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26.7.06

Coisas que só a literatura faz por você (parte 2 de 2 )

Erly Vieira Jr
(Publicado em 28.06.06)

Incomoda-me profundamente o fato de que a intelectualidade brasileira trata Bioy Casares como autor de um livro só, ainda que reconheçam o status de obra maior que A invenção de Morel possui. Eu tenho a absoluta certeza de que esse povo jamais leu outros romances do argentino, como O sonho dos heróis, com sua estrutura circular quase onírica, ou o cortante Diário da guerra do porco, um aterrorizante e melancólico relato de uma revolta em que os jovens declarariam guerra aos idosos portenhos, por sua suposta baixa produtividade, promovendo uma série de linchamentos e agressões inimagináveis, quase em avalanche. Esse livro, pelo menos, deve ser um pouco menos ignorado por aqui, já que a Cosac & Naify incluiu na sua lista de futuros lançamentos, na mesma coleção que trouxe, este ano, A invenção de Morel de volta às prateleiras das livrarias (ainda que, em Vitória do Espírito Santo, as prateleiras de livrarias que acolhem os bons lançamentos sejam raras - com honrosas exceções, como uma recém-inaugurada livraria em Jardim da Penha, e as lojas pontocom acabem quebrando o galho do leitor afoito pelas "novidades").
Mas o que mais me incomoda são as apressadas comparações que fazem entre o livro de Casares e um belíssimo filme de Alain Resnais, O ano passado em Marienbad. Talvez, com muito esforço, possamos reconhecer uma inspiração que Resnais tenha encontrado no Morel para compor seu magnífico labirinto cinematográfico (escrito por Robbe-Grillet, escritor que, diga-se de passagem, nada tem a ver com Bioy Casares), se tentarmos aproximar as camadas da memória que se sobrepõem narrativamente, mas nem dá pra dizer que é uma livre adaptação. No máximo, podemos dizer que o filme e o livro possuem algum parentesco por investigarem as relações entre tempo e memória, dentro das possibilidades de linguagem que seus respectivos suportes permitem explorar. Até existe uma adaptação italiana de A invenção de Morel para o cinema, estrelada pela "musa nouvelle vague" Anna Karina, mas esse faz parte do célebre rol "não vi e não gostei": o filme nem como nota de rodapé é citado, então nunca tive vontade de perder tempo com ele. Prefiro o livro, claro.
Eu me lembro de ter lido o Morel de uma só tacada, emprestado por um amigo, em 1999. Raros são os livros que me prendem dessa forma. É que a narrativa é cristalina, direta e envolvente, mesmo se tratando de uma estória repleta de circunvoluções. Sim, o mecanismo das marés que ativa a invenção assombrosa da qual o livro trata reflete-se na construção narrativa, ampliada pela dosagem paulatina de informações essenciais ao leitor, truque herdado da narrativa policial de suspense, pela qual Casares era fascinado.
A história todo mundo conhece: um fugitivo escapa da prisão e se refugia numa ilha em que um grupo de riquinhos desocupados se diverte sem nem perceber sua presença. Aos poucos, ele se dá conta de que os "habitantes" da ilha são imagens projetadas por uma misteriosa máquina, inventada pelo tal Morel e acionada pelas marés, e que as projeções duram exatamente uma semana. Sim, eu adoro bancar o spoiler e revelar pros meus leitores que "todo mundo estava morto desde o início", embora a gente tenha que ler dois terços do livro pra chegar a essa conclusão. Mas o mais fascinante vem no terço final do livro: apaixonado por uma mulher que só existe nessa ilusão mais-que-cinematográfica, o protagonista fugitivo decide se entregar ao mecanismo da máquina e tornar-se também projeção, não sem antes elaborar um intrincado roteiro de atividades que interajam sincronicamente com as ações da mulher em questão.
O grande lance do Casares foi pensar numa linguagem inteligentíssima para traduzir em palavras esse belo embate entre o homem, a constatação de sua finitude e o incessante desejo de ser eterno. E o autor faz uso de um gênero até então considerado menor, o romance policial, para empreender esse périplo. Daí a linguagem aparentemente direta, cristalina, que esconde um verdadeiro labirinto. Coisas de quem era o melhor amigo de Jorge Luis Borges. Não à toa, Borges qualificou A invenção de Morel como uma narrativa perfeita. E meio mundo assina embaixo (o restante não assina porque ainda não leu...). E esse lobo em pele de cordeiro, quer dizer, essa complexidade disfarçada de "literatura barata" consegue ir muito mais longe que o Marienbad do Resnais no que tange à reflexão sobre tempo, memória e corpo. Não vou nem continuar a comparar, porque desta vez a literatura marcou dois a zero sobre o cinema (se considerarmos a vitória no embate entre Pedro Páramo e Cidadão Kane). Ok, são duas obras incontestavelmente sublimes, mas é muito mais divertido entrar no jogo de quem consegue ser hermético aparentando ser o texto mais fácil do mundo. Assim é que se constroem os quebra-cabeças mais deliciosos, não?

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