foram "roubados" de uma revista que Reinaldo recebe em casa, e que guarda pros trabalhos escolares do filho de nove anos. Eu lembro de ter ficado assombrado quando ele, naquela salinha do Neples-Ufes, numa tarde dessas, me mostrou os recortes de dentro de um envelope pardo. A bolsa, o sapato, o carro, estava tudo lá, e era difícil de acreditar que aqueles recortes banais de revista forneceram objetos que assumem uma riquíssima dimensão dentro do romance.
Ao final das considerações, Reinaldo nos revela que Phil, o padrasto de Kitty (que, para mim, tem muito cinismo do Kevin Spacey em Beleza Americana, talvez seja só impressão minha) é uma homenagem ao Phillip Marlowe, personagem de Chandler. E confessa que planejava utilizá-lo como narrador do romance, mas que acabou optando por um narrador em terceira pessoa. Eu bem que sentia um tom meio policial na narração, uma leve tintura noir que vai tomando corpo da metade para o final do livro, e as duas linhas finais (pág. 9) desse texto introdutório meio que mataram a minha charada: "(...) mas alguma influência de Phil permaneceu comigo, de modo que sinto que é a ele que devo o tom narrativo do romance". Depois de atravessar novamente essas "Certas coisas...", deu novamente vontade de ler o romance, confesso a vocês.

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