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13.5.06

Este texto começa com um cordel ambientado na distante Hamelin...

Erly Vieira Jr
(Publicado em 03.05.2006)

Dia desses, chegou uma versão do Flautista de Hamelin em cordel às minhas mãos. De autoria de Braulio Tavares, "O flautista misterioso e os ratos de Hamelin imediatamente me chamou a atenção pela tentativa de cruzar, num texto impresso, duas tradições que se desenvolveram principalmente no campo da oralidade: as lendas populares e a literatura de cordel.
A lenda do flautista remonta à Idade Média. Já havia atravessado séculos (e sofrido uma série de variações) quando os irmãos Grimm ouviram-na da boca da camponesa Dorothea Viehmann, no comecinho do século XIX. A fábula conta a história de uma cidade que sofreu uma praga de ratos e foi salva por um flautista que, ferido pela ingratidão da população, que não lhe pagou a quantia combinada pelo serviço, hipnotizou todas as crianças da cidade com uma melodia, transportando-as até uma caverna misteriosa, na qual todos desapareceram para sempre. Lenda ou fato, até hoje tal história seduz leitores e autores, a ponto de ser contada e recontada de inúmeras formas. Provavelmente, a origem da lenda tem a ver com episódios em que crianças, de alguma forma (ou por vontade própria, ou atraídas por algo que lhes fosse sedutor), se afastaram em bando de sua pequena cidade: como era comum que crianças desgarradas fossem raptadas e vendidas como escravo em portos distantes, durante a Idade Média européia, esse tipo de narrativa fazia parte do imaginário popular da época, a ponto de episódios reais, sem registro histórico confiável numa sociedade basicamente oral, serem transfigurados em pequenas ficções e lendas.
O cordel também é um tipo de narrativa popular que, com seu ágil texto em sextilhas de cinco ou sete versos e seus livrinhos de impressão barata e sedutoras capas de xilogravura, ficcionaliza muitas vezes episódios históricos ( nos chamados "folhetos do acontecido") ou causos populares, trasfigurando o real em narrativas que lançam mão de fartos recursos do campo do fantástico (é que no sertão, explica o livro num artigo ao final dele, não há uma divisão tão nítida entre o mundo fantasioso das crianças e o mundo "realista" dos adultos, de modo que a fantasia e o inverossímil caem com luvas no gosto dos leitores de cordel). Tavares, o autor do artigo, explica que o autor do cordel, desse modo, faz o cruzamento entre seu próprio mundo e o mundo dos personagens: daí comerem macaxeira num banquete num palácio oriental, ou o mocinho de nome bem brasileiro (em plena Grécia e Turquia) salvar a mocinha presa na torre com uma máquina voadora, o Pavão Misterioso, título de um cordel dos mais célebres já publicados.
E é isso que Tavares, um expert em literatura fantástica (vide as duas coletâneas que resenhei aqui tempos atrás, uma de autores "borgeanos" e uma de autores brasileiros, ambas organizadas por ele), acaba por fazer ao efetuar o cruzamento do cordel com o conto de fada malcriado do flautista. Eis o cordel, em sua maior vocação antropofágica, renascido em plena literatura brasileira contemporânea, altamente resenhável pelos sisudos e intelectualizados cadernos culturais, mas sem deixar de ser pulsante, irreverente, divertido e criativo, como bem deve ser um cordel.
Motivado pela leitura recente do Flautista, dirigi-me ao MAES pra conferir a exposição Universo do Cordel. Deparei-me com um belo painel de como a xilogravura, com toda sua riqueza iconográfica, é parte fundamental da produção nordestina de cordel. Pude também conferir a riqueza e o bom humor na escolha dos títulos: "O exemplo da mulher que vendeu o cabelo e visitou o inferno", "O exemplo da moça que encontrou a besta-fera", "Novo pacote depois da eleição: Foi traição", "Morreu são Tancredo Neves deixando o Brasil de luto" (Ok, "São" Tancredo foi a pior forçação de barra dos últimos 30 anos, mas ao menos soa engraçado!)...
Só não pude conferir o "passeio pela LITERATURA de cordel" que é anunciado no texto do curador, plotado na parede do museu. Até que havia uns trechos de cordel plotados na parede, mas o fato de que centenas de livrinhos de cordel foram expostos presos à parede (numa montagem que, digamos é plasticamente linda, digna de uma exposição), eliminando a possibilidade de interação com o espectador, que é convidado a contemplar o mosaico de capas, a assistir um vídeo (com uma projeção que prejudica o som), e a ver alguns cordéis da Kátia Bobbio, única representante capixaba da literatura de cordel, aprisionados numa redoma (eu mesmo fiquei louco pra ler um trechinho de um da Maria Nilce e de outro sobre Luz del Fuego, mas fiquei só na vontade).
Ou seja, o livrinho de cordel, tornado objeto de exposição, não supre uma carência cultural que nós, moradores do sudeste do Brasil, tão distantes do sertão nordestino, temos: a de entrar em contato com a rica produção de cordel. A gente sai morrendo de vontade de abrir os livrinhos com as capas e títulos mais sedutores e irreverentes, mas a curiosidade jamais é saciada.
Esse tipo de "aprisionamento" do objeto (eu diria "reducionismo") vez por outra aparece no terreno das Artes Visuais (que, ironicamente, deixaram de ser chamadas de artes plásticas justamente para assumirem uma visão mais ampla e transdisciplinar de seus objetos), em algumas iniciativas que caem na fácil tentação de dialogar com a "exoticidade" do objeto muito mais que com a originalidade da abordagem do mesmo frente à realidade. Basta lembrarmos do recente episódio do Cine Falcatrua, selecionado para o Rumos Itaú Cultural como se fosse uma espécie de legitimação de uma curadoria ?antenada? com as novas tecnologias e com as transgressões às regras do jogo cultural, mas que causou uma certa repulsa entre os outros artistas participantes do projeto, por terem exibido episódios do Chaves e videogames (comprados no camelô do centrão de São Paulo, atitude super coerente com as propostas do coletivo) em plena Avenida Paulista. Dentro das discussões sisudas da "Arte Contemporânea" não cabe exibir um piratão do Chaves, né? Dialogar com as relações entre público consumidor, seus anseios de consumo e a realidade de seu bolso semi-vazio não é de bom-tom prum artista contemporâneo, né? A "Arte Contemporânea" deve se ocupar com assuntos mais investigativos, me disseram por aí. Eu sugeriria tirar o lençol do varal e estende-lo na parede, pra que se possa projetar a realidade em movimento e conflito, a 30 frames por segundo!
E olha que a obra principal do Falcatrua nem era a exibição na Paulista, mas sim um bem bolado festival em que os filmes eram exibidos em pedaços, escolhidos pelo próprio projecionista, cruzando o universo do sampling (tão presente na contemporaneidade) e do VJing com os conceitos de autoralidade e curadoria. Não preciso dizer que o negócio causou debates acalorados, né? Principalmente de cineastas que não lêem regulamento (que previa com detalhes TODAS as condições de exibição) e vêm reclamar de seus filmes terem sido exibidos de maneira inadequada. Definitivamente, pelo menos dois terços do mundo sequer entraram no século XXI, eu diria. Deveriam aprender com os autores de cordel. Pena que não se vende cordel por aqui. Eu, com certeza seria leitor compulsivo. Porque o primeiro impulso de quem entra da bela exposição de cordel no Mães é de querer ler todos os cordéis expostos na parede. Taí uma prova de que certos livros podem ser julgados pela capa.

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