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29.4.06

400 anos de Quixote

Erly Vieira Jr
(Publicado em 07.12.2005)

E em 2005 comemoraram-se os 400 anos de Dom Quixote de la Mancha, romance de autoria de Miguel de Cervantes, publicado pela primeira vez em 16 de janeiro de 1605. Incontáveis leitores acompanharam, através dos séculos, as aventuras do cavaleiro de triste figura, montado em seu Rocinante, a enfrentar gigantes/moinhos de vento na companhia de Sancho Pança. A obra de Cervantes é considerada o marco inaugural do gênero Romance, além de ter universalizado a língua espanhola, e só perde para a Bíblia e para as obras completas de Lênin em número de idiomas para o qual foi traduzida.

Se listarmos a quantidade de citações e homenagens que o livro recebeu nesses 400 anos, podemos traçar um interessante panorama da presença desse personagem no imaginário popular ocidental. No início do ano, estimava-se que seriam realizados em 2005 mais de dois mil eventos, entre exposições de artes, reedições, congressos, debates, concertos, obras de teatro e mostras de cinema ao redor do mundo. Nas próximas linhas, irei, apressadamente e de forma deveras incompleta, citar algumas dessas homenagens (e acrescentar outras, realizadas no decorrer dos quatro últimos séculos). Quem sentir a falta de algum evento pode completar a lista, à vontade.

A Escola Panamericana de Artes em São Paulo reuniu 30 artistas contemporâneos brasileiros numa grande exposição sobre o romance, entre setembro e outubro. O Instituto Cervantes apresentou um Ciclo de Cine Quixote. Por falar em cinema, um cineasta espanhol, Manuel Gutiérrez Aragon, dirigiu não um filme, mas um audiolivro, no qual oito atores espanhóis atravessam 42 horas de gravação, em 37 CDs, narrando, episódio por episódio, a saga do Fidalgo.

Nos anos 40, um certo Borges, argentino, falava de um tal "Pierre Ménard, autor do Quixote", num dos mais fascinantes contos que já li e reli diversas vezes. Um outro Borges, brasileiro, xilogravurista, lançou um Dom Quixote em Cordel, no qual nosso herói vai parar no sertão nordestino, onde se depara com o bando de Lampião e corteja Maria Bonita pensando se tratar de sua amada Dulcinéia. E não foi o único cordel dedicado ao personagem este ano: Klévisson Viana também lançou o seu As aventuras de Dom Quixote, todo em sextilhas, resenhado com grande destaque nos cadernos culturais de circulação nacional.

Um outro brasileiro, que não era Borges, mas sim Braga, Antônio Carlos Braga, inspirou-se no personagem de Cervantes pra abrir uma livraria que marcou a vida de muita gente em Vitória (inclusive a minha): a Dom Quixote, que funcionava na Rua Aleixo Neto, durante um bom tempo abasteceu minhas estantes com alguns dos mais incríveis livros que li na vida (Foi lá, por exemplo, que adquiri as Obras Completas do Borges "argentino"). Ainda guardo com carinho um postal da livraria, contendo a imagem do Fidalgo, retratado por Picasso.

Orson Welles passou boa parte de sua vida tentando filmar a epopéia quixotesca. O que sobrou do projeto, ambientado na Espanha dos anos 60, está disponível em DVD por aí. Ainda que se trate de um filme inacabado, algumas cenas impressionam profundamente, bem como a inacreditável caracterização de Francisco Regueiras como o protagonista do filme.

Até na política fez-se uso do personagem de Cervantes, para os mais esdrúxulos propósitos: Hugo Chávez mandou imprimir e distribuir gratuitamente uma megalomaníaca tiragem do livro na Venezuela; o presidente do Peru, Alejandro Toledo, chegou a comparar Lula a Dom Quixote, ainda nos primeiros capítulos da novela do Mensalão ?isso sem contar a recente bengalada no José Dirceu, que foi chamado (por seu agressor) de Frestão, o feiticeiro acusado por Quixote de sabotar suas vitórias, transformando os gigantes em moinhos de vento...

O romance de Cervantes batizou até missão espacial: imaginem só, Dom Quixote, "matador de asteróides"!

Se você nunca leu esse livro, ainda dá tempo de incluir na lista de pedidos ao papai noel... Existem diversas edições no mercado, sejam integrais, condensadas, contadas pela Dona Benta, adaptadas para o adolescente de hoje pelo Ferreira Gullar, traduzidas pelos Viscondes (a mais popular), a preços populares ou em embalagem de luxo, como a recente versão bilíngüe publicada pela Editora 34, traduzida por Sérgio Molina e lançada em 2002 (alô, papai noel, não esqueça a minha caloi!).

E eu concordo plenamente com o Reynaldo Damazio, quando ele diz que "reler um livro como Dom Quixote é como lê-lo pela primeira vez, uma travessia deliciosa pelos descaminhos da razão e sua luta por conferir sentido ao mundo que nos rodeia, cheio de gigantes imaginários, sejam eles moinhos de vento, ou arranha-céus de metal e vidro".

Gigantes, ou moinhos, pouco importa. O que importa é a possibilidade de sonhar. Como no poema do Drummond, publicado em 1973, dentro de uma série de textos inspirados pelas narrativas de Cervantes:

XI / DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA

Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou ? que doideira ? um louco de juízo.

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