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29.4.06

Era uma vez...

Erly Vieira Jr
(Publicado em 02.11.2005)

O recente movimento de revalorização da produção cultural capixaba da década de 70 (uma produção riquíssima, diga-se de passagem, mas restrita a um circuito underground) instiga-me a fazer aquela perguntinha básica aos meus botões: em quais momentos de nossa história recente pode se dizer que a produção local anterior ao boom (ou hype, como preferirem) do final dos anos 90 conseguiu atingir segmentos de público mais amplos que o tradicional circuito cult? (A questão aqui envolve mais precisamente a produção de caráter autoral, uma vez que as manifestações populares tradicionais, como os folguedos e o artesanato, marcadas por um caráter de criação coletiva ? mas nunca anônima, diga-se de passagem ? sempre tiveram um público fiel e bastante numeroso, muito embora a cobertura da mídia, nestes casos, raramente tenha se dado conta da dimensão que essas manifestações assumem em nossa cultura).

Faço essa pergunta porque é fácil constatar que, muito embora em diversos momentos dos últimos 40 anos a produção local tenha atingido um nível artístico bastante alto, boa parte dela ficou restrita a pequenas parcelas de público, principalmente por conta da falta de uma estrutura de difusão dos bens culturais que ampliasse efetivamente o acesso a essa produção (e aí inclui-se a escassez de equipamentos culturais, de meios de divulgação e de documentação e memória). Claro que, em alguns capítulos dessa história, o flerte entre público e artista foi bastante intenso ? pra citar apenas um exemplo, temos os programas da Rádio Espírito Santo nos anos 50, com seus regionais maravilhosos e pelo menos um grande ídolo popular: Maria Cibeli, na época a "cantora oficial do Estado do Espírito Santo".

Poderia citar outros exemplos, mas vou me concentrar na área de interesse desta coluna. Podemos dizer que a década de 80 e o início dos anos 90 viram florescer uma ?época áurea? da literatura local, conjugando uma safra de autores novos e veteranos de alta qualidade a um circuito de escoamento dessa produção razoavelmente bem assentado. Esse circuito abrangia meios de publicação (a coleção Letras Capixabas da FCAA-Ufes, que chegou a editar 40 títulos; os primeiros volumes da coleção Cultura na Ufes; iniciativas independentes como a Editora Imã com seus projetos gráficos extremamente bem-cuidados), espaço para autores estreantes (vide os concursos literários da época, em especial os do DEC, e a seção "Escrivaninha" da revista Você), espaços para crítica e discussão (novamente cito a Você, e a articulação de grupos independentes, em especial o Grupo Letra, que chegou a editar alguns números de sua revista própria), além de canais de distribuição (ainda que tímidos) pelo interior do Estado (difícil encontrar uma biblioteca municipal que não possua pelo menos uma dúzia de títulos da coleção Letras Capixabas). Sem contar a efervescência das oficinas literárias (em especial as de Deny Gomes), de onde saíram muitos dos principais autores do período.

Mas a tacada mais interessante desse jogo era justamente a inclusão dos livros no vestibular da Ufes. Isso possibilitava a formação de um novo público leitor. Uma geração inteira (a minha) leu Panelinha de breu, O mofo no pão, Sueli. Ok, não vou negar que mais de 95 por cento dos candidatos ao vestibular liam (quando liam) os resuminhos vendidos pelos cursinhos em lugar dos livros, mas sempre havia os ?cinco por cento? pra salvar a pátria. E esses ?cinco por cento? eram uma parcela de público adolescente qualificado, ainda que em formação: além dos devoradores de livros, esse grupo incluía ainda os cê-dê-efes, que jamais se perdoariam se não passassem no vestibular por ter errado uma ou duas questões de literatura... Muitos desses jovens passaram a descobrir o mundo da literatura contemporânea lendo os livros pro vestibular: o Rosa, a Clarice, o Noll, e, por que não, a Bernadete e o Reinaldo.

Sueli faz tanto parte do imaginário de nossa geração quanto Macabéa de Clarice ou a Fraulein do Mário de Andrade. E isso, de certa forma, faz com que não soe falso um escritor dessa geração 90-00 dizer que, entre os autores que o influenciaram, junto a um Thomas Mann ou um outro da mesma grandeza está um Reinaldo Santos Neves (Mara Coradello já declarou isso em algumas entrevistas, por exemplo). Aliás, guardadas as devidas proporções, é bem mais fácil encontrar um escritor jovem que tenha sido influenciado, em sua formação, por autores locais do que um músico jovem que tenha começado a tocar depois de ouvir um disco do Aprígio Lyrio (o que é uma pena, porque o disco dele é memorável). Talvez encontremos nos anos vindouros bandas novas que darão seus primeiros acordes influenciadas por um Manimal, um Casaca, um Dead Fish... A visibilidade que a música capixaba tem hoje entre o grande público permite tal situação. De certa forma, a literatura obteve um pouco disso na sua "época áurea".

E hoje? Depois que esse circuito literário foi implodido, nos anos 90, por diversos fatores, a situação é bem outra. Continua a existir uma produção de qualidade, bons livros têm sido lançados (embora haja muito escritor bom inédito), alguns autores chegam ao circuito nacional (Bernadette Lyra, Waldo Motta, Elisa Lucinda, Viviane Mosé, Mara Coradello), mas a visibilidade de quem publica no circuito local hoje é quase nula. Aliás, pra encontrar livro capixaba nas livrarias, só mesmo ajoelhando (acreditem: existe uma prática surreal de juntar todos os livros locais numa prateleira, em lugar de misturá-los aos de literatura brasileira, e jogá-la quase no assoalho da loja!).

Manter os livros em catálogo então, chega a ser utopia: quase nenhum dos principais livros publicados por aqui nas décadas anteriores é encontrado em livraria (talvez dê pra achar um ou outro exemplar na Livraria da Ufes). Quando uma tiragem se esgota (na maioria das vezes por distribuição gratuita) raramente segue-se outra. (Mais uma vez um exemplo roubado da música: imagina se o disco da banana do Velvet Underground, um dos mais influentes álbuns pop de todos os tempos, tivesse sido retirado de circulação por conta das baixas vendagens no seu lançamento, no final dos anos 60? A maioria dos roqueiros hypados das últimas três décadas, declaradamente influenciados pelo som do grupo, simplesmente não teria existido).

A conclusão disso tudo é bastante óbvia: precisa-se formar público leitor e nutri-lo com um cardápio literário contendo boa variedade de títulos, inéditos ou reedições. A solução dessa equação, sabe-se lá como, precisa ser atingida. Enquanto isso, a gente lembra que, não muito tempo atrás, era uma vez uma cidade (ou um Estado) cujo circuito literário, mesmo que pequenino, parecia borbulhar. E nos cabe hoje a dupla tarefa de arqueólogos (pra resgatar o melhor dessa produção passada) e garimpeiros (para localizar as pepitas recentes que passam por debaixo de nossos olhos, apressadas). E é muito triste viver sempre recomeçando do zero, convenhamos.

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