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27.6.06

Se joga pintosa. Põe rosa!

Erly Vieira Jr
(Publicado em 21.06.06)

E no fim de semana passado eu estive em São Paulo. Pelo terceiro ano seguido fui engrossar o contingente de quase três milhões de pessoas a desfilar pela Paulista na Parada do Orgulho GLBT. Tudo bem que, em dez anos de Parada, pouca coisa mudou com relação a questões fundamentais, como a união civil e a criminalização da homofobia, e muito do que se vê no desfile tem mais a ver com um carnaval eletrônico do que com um ato político (embora não deixe de sê-lo), mas eu acho muito importante fazer a minha parte, comparecendo ao evento, nem que seja para ser mais um na contabilidade de uma cifra a cada ano mais espantosa (e arrebatadora, diga-se de passagem). Eu sou daqueles que acreditam que um dia a gente vence pela insistência.
Mas o mais insólito em minha estadia em Sampa no feriadão foi ter "atravessado" a Marcha para Jesus, em plena tarde de quinta-feira. Sob o pretexto de dar uma passadinha na Fnac pra aproveitar possíveis liquidações de livros, cds e dvds (acabei voltando com um livro do Perec pela bagatela de dez reais que será assunto numa coluna posterior), resolvi empreender um passeio antropológico por entre o colossal aglomerado de evangélicos e simpatizantes.
Visto de fora, o contingente protestante presente à Marcha soa bastante exótico a meus olhos. Provavelmente, parece ser tão circense quanto a variedade GLBT da Parada soa aos olhos e ouvidos evangélicos. Parece um carnaval fora de época, com trios elétricos lotados de estrelas do cenário gospel brasileiro, anunciados com um entusiasmo tamanho que só poderia mesmo ser recebido com uma histeria pela platéia digna de um Zezé di Camargo ou de uma Sandy nos áureos tempos. É só anunciar, sei lá, uma Aline Barros, para imediatamente pipocarem centenas de u-hus entoados em rodinhas de adolescentes ostentando os dizeres "Deus é fiel" em faixas amarradas na testa.
Mas toda essa carnavalização da fé é válida como um discurso de consolidação de identidade, do mesmo jeito que todas as tribos GLBT exibem sua identidade e seu estilo de vida sob a exuberância contagiante das diversas vertentes de música pop (mesmo com a hegemonia do "bate-cabelo" da drag music eletrônica em dois terços dos carros da parada). E foi no meio desse devaneio acerca dos paralelos entre esses eventos de afirmação de diversidade sexual e religiosa que me veio o "x" da questão: será que existe uma produção cultural realmente desafiadora dentro do universo protestante brasileiro, da mesma forma que podemos identificar uma consistente produção cultural GLBT? Será que algum livro ficcional de temática "evangélica" terá fôlego para entrar para algum cânone literário (nacional, pelo menos), merecendo alguma posteridade?
É que, para mim, fica difícil pensar em uma afirmação identitária de um grupo não-hegemônico sem uma contraparte cultural consistente. Não que o admirável mundo gospel não possua uma produção digna de nota (pelo menos a musical é bastante vasta e conta com um público consumidor gigantesco), mas o que me incomoda é perceber que a quase totalidade dessa produção não passa de mero ersatz, da pura e simples imitação de modelos (quase sempre importados) anteriormente testados e aprovados. Peguem o exemplo da música gospel brasileira, que repete de maneira pouco criativa fórmulas musicais do hit parade (até mesmo do reggae, funk, hip hop, acid jazz e teenage pop) de uma ou duas décadas atrás. Ou ainda os filmes evangélicos, cujo propósito evangelizador (há até uns com vocação de filme-catástrofe) não consegue disfarçar um trabalho primário a partir da linguagem audiovisual (só para comparar, lembrem-se da genialidade de obras religiosas como A Paixão de Joana D?Arc e A palavra, de Carl Dreyer, O evangelho segundo Mateus, do Pasolini ou o Santo Forte do Eduardo Coutinho, verdadeiras provas de que a religiosidade pode produzir obras realmente desafiadoras).
Da literatura, então, nem se fala. Eu mesmo desconheço uma obra ficcional que tenha temática protestante realmente digna de nota produzida a partir da metade do século XX, muito menos no Brasil. A ironia é que o protestantismo sempre se considerou a "religião da Palavra", fundamentando na prática da leitura seu relacionamento com a religiosidade e o sentido da verdade.
A questão talvez seja respondida em parte, se pensarmos que a afirmação da identidade de um grupo através da prática cultural deva ter como base a problematização de sua própria condição frente aos modelos hegemônicos. Como a noção de "literatura menor", que Deleuze aplica em Kafka, uma literatura não de grandeza inferior à dominante, mas sim feita por uma "minoria" em uma "língua maior". Essa literatura seria caracterizada, segundo o filósofo, por três fatores: uma desterritorialização da língua (acompanhada de uma reterritorialização do sentido, tornado instável), uma inflexão política (a partir da afirmação do particular frente à identidade de grupo) e um agenciamento coletivo da enunciação. Ou seja, pensar a linguagem em seu limite, subvertendo ironicamente o significado (isso inclui o uso de gírias e outras trapaças vocabulárias) e problematizando as relações de poder em que um grupo está inserido. Dessa forma, a literatura (e a própria produção cultural) assume-se como uma produção instigante, criativa, derrubando fronteiras e marcos estagnados.
Essa é uma lição que as literaturas oriundas dos grupos de "diversidade sexual" nos ensinam o tempo todo. Por isso que soa natural a inclusão de um bom número de livros com temática homoafetiva (não necessariamente aderindo a uma identidade gay) entre os clássicos da literatura mundial (e brasileira). Yourcenar, Oscar Wilde, Severo Sarduy, Gide, Genet, Caio Fernando Abreu, Lúcio Cardoso, Waldo Motta, e tantos outros que o digam.
Não que não existam exemplos também no campo religioso. Vale lembrar que Bach era protestante e compunha basicamente música religiosa. E ele simplesmente foi um dos maiores compositores ocidentais de todos os tempos, e ainda hoje é um dos mais populares (e provavelmente continuará sendo por muito tempo, com suas missas, cantatas, paixões e oratórios). Aliás, a religiosidade foi o fio condutor de toda uma história das artes visuais, sendo que períodos inteiros como o Renascimento e o Barroco são impossíveis de ser pensados sem as pinturas de cunho sacro. Ok, peguei pesado com essa da pintura, já que o fato do protestantismo combater o culto às imagens impede que pensemos numa pintura religiosa "evangélica". Mas bem que poderíamos ficar com o exemplo do Orígenes Lessa, filho de pastor presbiteriano, rapaz fugido do seminário, que estruturou grande parte de sua obra sob questionamentos advindos de seu conflito religioso. Quem dera se houvesse esse tipo de problematização na cultura gospel tupiniquim.
Posso até soar ingenuamente idealista, mas defendo a arte não como mero ersatz mercadológico, e sim como questionamento de uma experiência vivida, dentro de um determinado contexto sócio-cultural, numa determinada época, estando no grupo majoritário ou minoritário. Como ensina a poesia de W. H. Auden, Gay e Anglicano, e por isso mesmo universal. Não há como não ler o Funeral Blues sem deixar escorrer uma lágrima, seja de qual religião ou sexualidade o leitor for. Sou dos que acreditam que a arte transcende qualquer barreira idiota que os homens constroem para separar uns dos outros. Ela desconstrói discursos identitários, promove questionamentos e, acima de tudo, permite à literatura transformar, de alguma forma, o mundo em que vivemos. Por isso que eu valorizo o subtexto altamente subversivo de um slogan aparentemente fútil como o estampado no carro do transformista Léo Áquila, na parada deste ano: "Se joga, pintosa. Põe rosa." A riqueza dessas cinco palavras, explosivamente dispostas para provocar riso e deboche, traduz toda uma "ars poetica" da diversidade. Pra mim, isso é muito mais rico do que exibir de maneira quase fascista um "Deus é fiel" numa faixa amarrada à testa. O Reino dos Céus, definitivamente, não é destinado aos que aceitam a mesmice, a repetição, a vidinha meia-boca. Amém.

Comments:
Cada vez mais empenhado em ser você mesmo. E cada vez mais surprendentemente arguto. Adoro seu texto-crônica-ensaio. E por falar em palavras unidas, já leu Ulisses, na tradução da Bernardina? Vamos tomar um chá num dia desses. Beijos.
 
Amei seu texto. Como evangélica, concordo em muitas, discordo em partes. Pequenas partes, é verdade. Mil beijos
 
Só para constar: Rembrandt era protestante.
 
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