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13.5.06

"Todo personagem tem o romance que merece"

Publicada em 10.05.2006
Erly Vieira Jr

Ela tem apenas 22. Chama-na de Kitty. Todo mundo. Tem blog, fotolog com nome de música do Police: Every little thing she does, vive nas baladas, na ?sinfonia de estrobos? proporcionada pelas cybershots de bolso a toda hora convocadas pra tirar foto pro fotolog. É loura, olhos azuis, bonita, gostosa e cultuada pela sua "galera" (sempre odiei essa palavra, diga-se de passagem). Ganhou de Daddy um Audi A-3 vermelho, faz Comunicação numa "facul" particular em Mic (a.k.a. Vitória, nossa tão querida Faketown). É claro que suas amigas se chamam Lu, Déb, Pri (aliás, são duas Pris!, só faltou mesmo uma Tati e uma Mari pra completar), e dá pra adivinhar que no Winamp do computador dela rola Audioslave, Linkin' Park, Lasgo, No Doubt e até mesmo SOAD, pra mostrar que não tá aí pra brincadeira. Até que de vida sexual ela já fez um bocado de coisas, Guto, seu ex, que o diga. O atual, Breno, que é bi, é uma prova de que Kitty, a princípios não tem "preconceitos". Bala, doce, tudo ela já provou, e encaretou depois de uma quase overdose de pó. Mamãe é Mummy, demonstrando que a vida vez por outra pode ser cor-de-rosa (embora quase sempre tudo seja foda demais), e falada em inglês, que até chega a ser muito bom, ?provindo, como provém, 10% de aulas em instituto de línguas e 90% de letras de rock? (p.26). E ela de-tes-ta trocadilhos do seu nome com a imbecil Hello Kitty.
Kitty, aos 22, é protagonista de um romance. Ela bem que poderia ser personagem de algum escritor ex-blogueiro, quase sempre gaúcho ou carioca, surgido na virada do século, altamente hypado e eterno estudante de Jornalismo (mesmo depois de formado). Mas, jogada assim, sem mais nem menos numa trama sub-bukowskiana (esse tipo de escritor a-do-ra Bukowski, sabe-se lá Deus por quê), a história de Kitty seria tão descartável como costuma ser esse tipo de literatura. E, ainda por cima, o excesso de referências pop que o autor iria jogar no texto pra disfarçar a falta de habilidade em contar uma história no máximo serviriam pra demonstrar um maniqueísmo simplista e arrogante de escritor jovem que ouve Weezer e Babyshambles e que só escreveria sobre uma fã do Linkin' Park pra ridicularizar ela e todas as patricinhas que partilham de seus gostos mainstream.
E aí vem o primeiro tapa. Kitty é protagonista de um livro, mas sua história caiu em boas mãos: duas das melhores do país atualmente (sem exagero), diga-se de passagem. Kitty aos 22: Divertimento é o novo romance de Reinaldo Santos Neves (16 anos depois da publicação do sublime Sueli). Reinaldo, escritor de primeira linha, e ainda por cima jazzófilo xiita (daqueles que se reúnem no Clube das Terças-feiras, como seu personagem Garibaldi) escrevendo sobre patricinhas fotologgers sempre ansiosas por uma "baladinha" irada? E por que não?
Reinaldo promove um mergulho no efêmero e altamente mutável universo da cultura pop pra extrair dali uma estória das mais empolgantes dos últimos tempos, centrada na última semana de férias de julho da protagonista. E aí a gente percebe a diferença entre um escritor de verdade e um autor hypado por causa de livros com títulos muito mais interessantes que o seu conteúdo. Aqui, as referências à cultura pop de hoje não agem como uma camisa-de-força a reduzir os personagens a uma determinada tribo, como é de praxe na maioria dos livros que se utilizam desse recurso, escritos por autores "jovens" e "descolados". Pelo contrário. No romance escrito por Reinaldo, tais referências são reviradas do avesso, a cada vez que a trama nos leva a lugares inesperados. Os signos pop, aqui, conseguem ser utilizados a serviço da narrativa (e não a obrigando a estar a serviço do pano de fundo), e somam significados justamente por terem utilizadas suas principais características: a descartabilidade e a mutabilidade constante.
Reinaldo consegue, dentro de um universo efêmero e supostamente descartável, construir uma personagem de uma densidade raramente encontrada na prosa brasileira contemporânea. O livro consegue ser deliciosamente pop, sem ser raso em momento algum. Vai seduzir leitores jovens hoje, vai satisfazer os leitores antigos do autor, e vai deixar todo mundo perplexo e hipnotizado à medida em que a trama vai avançando. E eu me arriscaria a dizer que, mesmo daqui a muito tempo, quando a gente já tiver esquecido do Audioslave, do No Doubt, da Britney, do Linkin' Park, quando o System of a Down não conseguir mais "mesmerizar" ninguém (a mim, nunca enganou), quando fotologs e blogs forem peça de museu e cybershots forem objetos tão obsoletos quanto um gramofone, Kitty aos 22 ainda vai ser uma leitura bastante instigante, como todo bom livro.
O curioso é que Reinaldo intitula-o de "divertimento", como no gênero musical erudito, surgido no século XVIII, caracterizado por peças ligeiras, geralmente executadas por conjuntos de câmara, cujo clima é "despreocupado, sereno lépido e alegre" (há uma nota explicativa no começo do romance, definindo o gênero). Kitty aos 22, dessa forma, pretendia ser um entretenimento leve, uma espécie de fábula ligeira. Acabou sendo um romance daqueles. Dificilmente aparece algo tão bom este ano aqui no Espírito Santo. Eu, se fosse você, corria atrás de um exemplar. O livro chega às lojas da cidade esta semana. Merecia chegar às lojas de todo o país. E, como é um livro muuuuuuito rico, vai merecer mais de uma coluna por aqui. Só a apresentação do autor rende assunto para mais de um texto.
O livro abre com um lembrete: "Todo personagem tem o romance que merece". Kitty merece, e nós, leitores, também.

Comments:
li e quero escrever sobre o livro. mas não me agradou tanto quanto a você, erly.
 
quando poderei ler esse livro???

ansioso...
 
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