29.4.06
Migalhas de tempo, leitores em migalhas
Erly Vieira Jr
(Publicado em 09.11.2005)
Esses dias eu estava lendo as transcrições do Ciclo de Debates Instantâneo, realizado em junho pela Secult e pelo Centro Cultural Up, e me deparei com uma fala do escritor Bernardo Barros Coelho, quase um alerta de tão estarrecedora: "As pessoas perdem muito em não ler. Perdem muito não tendo essa experiência, esse espaço de introspecção do romance. Não é para o bem do escritor, mas para o bem das pessoas que lêem. É um pedaço que fica faltando nas pessoas". Diante de uma declaração dessas, eu suspirei e repeti, com os meus botões, em voz quase alta: "Ah, e como perdem!"
As novas relações temporais a que estamos submetidos na vida contemporânea (e que são reconfiguradas o tempo todo, a cada nova tecnologia que invade nosso dia-a-dia) refletem-se nas fatias (ou seriam migalhas?) de nosso tempo livre que se espalham entre um e outro compromisso da nossa agenda de "atarefados seres urbanos do início do século XXI". Quase tudo se resume a encontrar uma atividade que se encaixe naquela horinha entre a saída do trabalho e a aula da faculdade, ou entre a natação e a aula de inglês-francês-espanhol-esperanto. Horinha que muitas vezes se resume aos meros quinze minutos em que as pessoas conferem os recados da caixa postal do celular dentro do Transcol lotado, folheando alguma revista semanal e planejando o fim de semana, tudo ao mesmo tempo. Esse ritmo cotidiano acelerado talvez possa até servir de justificativa pra que eu releve certas coisas que escuto por aí, do tipo ?romance eu não gosto de ler, prefiro contos, são mais curtos, duas, três quatro páginas tá bom demais?: como que uma pessoa que dispõe de fatias de 10, 15 minutos diários pode encontrar tempo pra ler A montanha mágica?
Dia desses, alguns alunos da faculdade em que dou aula iriam promover uma roda de leitura com alunos do ensino médio, pra daí realizar um vídeo documentário. Sugeri que trabalhassem um conto de Lygia Fagundes Telles, "As formigas", que poderia funcionar junto aos adolescentes, por seu tom de suspense e por ser, ao menos para mim, bem curto (seis páginas). Primeiro relato dos alunos quando aplicaram o texto na escola: "a garotada tá reclamando que o texto é longo demais"...
A leitura de uma obra literária pressupõe mergulhar em outra temporalidade. Um tempo amalgamado, que mistura o tempo da cronologia dos fatos narrados, o da narrativa e o do leitor. Ler um romance é empreender um passeio de fôlego razoável, uma vez que duas ou três páginas depois de iniciar a leitura estamos totalmente imersos nessa nova temporalidade, que se sobrepõe aos ponteiros do relógio, soberana. Os quinze minutos que sobram entre o curso de webdesign e a aula de yoga mal permitem iniciar esse processo, a gente sabe muito bem disso.
Por outro lado, é o intervalo de tempo ideal pra se ler contos curtos do tamanho dos Minutos de sabedoria (lembram?), dois ou três deles, antes que o assunto se torne desinteressante ao leitor apressado. Migalhas de tempo pedem leitura esmigalhada. Não me admira que três, quatro anos atrás, criou-se um boom de textos de blog, então considerados o "futuro da literatura". Textos de dez, quinze linhas que mal começavam e, quando ameaçavam engrenar, morriam na praia, assim como morreu na praia (com honrosas exceções) boa parte dessa "safra" de novos autores, tal qual a bolha das empresas pontocom na virada do século. Na verdade, era muito mais um boom de pastiches sub-bukowskianos, que talvez pudessem sustentar um parágrafo ou dois isolados mas, quando reunidos em livro, mostravam-se tão pífios quanto o autor que inspirou essa suposta geração: claro, um livro dele dá pra ler no ônibus, mesmo que seja em pé no 507 lotado e se você pular duas ou três páginas não faz a mínima diferença...
Esse negócio da gente se comportar como o coelho de Alice no país das maravilhas reflete-se até na criançada: inventaram um tal de "contador de histórias", que resume as histórias e as conta para as crianças entremeadas com musiquinhas que parecem saídas de um encontro da Canção Nova... dizem que é pra despertar o interesse da leitura. Se eu fosse criança, sairia correndo pra me esconder nas páginas do primeiro livro que aparecesse.
Ao assistir o documentário dos meus alunos, impressionou-me uma colocação recorrente em quase todos os depoimentos dos adolescentes: "eu gostei do conto, mas acho que ele não tem final". Por "não tem final", entenda-se que os garotos preferiam que dona Lygia Fagundes Telles fizesse as protagonistas esperarem as formigas montarem o anão e resolvessem o enigma, em lugar do final proposto pela autora. Típico da geração Glória Perez, que não lê e só conhece a narrativa das novelas e dos filmes da Tela Quente, com seus finais redondinhos em que tudo se resolve na tela, sem ter que se completar no imaginário do espectador. O leitor apressado quer mais é isso: uma experiência que comece e termine sem causar muitas complicações na sua cabeça, ocupadíssima em não chegar atrasado na aula de body combat porque a mensalidade é caríssima, e que ainda hoje tem que chegar em casa pra postar no fotolog, responder todos os scraps do seu orkut e gargalhar clicando num dos peixinhos que infesta seu scrapbook. Ler e mergulhar na introspectividade, por uma horinha que fosse, seria um atentado a essa vidinha tão igual a final de novela, igual aquela canção que termina com pompa e circunstância passando da dominante pra a tônica. De preferência em dó maior, que é pra não perder tempo se preocupando com bemóis e sustenidos.
Erly Vieira Jr
(Publicado em 09.11.2005)
Esses dias eu estava lendo as transcrições do Ciclo de Debates Instantâneo, realizado em junho pela Secult e pelo Centro Cultural Up, e me deparei com uma fala do escritor Bernardo Barros Coelho, quase um alerta de tão estarrecedora: "As pessoas perdem muito em não ler. Perdem muito não tendo essa experiência, esse espaço de introspecção do romance. Não é para o bem do escritor, mas para o bem das pessoas que lêem. É um pedaço que fica faltando nas pessoas". Diante de uma declaração dessas, eu suspirei e repeti, com os meus botões, em voz quase alta: "Ah, e como perdem!"
As novas relações temporais a que estamos submetidos na vida contemporânea (e que são reconfiguradas o tempo todo, a cada nova tecnologia que invade nosso dia-a-dia) refletem-se nas fatias (ou seriam migalhas?) de nosso tempo livre que se espalham entre um e outro compromisso da nossa agenda de "atarefados seres urbanos do início do século XXI". Quase tudo se resume a encontrar uma atividade que se encaixe naquela horinha entre a saída do trabalho e a aula da faculdade, ou entre a natação e a aula de inglês-francês-espanhol-esperanto. Horinha que muitas vezes se resume aos meros quinze minutos em que as pessoas conferem os recados da caixa postal do celular dentro do Transcol lotado, folheando alguma revista semanal e planejando o fim de semana, tudo ao mesmo tempo. Esse ritmo cotidiano acelerado talvez possa até servir de justificativa pra que eu releve certas coisas que escuto por aí, do tipo ?romance eu não gosto de ler, prefiro contos, são mais curtos, duas, três quatro páginas tá bom demais?: como que uma pessoa que dispõe de fatias de 10, 15 minutos diários pode encontrar tempo pra ler A montanha mágica?
Dia desses, alguns alunos da faculdade em que dou aula iriam promover uma roda de leitura com alunos do ensino médio, pra daí realizar um vídeo documentário. Sugeri que trabalhassem um conto de Lygia Fagundes Telles, "As formigas", que poderia funcionar junto aos adolescentes, por seu tom de suspense e por ser, ao menos para mim, bem curto (seis páginas). Primeiro relato dos alunos quando aplicaram o texto na escola: "a garotada tá reclamando que o texto é longo demais"...
A leitura de uma obra literária pressupõe mergulhar em outra temporalidade. Um tempo amalgamado, que mistura o tempo da cronologia dos fatos narrados, o da narrativa e o do leitor. Ler um romance é empreender um passeio de fôlego razoável, uma vez que duas ou três páginas depois de iniciar a leitura estamos totalmente imersos nessa nova temporalidade, que se sobrepõe aos ponteiros do relógio, soberana. Os quinze minutos que sobram entre o curso de webdesign e a aula de yoga mal permitem iniciar esse processo, a gente sabe muito bem disso.
Por outro lado, é o intervalo de tempo ideal pra se ler contos curtos do tamanho dos Minutos de sabedoria (lembram?), dois ou três deles, antes que o assunto se torne desinteressante ao leitor apressado. Migalhas de tempo pedem leitura esmigalhada. Não me admira que três, quatro anos atrás, criou-se um boom de textos de blog, então considerados o "futuro da literatura". Textos de dez, quinze linhas que mal começavam e, quando ameaçavam engrenar, morriam na praia, assim como morreu na praia (com honrosas exceções) boa parte dessa "safra" de novos autores, tal qual a bolha das empresas pontocom na virada do século. Na verdade, era muito mais um boom de pastiches sub-bukowskianos, que talvez pudessem sustentar um parágrafo ou dois isolados mas, quando reunidos em livro, mostravam-se tão pífios quanto o autor que inspirou essa suposta geração: claro, um livro dele dá pra ler no ônibus, mesmo que seja em pé no 507 lotado e se você pular duas ou três páginas não faz a mínima diferença...
Esse negócio da gente se comportar como o coelho de Alice no país das maravilhas reflete-se até na criançada: inventaram um tal de "contador de histórias", que resume as histórias e as conta para as crianças entremeadas com musiquinhas que parecem saídas de um encontro da Canção Nova... dizem que é pra despertar o interesse da leitura. Se eu fosse criança, sairia correndo pra me esconder nas páginas do primeiro livro que aparecesse.
Ao assistir o documentário dos meus alunos, impressionou-me uma colocação recorrente em quase todos os depoimentos dos adolescentes: "eu gostei do conto, mas acho que ele não tem final". Por "não tem final", entenda-se que os garotos preferiam que dona Lygia Fagundes Telles fizesse as protagonistas esperarem as formigas montarem o anão e resolvessem o enigma, em lugar do final proposto pela autora. Típico da geração Glória Perez, que não lê e só conhece a narrativa das novelas e dos filmes da Tela Quente, com seus finais redondinhos em que tudo se resolve na tela, sem ter que se completar no imaginário do espectador. O leitor apressado quer mais é isso: uma experiência que comece e termine sem causar muitas complicações na sua cabeça, ocupadíssima em não chegar atrasado na aula de body combat porque a mensalidade é caríssima, e que ainda hoje tem que chegar em casa pra postar no fotolog, responder todos os scraps do seu orkut e gargalhar clicando num dos peixinhos que infesta seu scrapbook. Ler e mergulhar na introspectividade, por uma horinha que fosse, seria um atentado a essa vidinha tão igual a final de novela, igual aquela canção que termina com pompa e circunstância passando da dominante pra a tônica. De preferência em dó maior, que é pra não perder tempo se preocupando com bemóis e sustenidos.
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