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26.7.06

A falta que uma boa tradução faz...

Erly Vieira Jr
(Publicado em 19.07.06)

Semana passada criei vergonha na cara e comprei os dois volumes já publicados da nova tradução de As mil e uma noites para o português, realizada por Mamede Mustafá Jarouche. Mamede traduziu o texto diretamente dos originais, algo inédito na língua portuguesa, uma vez que as traduções disponíveis no mercado foram realizadas com base nas versões em inglês ou francês do livro, totalmente mutiladas, censuradas, contendo até mesmo estórias apócrifas (reza a lenda que Ali Babá, Aladim e Sinbad são invenções do primeiro tradutor ocidental, Antoine Galland). Ou seja, estamos nos deparando finalmente com uma tradução fiel dos textos originais, com toda a carga de erotismo e crueldade presentes nesse livro que influenciou centenas de escritores através dos séculos e que até hoje fascina ? o próprio Borges confessava ter se inspirado em diversas passagens das Mil e uma noites como ponto de partida de diversos contos.
Através da versão do Mamede, ficamos sabendo que existem dois ramos de manuscritos originários do livro: o ramo sírio, que vai até a 282ª noite, e o egípcio tardio, que completa o total de noites em que Sherazade (aliás, apresentada na grafia correta, ?ahrazad) constrói sua epopéia. A trama que costura os episódios fantásticos parte de um rei sassânida que, depois de descobrir que sua mulher o traí com um escravo, decide se vingar das mulheres se casando a cada noite com uma, que ele irá matar ao alvorecer. ?ahrazad, culta e astuta, torna-se esposa do rei sanguinário, mas monta um infalível estratagema para enredá-lo e escapar ao fatal destino: toda a noite ela conta estórias ao rei, mas suspende a narração na melhor parte, de modo a continuá-la na noite seguinte, de modo que o rei, curioso para saber como termina a estória, mantém a jovem viva por mais uma noite, e aí sucessivamente, até que ela conquiste seu amor, ao final da milésima primeira noite.
A tradução de Mamede mantém a sensualidade, a subversão e o prazer presentes na leitura das "Mil e uma noites", contrastando com as versões castas (e, em alguns casos, moralistas e repressoras) que existem por aí. Ele ainda faz o favor de incluir um farto arsenal de notas e os textos apócrifos todinhos, devidamente contextualizados. Dessa forma, a narrativa Síria, cujo segundo e último volume já foi publicado, que é originalmente interrompida no meio da última estória, traz como anexo a conclusão da estória segundo um texto original árabe, mesmo que não pertencente ao ramo sírio. Esse trabalho primoroso de tradução e edição faz com que a gente morra de ansiedade pela publicação do ramo egípcio, previsto para quatro volumes (eram três, mas o editor confirmou no orkut, em várias comunidades dedicadas ao livro, que serão quatro), embora o processo de tradução ainda se encontre em andamento e o próximo volume só tenha previsão de lançamento para o final do ano. Detalhe: eu estou ansioso, muito embora mal tenha começado a leitura do primeiro volume.
Isso faz lembrar a falta que uma boa tradução faz para um leitor. Principalmente com relação aos clássicos. Imagine o quão mutilados eles chegaram até nós. Principalmente obras carregadíssimas de erotismo e subversão, como o Decameron e o Satyricon. Raras traduções do Decameron assumem o tom picante de algumas estórias: eu lembro de ter lido uma dessas edições no estilo "grandes clássicos" quando era adolescente, e anos depois, ao me deparar com o filme do Pasolini, eu achei que quase tudo era invenção dele, embora tudo estivesse lá no livro original. Quanto ao Satyricon, eu sempre fugi das "seleções galantes" que eram publicadas até a década de 70, já que tive a sorte de ler a deliciosa tradução do Paulo Leminski, em que cada palavrão e putaria incluído no texto acentuava o sabor da estória.
Até mesmo em textos modernos e contemporâneos uma boa tradução faz a diferença. Eu por exemplo só gosto de ler Kafka traduzido pelo Modesto Carone. Embora eu nunca tenha lido Kafka no original para confirmar se a tradução realmente é fiel ao estilo do autor, a aclamação crítica ao Carone e a riqueza do universo que eu encontrei nos textos traduzidos me convencem de que a tradução é boa. Acho que eu ficaria bastante frustrado ao saber que essa tradução das obras de Kafka nem de perto chegam no clima do original. Foi Modesto Carone quem me converteu ao culto Kafkiano, seja lá o que isso for.
Outro caso curioso é o Ulisses do Joyce. Durante anos, só existia a tradução do Houaiss, que era inclusive incensada por boa parte dos acadêmicos brasileiros. Se é mais complicado que o original, não posso dizer: tentei atravessar por duas vezes o original, nunca passando da página 20, graças aos meus medianos conhecimentos em inglês, enquanto que a tradução houaissiana nem foi tão tortuosa assim de atravessar, quando li o livro, bons oito anos atrás (eu também tentei a tradução portuguesa, mas desisti bem antes da página 20). Depois da tradução best-seller da Bernadina (por sinal, alvo de uma interessantíssima conversa ao telefone com uma amiga escritora esta semana), a versão do Houaiss passou a ser criticada de forma bem mais explícita (principalmente por ser mais "empolada" e pedante) pelos estudiosos, embora seu mérito ainda seja reconhecido (eu mesmo fico fascinado com um neologismo em especial, mansirrangepisando, uma das mais lindas palavras da língua portuguesa na minha opinião).
A questão é que uma boa tradução permite evidenciar determinadas sutilezas do texto e, convenhamos, é um privilégio termos duas boas traduções de um texto tão essencial em nossa língua. Vale lembrar que a gente não lê exatamente o texto do autor quando lê uma tradução, mas sim uma possível interpretação do texto original proporcionada por um tradutor. Assim sendo, cada tradução permite que vejamos a obra original com outros olhos, e esse é um dos melhores exercícios ao qual um leitor pode se permitir. Se um livro possui boas traduções em português, e até mesmo mais de uma, o leitor pode saboreá-lo de diversas maneiras. O Ulisses tem duas. As mil e uma noites finalmente possuem uma tradução à altura, sem as mutilações malbatahanescas ou ferreiragullarianas ou sabe-se lá de quem mais.

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