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26.7.06

Letra de música é literatura? (Parte 2 de 2)

Erly Vieira Jr

Cumprindo o prometido, vamos agora dedicar algumas linhas às aproximações entre letras de música e literatura.
A música pop, por mesclar a componente instrumental (responsável pelo verdadeiro "quarteto mágico", o único que não desaparece em campo: ritmo, melodia, harmonia e timbre) ao conteúdo semântico de sseus versos, permite que seus compositores explorem não só a musicalidade das palavras, mas também jogos semânticos bastante variados.
Vez por outra, o resultado chama a atenção. Daí surgirem letristas inspirados, cujos versos, adotados como verdadeiras profissões de fé por um certo filão da juventude, rendem posts de blogs, declarações de amor, frases em camisetas e epígrafes de livros da moda ? ainda mais neste início de século, em que ser singer-songwriter voltou à moda com força total, numa lista interminável que inclui os contundentes Thom Yorke, Tori Amos e Fiona Apple, o inventivo Sufjan Stevens, a ironia de um Stephin Merritt (quase um "novo Cole Porter") ou de um Jens Lekman, sem contar as centenas de cantores neo-folk e bandinhas indie herdeiras diretas de Nick Drake, e ainda nulidades como James Blunt, que irritou nossos ouvidos o semestre inteiro com o insosso refrão "you?re beeeeeeeeautiful". Tem versos que, de tão bonitos, a gente começa a decorar e citar, como se fazia com os dos poetas de antigamente (por antigamente, entenda-se "até o modernismo, incluindo talvez um ou outro poeta da contracultura").
No Brasil, então, a tradição do letrista é bastante forte. Muitos dos clássicos na nossa MPB, de Pixinguinha à Bossa Nova, do Chico Buarque aos tropicalistas, de Cartola a Renato Russo e Cazuza, poderiam ser considerados poemas musicados (principalmente os experimentos concretistas da tchurma de Gil e Caetano). Tem letras de Marcelo Camelo, do Chico e do Renato que se assemelham a contos ou trechos de romance que não fariam feio numa antologia do melhor da prosa produzida no país na virada do século. E tem até coisa do Arnaldo Antunes que valha a pena, em termos de poesia, vejam só!
O imaginário popular reconhece esse inspiradíssimo acervo de versos e poemas, da mesma forma que incorporou muita coisa da poesia romântica, parnasiana e moderna brasileira. Não seria exagero dizer que uma certa vertente da música popular passou a exercer a mesma função que a poesia exercia na vida social em épocas anteriores. Vale lembrar que, em diversos momentos da história (da Antiguidade Clássica à Europa iluminista, do ufanismo parnasiano à poesia popular do cordel nordestino), os poetas eram reconhecidos pelo grande público, seus versos recitados-cantados-lidos por toda parte, inclusive nas datas cívicas da escola primária até bem pouco tempo atrás. A diferença, talvez, estivesse no fato de que o reconhecimento de muitos desses autores ocorresse gerações depois (como os incontáveis cadernos contendo os versos de Augusto dos Anjos copiados à mão, enquanto Eu não era reeditado), enquanto que, no terreno da música popular de massa, o reconhecimento é quase que imediato: os discos inclusive, saem de fábrica em tiragens bem maiores que os livros (mesmo quando são de artistas independentes), e são pirateados com muito mais freqüência que estes, o que demonstra a óbvia posição de destaque da música popular sobre a literatura desde o pós-guerra.
Alguns dos songwriters, inclusive, são reconhecidos como escritores, com resultados bastante diversos: se Arnaldo Antunes é bem melhor nos livros que publica do que nas letras tribalistas, Chico Buarque, por outro lado, não é nem sombra do maravilhoso poeta quando se aventura em romances deveras insossos. Aliás, eu seria radical a ponto de colocar o Songbook do Chico num cânone literário brasileiro das últimas décadas, em lugar de certos "estorvos" e gambiarras, ops, "benjamins". (Diga-se de passagem, Vinícius de Moraes se aventurou brilhantemente tanto na literatura quanto na música ? e não há quem me convença do contrário...)
É por essas e outras que, na minha estante, diversos encartes de cds exercem a mesma função que muitos livros, bem como alguns dvds, brilhantemente adaptados da literatura e do teatro, como as três versões de Macbeth, bem adequadas ao ritmo de vida frenético da contemporaneidade (opa, cometi uma heresia, deixa eu consertar antes de ir pra fogueira sem dó nem piedade!). Não que Shakespeare esteja datado, muito pelo contrário, ele tão cedo não deixará de ser o marco maior da literatura ocidental, mas cabe muito mais em nosso cotidiano assistir uma representação de um texto teatral adaptado ao cinema (e temos soberbas versões de Orson Welles e Kurosawa, e um bom filme do Polanski), ou presenciar uma boa montagem cênica da peça (o que, convenhamos, é meio raro aqui no Brasil), do que mergulhar na leitura do texto original. Uma coisa não substitui a outra, eu posso ser até condenado à fogueira por afirmar tamanha heresia, mas não há como fechar os olhos ao fato de que, numa sociedade cada vez mais audiovisual, o cinema e música pop (e, mais heresia minha ainda, os videogames e quadrinhos) passaram a assumir parte do papel destinado à literatura nos séculos anteriores.
Claro que nem toda letra de música, sozinha, funciona como poesia. Vide o Los Hermanos 4: a maioria das letras quando lidas, provocam um constrangimento absurdo no leitor, que se vê perdido num amontoado de versos em que palavras como "acaso", "morena" e "mar" se repetem o tempo todo de forma quase pueril, sem acrescentar muita coisa, poeticamente falando. Mas o grande (e brilhante) lance do disco é que quando esses versos estão inseridos nas músicas, eles assumem outra dimensão, e várias das faixas revestem-se de uma beleza surgida exatamente do amálgama entre letra e música. Só pra constar, eu diria que Ventura, o disco anterior, possuía algumas letras que, isoladamente, funcionariam muito bem como trechos em prosa ou pequenos poemas da boa literatura contemporânea.
Outro ponto do debate é a concepção poundiana do ofício do poeta como "antena da raça". Quando eu penso na letra de "Jesse", do Scott Walker, descrevendo uma imaginária conversa entre Elvis Presley e seu irmão sobre o 11 de setembro, é impossível não reconhecer a força com que esse sentimento de perplexidade e fragilidade coletiva foi traduzido em versos, com todo o trabalho rítmico e sonoro no encadeamento das palavras. Impossível permanecer ileso às perguntas sem resposta de Elvis a seu irmão. A própria divisão da letra em pequenos versos de uma palavra ou duas cada (em que cada estrofe corresponderia a uma frase em prosa corrida), aproveita uma disposição espacial em que a voz do poeta é reduzida a um fiapo, sem direito sequer ao eco, espremida na delgada coluna alinhada à margem esquerda da página (se pensarmos a letra da canção como um poema). E se somarmos o canto desesperado de Scott e o sombrio arranjo da canção (que lembra bem mais uma obra erudita como o ?War Requiem? de Britten do que música pop), o efeito do conjunto é tão devastador quanto o sentimento que origina a obra.
Essa discussão toda sobre a relação Música-Literatura não poderia deixar de lado o hip hop. A quase onipresença do canto falado do rap nas últimas duas décadas ressalta a importância de um espaço híbrido em que versos falados (ainda que ritmados de forma bastante complexa na recitação dos rappers) e acompanhamento musical em looping (ou ostinato, se preferirem), sampleando outras falas, células rítmicas e frases musicais pré-existentes, muito freqüentemente escolhidas não só por sua adequação à estética pretendida, mas também pelo conteúdo simbólico e político que a faixa sampleada carrega consigo e que dota diversas gravações de artistas de hip hop de uma intertextualidade das mais ricas na cultura ocidental contemporânea (os samples engajados de discursos de Luther King, fraseados de Coltrane e metais "orgulhosamente black" de James Brown, na old school do hip hop chegam a ser um lugar comum para reforçar esse argumento). O rapper já há muito é reconhecido como uma espécie de cronista do cotidiano, eu diria inclusive que tal afirmação já virou até de domínio público. E eu diria ainda, mesmo com a ameaça de uma chuva de pedras sobre mim por cometer outra heresia (hehehehehehe) que muitos dos procedimentos de uma certa facção experimental do hip hop (Prefuse 73, DJ Shadow) em muito se aproximam de certas coisas que a poesia sonora (reconhecida academicamente) tem produzido nas últimas décadas.
Não sei se respondi as duas questões que lancei na coluna passada, mas pelo menos coloquei um pouco mais de lenha na fogueira destinada a hereges como eu...

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