29.4.06
Vou cuspir no seu túmulo
Erly Vieira Jr
(Publicado em 21.12.2005)
Calma! Não estou descontando rancor algum em cima de você, querido leitor. Esse é apenas o título de um livro recém-lançado no Brasil, de autoria do norte-americano Vern... ou melhor, do francês Boris Vian. Trata-se de um romance bem ao estilo da ficção barata policial americana que infestava a década de 40, só que muito bem escrito e ironizando vários dos clichês do gênero. Pra quem gosta de filmes noir, como eu, o livro que Vian escreveu sob pseudônimo Vernon Sullivan em 1946 é uma grande pedida. Daquelas que a gente devora num fôlego só e que imediatamente pensa em recomendar pra todos os amigos (tá vendo, eis mais uma dica pro "amigo x" do escritório...): "O quê? Você n-u-n-c-a leu 'Vou cuspir no seu túmulo'? Como assim?!"
Vian é quase desconhecido no Brasil, mas é um dos mais importantes escritores franceses do século XX. Apesar de ter vivido meros 39 anos, com uma carreira de apenas duas décadas Vian nos legou dezenas de livros, canções e uma obra marcada por uma nítida influência do surrealismo, como podemos comprovar em seu romance mais famoso, o essencial e trágico A espuma dos dias, de 1947 (publicado pela Nova Fronteira nos anos 80 e atualmente fora de catálogo), chamado por Raymond Queneau de "a mais pungente história de amor já escrita" e recheado de imagens inacreditáveis e líricas como escadas que se escondem sob os passos de quem as sobe, enguias que aparecem na torneira da pia, dentes de alho que são afiados... sem contar que o livro encerra uma das frases mais belas que já li: "Ocupo meu tempo escurecendo meus momentos iluminados, porque a claridade me incomoda".
Mas como A espuma dos dias está há séculos fora de catálogo, e é raridade até em sebos, não vou ficar enchendo o leitor de vontade de ler algo tão inacessível, e vou vender o peixe do livro publicado sob o nome de Vernon Sullivan. Trata-se de uma história de "sangue, sexo e vingança", no estilo de Dashiel Hammett, ou melhor, escrito de forma muito melhor que os livros do próprio Hammett. O protagonista é um vendedor de livros negro com feições, pele e cabelos de branco (sim, ele é loiro!), que busca vingar a morte do irmão mais novo, assassinado por deitar-se com uma jovem branca. Enquanto a vingança não vem, o leitor é brindado com uma divertida carga de erotismo concentrado, ambientado numa cidadezinha interiorana (w.a.s.p.) dos EUA , narrado em primeira pessoa e capaz de fazer-nos esquecer de todos os compromissos até o virar da última página.
Vian, na época um escritor em ascensão nos círculos literários sérios parisienses, jamais poderia publicar tal estória (considerada literatura barata, pulp fiction) sob seu nome. Daí ter inventado um pseudônimo americano, e assinar como tradutor da obra pro francês. O livro foi best-seller na Paris do final dos anos 40, impulsionado não só pelas cenas ardentes, mas também por um episódio célebre: num hotel nos arredores de Montparnasse, um vendedor parisiense assassinou sua amante e se suicidou num bosque, não sem antes deixar, ao lado do cadáver, uma nota anunciando seu suicídio e um exemplar de Vou cuspir no seu túmulo. Sem criminoso a ser punido, uma vez que o mesmo tinha dado cabo à própria vida, foi a vez de encontrar um "culpado moral" na pele do misterioso autor do livro. Pouco depois, a identidade verdadeira de Sullivan foi revelada, e isso trouxe todo tipo de complicação para Vian (na época, laureado pela sua estréia oficial, com A espuma dos dias): desde o boicote nos círculos literários ditos sérios até processos judiciais e 15 dias de prisão. Enquanto isso, o livro vendia que nem água. Vian passou o resto de sua vida tentando se esquivar da sombra de seu alter ego Vernon Sullivan: morreria em 1959, enfartado, exatamente durante a pré-estréia da adaptação do polêmico livro para o cinema.
Objeto de culto até hoje, Vian é um ilustre desconhecido no Brasil. Como eu disse, A espuma dos dias está fora de catálogo desde 1984. Outros livros essenciais do autor, como A erva vermelha e O arranca-corações, existem apenas em edições portuguesas. Além de Vou cuspir no seu túmulo, dá pra encontrar nas livrarias, esquecido em alguma prateleira, o livro Poemas e Canções, editado há uns quase três anos pela Nankin. Dele eu retiro esse poema, que tem muito mais a ver com o Vian de A Espuma dos dias do que com os livros de Vernon Sullivan, mas que serve de introdução à obra desse escritor:
QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA
Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo de um troço solitário
Quero uma vida em forma de areia nas mãos
Em forma de pão verde ou de moringa
Em forma de sapato velho
Em forma de tiroliroliro
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra coberta de seixos
De cabeleireiro selvagem ou de edredom louco
Quero uma vida em forma de você
E a tenho, mas ainda não é o bastante
Nunca estou contente.
Erly Vieira Jr
(Publicado em 21.12.2005)
Calma! Não estou descontando rancor algum em cima de você, querido leitor. Esse é apenas o título de um livro recém-lançado no Brasil, de autoria do norte-americano Vern... ou melhor, do francês Boris Vian. Trata-se de um romance bem ao estilo da ficção barata policial americana que infestava a década de 40, só que muito bem escrito e ironizando vários dos clichês do gênero. Pra quem gosta de filmes noir, como eu, o livro que Vian escreveu sob pseudônimo Vernon Sullivan em 1946 é uma grande pedida. Daquelas que a gente devora num fôlego só e que imediatamente pensa em recomendar pra todos os amigos (tá vendo, eis mais uma dica pro "amigo x" do escritório...): "O quê? Você n-u-n-c-a leu 'Vou cuspir no seu túmulo'? Como assim?!"
Vian é quase desconhecido no Brasil, mas é um dos mais importantes escritores franceses do século XX. Apesar de ter vivido meros 39 anos, com uma carreira de apenas duas décadas Vian nos legou dezenas de livros, canções e uma obra marcada por uma nítida influência do surrealismo, como podemos comprovar em seu romance mais famoso, o essencial e trágico A espuma dos dias, de 1947 (publicado pela Nova Fronteira nos anos 80 e atualmente fora de catálogo), chamado por Raymond Queneau de "a mais pungente história de amor já escrita" e recheado de imagens inacreditáveis e líricas como escadas que se escondem sob os passos de quem as sobe, enguias que aparecem na torneira da pia, dentes de alho que são afiados... sem contar que o livro encerra uma das frases mais belas que já li: "Ocupo meu tempo escurecendo meus momentos iluminados, porque a claridade me incomoda".
Mas como A espuma dos dias está há séculos fora de catálogo, e é raridade até em sebos, não vou ficar enchendo o leitor de vontade de ler algo tão inacessível, e vou vender o peixe do livro publicado sob o nome de Vernon Sullivan. Trata-se de uma história de "sangue, sexo e vingança", no estilo de Dashiel Hammett, ou melhor, escrito de forma muito melhor que os livros do próprio Hammett. O protagonista é um vendedor de livros negro com feições, pele e cabelos de branco (sim, ele é loiro!), que busca vingar a morte do irmão mais novo, assassinado por deitar-se com uma jovem branca. Enquanto a vingança não vem, o leitor é brindado com uma divertida carga de erotismo concentrado, ambientado numa cidadezinha interiorana (w.a.s.p.) dos EUA , narrado em primeira pessoa e capaz de fazer-nos esquecer de todos os compromissos até o virar da última página.
Vian, na época um escritor em ascensão nos círculos literários sérios parisienses, jamais poderia publicar tal estória (considerada literatura barata, pulp fiction) sob seu nome. Daí ter inventado um pseudônimo americano, e assinar como tradutor da obra pro francês. O livro foi best-seller na Paris do final dos anos 40, impulsionado não só pelas cenas ardentes, mas também por um episódio célebre: num hotel nos arredores de Montparnasse, um vendedor parisiense assassinou sua amante e se suicidou num bosque, não sem antes deixar, ao lado do cadáver, uma nota anunciando seu suicídio e um exemplar de Vou cuspir no seu túmulo. Sem criminoso a ser punido, uma vez que o mesmo tinha dado cabo à própria vida, foi a vez de encontrar um "culpado moral" na pele do misterioso autor do livro. Pouco depois, a identidade verdadeira de Sullivan foi revelada, e isso trouxe todo tipo de complicação para Vian (na época, laureado pela sua estréia oficial, com A espuma dos dias): desde o boicote nos círculos literários ditos sérios até processos judiciais e 15 dias de prisão. Enquanto isso, o livro vendia que nem água. Vian passou o resto de sua vida tentando se esquivar da sombra de seu alter ego Vernon Sullivan: morreria em 1959, enfartado, exatamente durante a pré-estréia da adaptação do polêmico livro para o cinema.
Objeto de culto até hoje, Vian é um ilustre desconhecido no Brasil. Como eu disse, A espuma dos dias está fora de catálogo desde 1984. Outros livros essenciais do autor, como A erva vermelha e O arranca-corações, existem apenas em edições portuguesas. Além de Vou cuspir no seu túmulo, dá pra encontrar nas livrarias, esquecido em alguma prateleira, o livro Poemas e Canções, editado há uns quase três anos pela Nankin. Dele eu retiro esse poema, que tem muito mais a ver com o Vian de A Espuma dos dias do que com os livros de Vernon Sullivan, mas que serve de introdução à obra desse escritor:
QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA
Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo de um troço solitário
Quero uma vida em forma de areia nas mãos
Em forma de pão verde ou de moringa
Em forma de sapato velho
Em forma de tiroliroliro
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra coberta de seixos
De cabeleireiro selvagem ou de edredom louco
Quero uma vida em forma de você
E a tenho, mas ainda não é o bastante
Nunca estou contente.
Comments:
Postar um comentário