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27.6.06

Coisas que só a literatura faz por você (parte 1 de 2)

Erly Vieira Jr
(Publicado em 14.06.06)

Esta semana eu finalmente criei vergonha na cara para ler um livro que devia ter lido há pelo menos uma década: o romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Nem preciso dizer que quase me arrependi amargamente de não ter lido antes essa obra de primeira grandeza. Perto dele, Cidadão Kane, a obra mais importante da história do cinema, é fichinha. À medida em que avançava na leitura do Rulfo, percebia que sua trama fragmentada em múltiplos flashbacks era articulada com mais desenvoltura que o filme de Orson Welles, que eu antes considerava "a" aula de como se contar uma narrativa em pedaços deliciosamente ambíguos e permitir ao leitor concluir sua própria leitura a respeito do protagonista misterioso e mítico.
Cidadão Kane é o ponto alto dessa forma narrativa no cinema e, por extensão, é uma das pedras fundamentais da cultura do século XX. A minha surpresa foi perceber que, na literatura, a possibilidade de se enveredar pela seara kaneana pode ser muuuuuuuuuuito mais profunda. E os responsáveis por isso foram os múltiplos flashbacks em primeira pessoa de Pedro Páramo, que jamais anunciam de antemão quem narra o quê: a gente precisa atravessar algumas linhas de cada fragmento até perceber o narrador, isso se a gente tiver certeza de quem narrou, coisa impensável no cinema, uma vez que a imagem entrega imediatamente o ponto de vista narrado. Tal articulação textual nos obriga a mergulhar num emaranhado de episódios em que vivos e mortos se confundem e desfilam sem aviso prévio, desnorteando-nos cada vez mais, a ponto de se reconfigurar o quebra-cabeça a cada nova peça encontrada e que se encaixa no mais inesperado dos lugares possíveis.
Isso significa que o leitor pode o tempo todo pôr em questão o que está sendo contado, e a cada vez que avança na leitura, menos sabe sobre o tal Pedro Páramo, objeto inicial da procura do protagonista, Juan Preciado. O livro se inicia com a chegada deste a Comala, em busca do pai que nunca conheceu e que é uma espécie de Teodorico Imperador do Sertão (para parafrasear o documentário do Eduardo Coutinho) das redondezas. Encontrar Páramo acaba sendo um objetivo distante, facilmente nublado por cada descoberta do protagonista (inclusive de sua própria condição de morto como todos os outros que encontra em sua busca).
O mais fabuloso do romance de Rulfo é que muitos desses flashbacks são contados ao leitor, mas nada indica que o protagonista também partilhe dessas informações. Desse modo, pipocam Rosebuds em cada página do livro, que se resolve no leitor, já que ele, ainda que pouco conheça de Pedro Páramo, o sabe mais que o pobre Preciado.
Pedro Páramo, junto com a coletânea Chão em chamas (ou O planalto em chamas, dependendo da tradução disponível), são as únicas obras que Juan Rulfo publicou, ambas na década de 50 (vou desconsiderar um livro de argumentos para o cinema, publicado em 1980, que é bem menos interessante que os livros de sua bibliografia oficial). Consagrado ainda em vida como um dos maiores escritores latino-americanos, o mexicano permaneceu em silêncio até sua morte, em 1986. Bom, ele já tinha dado ao mundo muito mais que um Cidadão Kane. O suficiente pra deixar a gente boquiaberto mais de meio século depois.

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