29.4.06
Você me promete que não vai dar o livro da Bruna Surfistinha no Natal pra ninguém?
Erly Vieira Jr
(Publicado em 14.12.2005)
Pois é. Esta semana eu bem que tentei ler o livro da Bruna Surfistinha pra falar dele na coluna. Quatro vezes eu passei na livraria pensando em adquiri-lo, mas o bom senso me lembrava que não ia valer a pena gastar minhas suadas moedinhas num livro que logo após a leitura da última página nunca mais seria sequer folheado. Então, resolvi lê-lo aos pouquinhos, em pé, na livraria mesmo.
Confesso que foi uma total perda de tempo. Primeiro, porque livreiro nenhum iria me deixar violar o conteúdo lacrado das páginas "negras" do livro, onde supostamente estão os relatos picantes (aliás, esse negócio de parte branca e parte negra me lembra O estudante, da Adelaide Carraro, com suas maniqueístas partes azul e negra, clássico no quesito "best seller pra quem não gosta de ler"). Segundo, porque as páginas permitidas à leitura rápida do leitor (indeciso entre comprar o novo da Lya Luft e o Guiness 2006) encerram um conteúdo bastante sem graça: em lugar dos esperados relatos levemente apimentados e irônicos, próprios para cumprirem as expectativas suscitadas pelo livro, fui premiado com meia dúzia de frases surrupiadas dos mais embolorados livros de auto-ajuda. Pra vocês terem uma idéia: a frase que encerra a parte não-lacrada do livro é algo como "o importante é ser você", ou "ser feliz", sei lá, muito mais apropriada para um livro do Dr. Lair ou letra de música da tal da Pitty.
A melhor passagem do livro é quando ela diz que um dia colocou no papel a quantia que precisaria para ter tudo que sempre quis e largar "essa vida": 300 mil reais. Rapidamente cortados pra 200 mil, porque ela diz ter eliminado certos gastos supérfluos. Poucas linhas depois ela declara que cem mil tá bom demais, e que tem mês que ela consegue poupar 8 mil reais e isso faz com que ela sinta que os dias de garota de programa estejam se aproximando do fim. Bom, aí ela me mata de inveja fulminante: quem dera eu ganhasse esse valor mensalmente, ai, ai...
Talvez a parte lacrada do livro seja realmente interessante, mas não dá pra esperar muita coisa daí, né? Ou talvez eu esteja enganado, e dentro daquelas páginas negras estejam relatos eróticos escritos com a mesma maestria de autores como D.H. Lawrence, Sade, Genet, Henry Miller, Hilda Hilst... Quem sabe um dia esse livro não estará no cânon do Harold Bloom, tornando-se leitura obrigatória, junto a Shakespeare e Dante, e eu vou ter que dobrar minha gigantesca língua? Bom, enquanto o Harold Bloom não ganha O doce veneno do escorpião de natal, eu pelo menos posso respirar aliviado, né?
Pois é. O livro da Bruna pertence ao gênero predileto dos "presenteadores de livro no natal". Sim, essa categoria existe: são aquelas pessoas que não lêem e que, pra fazer bonito nas festas de fim de ano, decidem dar livros para outras pessoas que raramente cultivam o hábito da leitura. Esse é o leitor que passa na livraria e fica indeciso entre a capa de globo de boate do Guiness 2006 e o novo best-seller de auto-ajuda da Lya Luft (sobre ela eu falo outro dia, porque me dá a maior dor no coração quando lembro que ela era uma ficcionista de primeira linha no início da carreira). E esse leitor acaba comprando um livro de caráter autobiográfico, memorialístico, geralmente de alguma celebridade (pode ser até ex-BBB).
Esses livros de memórias dividem-se em duas categorias, basicamente: uma, bastante popular nos últimos dez anos, é a das pessoas semi-anônimas que viram celebridades por aspectos incomuns de suas vidas (isso vale tanto para a Bruna quanto para as modelos ex-mulheres de jogadores de futebol ou as jovens viúvas de ícones nacionais, como a namorada do vocalista dos Mamonas Assassinas ou o "caminho das borboletas" da Adriane Galisteu. Esse tipo de livro pode até contribuir (em parte) para alçar seu autor a um patamar de real celebridade, se ele souber aproveitar o poder dos holofotes (como a Galisteu fez).
A outra é a das pessoas que atravessaram momentos marcantes da história recente do país, em especial momentos badalados (1968, bossa nova, tropicalismo, Ipanema nos anos 60 ou 80, e os frenéticos dancin' days são presenças quase constantes nos livros dessa categoria), e que permitem que a gente se delicie tanto com as estórias acerca da composição de tal clássico da música brasileira quanto descobrindo quem comeu quem entre os famosos, quem era desafeto de quem, e outros bas-fond de menor estirpe. Exemplos desses livros, geralmente escritos por pessoas que são consideradas retratos de sua época, pipocam nas prateleiras no último trimestre de cada ano: os "clássicos" de Nelson Motta, Caetano Veloso (com seu indigesto exercício de pseudo-humildade Verdade Tropical) e o recém-lançado Quase tudo, da Danuza Leão são os primeiros que me vêm à cabeça. Quer pessoa que tenha sido mais "retrato de uma época" do que Danuza? E no livro dela, que até foge do lugar-comum das memórias de celebridades, dá pra gente ficar sabendo desde irrelevâncias, como a duração dos namoros do Paulo Francis, até dados preciosos sobre o cronista Antônio Maria (ex-marido da cronista) ou os bastidores das filmagens de Terra em Transe.
Bom, como eu tenho teto de vidro, confesso que na minha estante tem um livro de memórias do Gore Vidal, Palimpsesto. E confesso também que, durante um bom tempo da minha vida, eu adorava folhear esse livro e partilhar da intimidade do autor com o casal John-Jackie Kennedy, ou gargalhar com a versão de vidal para a ocasião em que ele foi pra cama com Kerouac num fuleiro quarto do Chelsea Hotel na noite de 23 de agosto de 1953 (citada num livro de Kerouac de forma muito mais pudica, diga-se de passagem). Pelo menos as fofocas de Gore Vidal rendem bons assuntos em rodas de conversa em vernissages e lançamentos de livros...
Não que eu esteja desdenhando dos memorialistas, trantando-os como autores de um gênero literário "menor". Pedro Nava (que aliás merecia uma coluna só sobre sua obra), por exemplo, começou a publicar suas memórias em 1972, com Baú de Ossos, seguido de outros cinco volumes até seu suicídio em 1984. Cada um desses livros causa arrepios pela beleza dos episódios narrados e pela fabulosa linguagem que é adotada nesse que é um dos mais importantes conjuntos de obra de um autor em língua portuguesa. A questão é que, pra cada Pedro Nava que aparece, abarrotam as prateleiras das livrarias dezenas de milhares de celebridades pegando carona no hype fácil dos cadernos de cultura.
E aí eu pergunto: tem certeza que você vai dar o livro da Bruna no natal pra alguém de sua lista de presentes? Tem certeza? Não valeria a pena tentar o Pedro Nava, cuja obra tem sido reeditada aos poucos desde 1999? Ok, ele não está nas estantes das livrarias da província, mas dá pra comprar pela internet, com um frete que nem dói o bolso tanto assim. Mas, se ainda assim você for à livraria para comprar o presente do "amigo X" do escritório, tenta a Danuza primeiro. Está na mesma estante, ao lado do livrinho da Bruna. E com certeza é muito mais interessante e tem muito mais a contar. Garanto que seu colega de trabalho vai ter assunto o verão inteiro, sem ter que apelar pro "timão" ou pro Domingo Legal pra puxar conversa contigo durante a hora do cafezinho...
Erly Vieira Jr
(Publicado em 14.12.2005)
Pois é. Esta semana eu bem que tentei ler o livro da Bruna Surfistinha pra falar dele na coluna. Quatro vezes eu passei na livraria pensando em adquiri-lo, mas o bom senso me lembrava que não ia valer a pena gastar minhas suadas moedinhas num livro que logo após a leitura da última página nunca mais seria sequer folheado. Então, resolvi lê-lo aos pouquinhos, em pé, na livraria mesmo.
Confesso que foi uma total perda de tempo. Primeiro, porque livreiro nenhum iria me deixar violar o conteúdo lacrado das páginas "negras" do livro, onde supostamente estão os relatos picantes (aliás, esse negócio de parte branca e parte negra me lembra O estudante, da Adelaide Carraro, com suas maniqueístas partes azul e negra, clássico no quesito "best seller pra quem não gosta de ler"). Segundo, porque as páginas permitidas à leitura rápida do leitor (indeciso entre comprar o novo da Lya Luft e o Guiness 2006) encerram um conteúdo bastante sem graça: em lugar dos esperados relatos levemente apimentados e irônicos, próprios para cumprirem as expectativas suscitadas pelo livro, fui premiado com meia dúzia de frases surrupiadas dos mais embolorados livros de auto-ajuda. Pra vocês terem uma idéia: a frase que encerra a parte não-lacrada do livro é algo como "o importante é ser você", ou "ser feliz", sei lá, muito mais apropriada para um livro do Dr. Lair ou letra de música da tal da Pitty.
A melhor passagem do livro é quando ela diz que um dia colocou no papel a quantia que precisaria para ter tudo que sempre quis e largar "essa vida": 300 mil reais. Rapidamente cortados pra 200 mil, porque ela diz ter eliminado certos gastos supérfluos. Poucas linhas depois ela declara que cem mil tá bom demais, e que tem mês que ela consegue poupar 8 mil reais e isso faz com que ela sinta que os dias de garota de programa estejam se aproximando do fim. Bom, aí ela me mata de inveja fulminante: quem dera eu ganhasse esse valor mensalmente, ai, ai...
Talvez a parte lacrada do livro seja realmente interessante, mas não dá pra esperar muita coisa daí, né? Ou talvez eu esteja enganado, e dentro daquelas páginas negras estejam relatos eróticos escritos com a mesma maestria de autores como D.H. Lawrence, Sade, Genet, Henry Miller, Hilda Hilst... Quem sabe um dia esse livro não estará no cânon do Harold Bloom, tornando-se leitura obrigatória, junto a Shakespeare e Dante, e eu vou ter que dobrar minha gigantesca língua? Bom, enquanto o Harold Bloom não ganha O doce veneno do escorpião de natal, eu pelo menos posso respirar aliviado, né?
Pois é. O livro da Bruna pertence ao gênero predileto dos "presenteadores de livro no natal". Sim, essa categoria existe: são aquelas pessoas que não lêem e que, pra fazer bonito nas festas de fim de ano, decidem dar livros para outras pessoas que raramente cultivam o hábito da leitura. Esse é o leitor que passa na livraria e fica indeciso entre a capa de globo de boate do Guiness 2006 e o novo best-seller de auto-ajuda da Lya Luft (sobre ela eu falo outro dia, porque me dá a maior dor no coração quando lembro que ela era uma ficcionista de primeira linha no início da carreira). E esse leitor acaba comprando um livro de caráter autobiográfico, memorialístico, geralmente de alguma celebridade (pode ser até ex-BBB).
Esses livros de memórias dividem-se em duas categorias, basicamente: uma, bastante popular nos últimos dez anos, é a das pessoas semi-anônimas que viram celebridades por aspectos incomuns de suas vidas (isso vale tanto para a Bruna quanto para as modelos ex-mulheres de jogadores de futebol ou as jovens viúvas de ícones nacionais, como a namorada do vocalista dos Mamonas Assassinas ou o "caminho das borboletas" da Adriane Galisteu. Esse tipo de livro pode até contribuir (em parte) para alçar seu autor a um patamar de real celebridade, se ele souber aproveitar o poder dos holofotes (como a Galisteu fez).
A outra é a das pessoas que atravessaram momentos marcantes da história recente do país, em especial momentos badalados (1968, bossa nova, tropicalismo, Ipanema nos anos 60 ou 80, e os frenéticos dancin' days são presenças quase constantes nos livros dessa categoria), e que permitem que a gente se delicie tanto com as estórias acerca da composição de tal clássico da música brasileira quanto descobrindo quem comeu quem entre os famosos, quem era desafeto de quem, e outros bas-fond de menor estirpe. Exemplos desses livros, geralmente escritos por pessoas que são consideradas retratos de sua época, pipocam nas prateleiras no último trimestre de cada ano: os "clássicos" de Nelson Motta, Caetano Veloso (com seu indigesto exercício de pseudo-humildade Verdade Tropical) e o recém-lançado Quase tudo, da Danuza Leão são os primeiros que me vêm à cabeça. Quer pessoa que tenha sido mais "retrato de uma época" do que Danuza? E no livro dela, que até foge do lugar-comum das memórias de celebridades, dá pra gente ficar sabendo desde irrelevâncias, como a duração dos namoros do Paulo Francis, até dados preciosos sobre o cronista Antônio Maria (ex-marido da cronista) ou os bastidores das filmagens de Terra em Transe.
Bom, como eu tenho teto de vidro, confesso que na minha estante tem um livro de memórias do Gore Vidal, Palimpsesto. E confesso também que, durante um bom tempo da minha vida, eu adorava folhear esse livro e partilhar da intimidade do autor com o casal John-Jackie Kennedy, ou gargalhar com a versão de vidal para a ocasião em que ele foi pra cama com Kerouac num fuleiro quarto do Chelsea Hotel na noite de 23 de agosto de 1953 (citada num livro de Kerouac de forma muito mais pudica, diga-se de passagem). Pelo menos as fofocas de Gore Vidal rendem bons assuntos em rodas de conversa em vernissages e lançamentos de livros...
Não que eu esteja desdenhando dos memorialistas, trantando-os como autores de um gênero literário "menor". Pedro Nava (que aliás merecia uma coluna só sobre sua obra), por exemplo, começou a publicar suas memórias em 1972, com Baú de Ossos, seguido de outros cinco volumes até seu suicídio em 1984. Cada um desses livros causa arrepios pela beleza dos episódios narrados e pela fabulosa linguagem que é adotada nesse que é um dos mais importantes conjuntos de obra de um autor em língua portuguesa. A questão é que, pra cada Pedro Nava que aparece, abarrotam as prateleiras das livrarias dezenas de milhares de celebridades pegando carona no hype fácil dos cadernos de cultura.
E aí eu pergunto: tem certeza que você vai dar o livro da Bruna no natal pra alguém de sua lista de presentes? Tem certeza? Não valeria a pena tentar o Pedro Nava, cuja obra tem sido reeditada aos poucos desde 1999? Ok, ele não está nas estantes das livrarias da província, mas dá pra comprar pela internet, com um frete que nem dói o bolso tanto assim. Mas, se ainda assim você for à livraria para comprar o presente do "amigo X" do escritório, tenta a Danuza primeiro. Está na mesma estante, ao lado do livrinho da Bruna. E com certeza é muito mais interessante e tem muito mais a contar. Garanto que seu colega de trabalho vai ter assunto o verão inteiro, sem ter que apelar pro "timão" ou pro Domingo Legal pra puxar conversa contigo durante a hora do cafezinho...
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