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27.6.06

Crônica de uma ilha (muito) doida

Erly Vieira Jr
(Publicado em 07.06.2006)

Muito se fala da figura controversa de Maria Nilce, cercada de lendas por todos os lados, mas pouco se discute sobre a boa cronista que ela foi. Eu, particularmente, preferiria que ela fosse para a posteridade não por trivialidades como ter sido jurada do Chacrinha nos anos 70, ou pela brutalidade do seu assassinato (uma das histórias mais mal-contadas da ilha), mas sim pela qualidade de suas crônicas, dotados de uma finíssima ironia.
Uns oito anos atrás veio parar em minhas mãos um livro que ela publicara em 1977, com direito a uma hilária capa desenhada por Milson Henriques: Crônica de uma ilha (muito) doida. Eu acho um absurdo imenso que ninguém se refira a esse livro quando se fala da literatura local. E acho um absurdo maior ainda que as divertidíssimas páginas desse livro sejam desconhecidas das gerações seguintes à sua publicação. Imagina só, ignorar um livro que tem, no texto de abertura, um parágrafo de tamanha lucidez e atualidade como este aqui:

"Dizer que a nossa Capital é uma ilha cercada de fofocas por todos os lados é o óbvio. O povinho habitante desse estranho 'paraíso' adotou por hobby predileto... 'falar mal da vida alheia', antes de tudo e por tudo. 'E como fala'!"

Por conta disso, resolvi transcrever (sem pedir autorização alguma, mas em nome da difusão de nossa produção cultural, hehehehe) uma das crônicas. Ela fala da pré-estréia do filme A vida de Cristo, longa-metragem semi-capixaba rodado no início dos anos 70 em São Roque do Canaã (eu digo semi-capixaba porque a concepção do filme é de um capixaba, José Regathieri, responsável pela encenação anual da Paixão de Cristo na região durante anos e anos, mas a execução ? direção e equipe técnica ? ficou a cargo de uma equipe totalmente de fora do estado). Reza a lenda que o filme fez um certo sucesso e que era exibido na Semana Santa. Eu, particularmente, vi e não achei nada digno de nota, além da curiosidade histórica. Mas Maria Nilce conseguiu mostrar que os defeitos do filme poderiam render boas gargalhadas. Confesso que, quando pude assistir o filme, fiquei procurando as cenas às quais ela se referia...

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A vida escrachada de Jesus Cristo
(Maria Nilce)

Quando o convite chegou-me às mãos para a avant-première da Vida de Cristo, toda ela filmada em São Roque, município de Santa Tereza, interior do Espírito Santo, resolvi aceitar. Primeiro, porque era uma promoção beneficente da nossa Primeira Dama e, segundo, porque o filme foi feito aqui, com os artistas daqui e, em se tratando de bairrismo, é comigo.
E lá fui, de vestido novo, assistir pela décima vez, Jesus ser crucificado.
Antes do filme ser exibido, o diretor do mesmo fez a apresentação dos artistas, todos amadores, e eu comecei a achar o negócio meio estranho. A moça que fazia o papel da Virgem Maria estava com a cabeça cheia de longos cachos, pintadíssima e ganhou palminhas da platéia. Um cara me segredou que a Virgem Maria tinha sido papada por Jece Valadão. Ela podia parecer com tudo, menos com a Virgem Maria.
Na minha frente, estava sentado o nosso Arcebispo Dom João Batista da Mota e Albuquerque, atrás de mim o Governador e esposa. A meu lado, General Adyr Maia e Elza.
Começada a projeção, fiquei entusiasmada com a beleza do lugar, o colorido era lindo mas, de repente, foi acontecendo uma série de incoerências que saltava aos olhos de todos.
Na tela, José e Maria procuravam um lugar para Jesus nascer, ela já cansada sentou-se numa pedra onde estava escrito: CASAS PERNAMBUCANAS.
Comecei a rir. Como pode, lá em Jerusalém, já existirem, na época de Jesus, as famosas casas de tecidos?
Depois Jesus nasceu e José, ao pegá-lo no colo, provocou o seguinte comentário do General Adyr Maia, que estava sentado ao meu lado:
? Meu Deus, mas é maior que meu neto!
O neto do general já estava com oito meses e Jesus na tela, recém-nascido, tinha dentes e comia pão. Eu ria às gargalhadas. O arcebispo em minha frente consertava a garganta. Era sintomático.
Quando vieram os Reis Magos, trazendo os presentes para depositar na manjedoura, passaram por uma cancela onde estava escrito: "Chiquinho vem aí!"
A praga se generalizou. Em Jerusalém, "Chiquinho vem aí"? Deus nos valha, e eu ria, o general ria, Elza sufocava-se com o lenço, o Governador Arthur atrás de mim se mexia muito na cadeira. Eu não parava de rir e o cinema todo já estava rindo comigo.
Foi, então, que na tela um dos Reis Magos levava pela cordinha um cabrito que não queria ir de jeito nenhum. Afinal, perfeitamente perdoável porque o cabrito não era artista, não estava ensaiado. Foi, então, que uma vaca salvou a situação e lhe deu uma chifrada no rabo, o Rei Mago desprevenido deixou escapulir a cordinha e o cabrito sumiu nos campos de Jerusalém, isto é, de São Roque.
Com esta eu fui obrigada a me retirar do cinema, porque, se eu não saísse de livre e espontânea vontade, o Arcebispo, apesar de ser legal às pampas, me expulsaria dali pelas orelhas.

Comments:
Ora ora Erly, fiquei de careta com seu texto sobre Maria Nilce. O que você disse casa muito com a opinião de nossa família e, tenho certeza, que posso falar em nome dos demais. Estou nesse instante trabalhando num projetinho de publicação de uma seleta das crônicas de mamãe, fico realmente surpreso de constatar que muita gente nem sabe que ela escreveu cinco livros (!) E falo de gente de um certo nível cultural. No mais parabenizo pelo blog, que eu não conhecia, e te convido para visitar o meu, tenho certeza que vc dará boas gargalhadas tb. Abraços.
 
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