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26.5.06

"A vida muda rápido. A vida muda num instante."

Erly Vieira Jr
(Publicado em 24.05.2006)

"Eu não sei o que esse livro tem. Alguma coisa nele mexe comigo. É como se eu estivesse no lugar da autora, à medida que a leitura avança. A cada dois parágrafos eu tenho que parar a leitura, é como se viesse uma vontade de chorar que nunca se concretizasse, os olhos nublam, ardem um pouco, embaçam, mas nada de surgir uma lágrima. Nem umazinha sequer." Cerca de duas semanas atrás, eu abri o editor de texto do Blogger.com para ensaiar um post no meu blog "secreto". Eu queria falar da experiência de atravessar O ano do pensamento mágico, livro de Joan Didion, recém-lançado. Contudo, achei o post bastante piegas e desisti de postar. Não valia a pena compartilhar tanta água-com-açúcar num único parágrafo, mesmo que fosse com os cinco ou seis (talvez sete) amigos que têm acesso àquela página pessoal.
A questão é que o livro da americana Joan Didion conseguiu a proeza de despertar minha atenção logo que foi lançado. Fiquei curioso quando li, na seção de livros daquela revista mentirosa de circulação nacional (cujo nome tem quatro letras), acerca desse relato de uma escritora acerca da perda do companheiro de quatro décadas e do sofrimento causado pela doença de sua única filha, internada na mesma época. Exatamente isso: Quintana, filha de Joan, estava em coma induzido no hospital, vitimada por um choque séptico, quando, na noite da terça-feira, 30 de dezembro de 2003 (e logo após mais uma difícil visita à filha no hospital), John Gregory Dunne, também escritor e marido de Joan, cai fulminado por um ataque cardíaco, na frente da esposa, em frente à mesa posta para o jantar. E Joan, dez meses após essa tão grande perda, pôs-se a escrever um relato sobre sua dolorosa experiência.
Eu poderia ter todo tipo de desconfiança sobre esse livro: a autora poderia ter caído na simplista armadilha do filão de auto-ajuda, o fato do livro estar vendendo que nem água (chegou a ser o não-ficção mais vendido em São Paulo na semana seguinte ao lançamento) poderia revelar ser tudo um mero caça-níqueis com uma boa dose de marketing, o fato de ter um trecho do livro na capa poderia sugerir que naquelas páginas havia um amontoado caudaloso de frases feitas. Todos esses temores foram ruindo tão logo me deparei com o livro. O tal trecho que está na capa já desarma qualquer um com sua simplicidade: "A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente". Talvez eu seja sentimental demais e não sabia disso, mas a verdade é que uma passagem dessas é dotada de assombrosa sinceridade. O currículo da autora também ajudou (tem um livro dela que foi eleito pela revista Time um dos cem melhores romances dos últimos oitenta anos), e como o livro estava bem baratinho (custa menos de vinte reais, preço raro nos dias de hoje), acabei levando um exemplar pra casa.
A tal "citação" da capa foi a primeira coisa que Joan conseguiu escrever sobre o ocorrido, menos de um mês depois da tragédia. Ela esperou quase um ano para poder continuar a partir desse ponto. Para uma escritora de alta produtividade, foi um longo e necessário período. Nesse meio tempo, ela pesquisou todas as informações que tinha a seu alcance sobre luto e morte, inclusive o livro de etiqueta de Emily Post, publicado em 1922. A pesquisa tinha um objetivo muito maior que a publicação de um livrinho: na verdade, Joan cercava-se dos livros atrás de explicações racionais que afastassem toda sorte de "pensamento mágico", ou seja, de idéias místicas e supersticiosas acerca da "presença" do marido morto a seu lado, ou de esperanças de seu retorno (sentimentos que, para quem sofre a perda de um ente querido, são bastante comuns). E é exatamente esse relato da perda e da tentativa de se seguir em frente que é narrado no livro sem qualquer gotícula de pieguice a respingar no leitor que atravessa suas páginas tão dolorosas.
Exemplo disso está no momento em que Joan teve de enfrentar a situação de se desfazer das roupas do marido: primeiro separou as roupas mais velhas, reservando os casacos e sapatos para um momento posterior. A certa altura, ela constata que estava guardando parte dessas roupas e calçados porque acreditava inconscientemente que John iria precisar "quando voltasse" (mais um "pensamento mágico"), e se convence que tal comportamento pode ser até justificável pela dor da perda mas, ainda assim, é passível de uma urgente e necessária superação. Joan narra tudo isso sem muitas cerimônias, embora vez por outra use de procedimentos romanescos para prender o leitor em seu relato (como o suspense acerca do desenvolvimento da enfermidade da filha, que viria a falecer depois da publicação do livro).
A perplexidade diante da morte inesperada, neste início de século, mais uma vez está na linha de frente da inspiração de parte da produção artística de arte deste início de século. Poderíamos dizer que é parte do espírito de época de nossos dias, vide os dois grandes traumas globais dos últimos anos: o 11 de setembro e o tsunami do Sudeste Asiático, cujos efeitos intercontinentais foram bem mais impactantes do que o estouro da "bolha" Nasdaq na virada do século, só para citar um exemplo. A incapacidade do homem de enfrentar uma finitude não-planejada, num mundo em que a compressão espaço-temporal proporcionada pelas tecnologias digitais aparentemente nos dá uma certa sensação de onipotência, tem sido a inspiração para uma série de trabalhos, e não falo aqui do oportunista disco do Bruce Springsteen sobre a tragédia do WTC nem do filme realizado por onze diretores de diversas nacionalidades, irregular e, em dois terços dos seus episódios, oportunista.
O que marca mesmo essa produção cultural acerca da perda é o fato de que, em qualquer tragédia, morrendo uma pessoa ou cinco mil, o que conta não são as estatísticas, mas o fato de que cada um desses mortos é uma história feliz que termina. O relacionamento de quatro décadas de Joan Didion com seu esposo, por exemplo. Ou a perda dos familiares dos canadenses do Arcade Fire, originando o belíssimo disco Funeral, que se propõe uma celebração do ato de se estar vivo, apesar de tudo. Aliás, não só Funeral, que encabeçou a minha lista pessoal de discos prediletos de 2004, mas também os meus prediletos dos anos seguintes: a nostalgia de uma Nova Iorque boêmia e artista do início dos anos 80, devastada logo a seguir pela Aids, em I am a bird now, do Antony and the Johnsons, ou a "constatação da solidão" que atravessa todo o disco recém-lançado de Scott Walker, The drift (se não a mais bela, pelo menos um das obras mais ousadas e originais que vi na música pop em muitos anos, bem próxima do War Requiem do compositor erudito britânico Benjamin Britten). Quisera eu ter esse talento de fazer bonito a partir da dor: lembro que exatos dez anos atrás, quando perdi um amigo que era uma espécie de "irmão mais velho", tentei dedicar-lhe um poema, talvez a coisa mais piegas que produzi ? por isso mesmo, tal texto nunca veio à luz, nem cópia dele tenho mais.
E é nesses momentos, em que a dor é transfigurada, recriada e assimilada através do trabalho artístico, que podemos dar razão a certas colocações, como quando W.H. Auden (no poema "Funeral Blues") pede para apagar uma por uma das estrelas porque nada mais importa já que seu amado não está mais vivo, ou quando Fassbinder decide superar a dor do suicídio de seu companheiro (da qual ele foi em parte causador), realizando seu filme mais pessoal (o "pouco lembrado" Num ano com treze luas, que trata exatamente dos últimos dias de um suicida rejeitado por seu grande amor). Ou ainda quando Joan passa o livro inteiro rememorando episódios vividos ao lado de John e Quintana, numa tentativa de não deixar desbotarem as lembranças felizes de uma época em que os dias pareciam que iriam durar para sempre (vide a irônica utilização de uma foto dos três, em férias, em meados dos anos 70, publicada na contracapa do livro).
Como disse no início, eu não sabia o que esse livro tinha que mexia tanto comigo. E fica mais difícil ainda de não cair na tentação de um "pensamento mágico" sobre esse livro ter aparecido na minha vida apenas cinco dias antes da perda de minha avó materna. A minha idéia inicial era dar o livro para minha mãe ler, já que eu o comprara inocentemente, imaginando que fosse despertar seu interesse pela leitura, pois ela também havia perdido, alguns anos atrás, seu companheiro de uma vida inteira. A gente nunca imagina quando a vida da gente muda, e não tem como ficar boquiaberto quando percebemos que realmente muda num instante. De qualquer modo, o livro está aqui, talvez possa ser útil para minha mãe daqui a algumas semanas ou meses. Ou até para mim mesmo.

Comments:
Gostei muito do comentário e, embora não tenha intenção de comprar o livro, sei o que as perdas representam, principalmente nas "mortes súbitas", quando tudo parece estar bem, e booommm! se acaba. Parabéns ao autor do comentário. Você escreve muito bem, e mistura crítica literária com emoção. Um abraço e saludos. Maria José Limeira

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Retificando o link do meu blog:
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Saludos.
Maria José Limeira
 
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