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29.4.06

A poesia vista de Joan Brossa

Erly Vieira Jr
(Publicado em 30.11.2005)

Para falar de poesia visual, sinto-me na obrigação de citar o catalão Joan Brossa (pronuncia-se "jo-an", e não "ruan", como muito se ouve por aí), dono de um dos mais coerentes conjuntos de poemas visuais, poemas-objeto e poemas "escritos" da segunda metade do século XX. Nascido em Barcelona, Brossa (1919-1998) fez parte do grupo vanguardista catalão Dau Al Set, e publicou mais de quarenta livros em vida, sendo que o primeiro título, Sonets de caruixa, foi editado por João Cabral de Melo Neto, amigo pessoal do escritor desde a década de 40. Apesar de Brossa ter sido esporadicamente publicado no Brasil antes, é só agora, com a coletânea Poesia vista, recém lançada pela Amauta/ Ateliê Editorial, que podemos apreciar, ainda que de modo introdutório, a variedade e a força de sua produção.

O primeiro contato que tive com a obra de Brossa foi em fevereiro de 1999, num dossiê da Revista Cult, publicado logo após a morte do autor e organizado pelo poeta visual João Bandeira. Imediatamente me chamaram a atenção poemas-objeto de uma simplicidade assustadora, mas profundamente impactantes: "Burocracia", de 1967, consistia em duas folhas (de árvore) presas por um clipe; "Sem sorte", de 1988, era apenas um punhado de cartas de baralho, com o verso virado para cima, trespassadas por um cadeado trancado; "Labor", de 1978, resumia-se a uma letra A em linha de crochê, inacabada, ainda sob a presença da agulha.

Outros poemas, apesar de ainda se localizarem nas páginas de papel, eram marcados por uma curiosa exploração do aspecto gráfico dos caracteres: "Cabeça de boi" (1982), é basicamente a letra A invertida, em uma fonte tão banal quanto qualquer Arial; "Elegia ao Che" (1978) apresenta um alfabeto em que as letras ausentes são o C, o H, o E; um outro trabalho consiste na palavra "poema" dotada de um cabo de revólver após a letra A. Este último poema é datado da seguinte forma: 1970/1978, demonstrando que entre a concepção e a execução final de diversas obras do poeta decorre um longo período de reflexão, talvez a chave para explicar o porquê de tudo ser tão simples, afiado e nem um pouco óbvio. Simplório? Jamais!

João Bandeira, no dossiê da Cult, diz que Brossa trabalhava com a "suposta objetividade das crianças, a dura liberdade dos loucos, a precisão ameaçada dos ilusionistas" (página 38). Acho que essa descrição diz muito da obra do poeta que, obviamente, demorou pra ser incluída nas antologias de poesia catalã. Mesmo que produzisse trabalhos visuais desde o começo dos anos 40 (adotando o nome "poesia visual" no final da década de 50), Brossa só se tornou realmente conhecido após uma grande exposição na Fundação Joan Miró, em 1986. Partidário de um forte diálogo com os brasileiros do Noigrandes, transitava sem cerimônias entre o lírico, satírico, político. Andrés Sánchez Robayna, no mesmo dossiê da Cult (página 44), chega a declarar que os poemas-objeto de Brossa remontam à tradição dos objetos "trouvés" (encontrados) de um Àngel Ferrant, tradição essa da percepção mágica, da súbita analogia, da visualidade metafórica. Wally Salomão, mais adiante, chega a declarar que os trabalhos de Brossa são "aéreos, como um sopro, próximos da impermanência, da fluidez, da maleabilidade, permitem sempre a ironia" (página 48).

Além dos poemas visuais e dos poemas-objeto, o livro Poesia Vista reúne ainda alguns trabalhos essenciais em verso, como em "Poema":

Tá certo
que não tenho dinheiro
e é verdade que a maior parte das
moedas são de chocolate;
mas se você pegar esta folha
e dobrá-la pela largura,
em dois retângulos,
depois em quatro,
fizer um rasgo
oblíquo nessas quatro
partes e separa-las
em dois pedaços,
obterá
um pássaro que moverá
as asas.

A título de curiosidade: em frente à Catedral de Barcelona, no Barri Gòtic, um trabalho de Brossa pode ser observado ao ar livre. Trata-se de um conjunto de peças de metal nas cores prata, ouro e bronze, incluindo um sol, lua e pirâmides, formando o antigo nome romano da cidade: Barcino.

Uma citação de Novalis é perfeitamente aplicável a Brossa: "Poeta é aquele que pensa com imagens". A essa citação, talvez eu lançasse um outro texto, denominado "Página", espécie de Ars Poetica do artista catalão:

Depois de escrever o poema,
os limites da página já não estão
onde foi cortado o papel.

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